João Marcondes/Especial para o EM
São Paulo – Há cerca de um século existia ali um curtume. Para quem não sabe, lugar onde o couro animal é curtido com cloreto de sódio. O cheiro desse processo é forte, nauseabundo, e ocupava vários quarteirões da Lapa, em São Paulo, bairro que se tornaria operário dali adiante, com galpões e muros altos. Hoje, a fábrica de couro não existe mais, mas ficou o nome: Rua do Curtume. É para esse endereço que ruma todos os dias o paranaense Lino Paes, de 43 anos. Ele acorda às 3h30 e viaja seis horas desde São José do Rio Preto. Trabalha no prédio na altura do número 700, há 17 anos. Mas faz sempre o exercício de “esquecer” que tem um emprego ali, para, quando abrir a porta do estúdio, tomar o mesmo susto: “Caramba, estou no estúdio do Mauricio de Soooooousa!!”. Um sonho de criança.
Lino é um sujeito sereno, que irradia felicidade por ser o que é: desenhista da Turma da Mônica. E por estar rodeado de outros 40 artistas, que trocam impressões a todo tempo, comentam os desenhos uns dos outros. E, claro, por ter perto de si o próprio Mauricio de Sousa. “Ele é impressionante, tudo o que faz dá certo. Uma verdadeira estrela”, elogia. O nascedouro da fábrica dos sonhos se dá na sala dos roteiristas. Sujeitos como Flávio Teixeira de Jesus, de 47 anos, 25 deles dedicados à Mauricio de Sousa Produções. “Nosso processo aqui é diferente de outros lugares, como Marvel e DC, por exemplo. Lá os roteiros são textos descritivos. Aqui, já têm que vir com um desenho, um esboço. Foi assim que o Mauricio ensinou”, comenta ele, que não apenas escreve quadrinhos, como peças de teatro, roteiros de desenhos animados e até as situações dos parques temáticos.
A VOZ DO CHEFE Um ponto importante é que todos ali dentro têm sempre em mente que irão reproduzir “a voz do Mauricio”. No caso, uma voz infantil, da criança que teve espaço, árvores, parquinho e campinho de bola para brincar livremente. “Essa não é mais a realidade da meninada hoje em dia, que muitas vezes fica no game, no tablet”, diz Flávio. “O quintal foi perdido, mas não aqui, em nossas histórias, pois elas jogam pião e bola de gude”. Do roteiro, as histórias, já em storyboard, partem para as mãos dos desenhistas. Praticamente, não há mais aquela figura romântica do desenhista na prancheta. Mais de 90% das quase mil páginas mensais produzidas são feitas digitalmente, como é o caso de Lino Paes. Mas há um sujeito que dali não sai e que usa todos os dias, há 47 anos, os mesmos instrumentos. Lápis e papel. Trata-se de Sidão, ou Sidney Losano, de 65, um dos homens que moldou forma e caráter de personagens como Cebolinha e o cão Bidu.
Sidão começou com Mauricio quando este fazia apenas tirinhas para a Folha da Manhã, extinto jornal do Grupo Folha. “Quando o encontrei, já era deslumbrado com desenho. Mas vendo o amor que ele tinha pelos personagens, o quanto ele queria aquilo, o jeito visionário de ser, me incentivou profundamente”, diz Sidão. “As únicas referências de quadrinhos que tínhamos na época eram alguns super-heróis e Disney, claro. Estava na cara que ele faria da Turma da Mônica a Disney brasileira, dava para sentir”, relata. Ele dispensa o digital, mas é um dos poucos. Depois de prontos os desenhos, eles são escaneados e partem para a arte-final. Muitas vezes, pode-se pensar que se trata apenas de “passar o traço por cima”, mas vale lembrar que o arte-finalista é o responsável pelo desenho como o leitor vê. “É na arte final que surgem os cílios da Mônica, por exemplo”, diz Rosana Valim, de 51, que entrou no estúdio em 1984.
Seu trabalho envolvia tinta nanquim, pincéis, todo tipo de parafernália. E estava ligado a fatores externos, como por exemplo a chuva torrencial em São Paulo na última quinta, quando o Estado de Minas visitou o estúdio. A umidade inviabilizava o desenho muitas vezes. “Perdia-se muita coisa, carregava-se muito peso”, explica Rosana, que hoje leva apenas um pen drive e desenha em uma espécie de prancheta digital. No estúdio, trabalham também sua filha e o marido (como colaborador). “Aqui todo mundo é família.”
O coordenador de arte Vagner Bonilla, de 38, está ali há 17 anos, seu primeiro e único emprego. “Fui alfabetizado pela Turma da Mônica”, relembra. “Um dos segredos das pessoas trabalharem aqui muito tempo é que nunca se perde o contato com o universo infantil. Às vezes, a gente tem até vergonha de dizer o que faz, porque é muito bom trabalhar com arte.” Para ele, ter como mestre um criador como Mauricio de Sousa faz toda a diferença. “Ele transita entre mundos. Ao mesmo tempo em que está aqui, está sempre em outro lugar, na imaginação”, conclui.
São Paulo – Há cerca de um século existia ali um curtume. Para quem não sabe, lugar onde o couro animal é curtido com cloreto de sódio. O cheiro desse processo é forte, nauseabundo, e ocupava vários quarteirões da Lapa, em São Paulo, bairro que se tornaria operário dali adiante, com galpões e muros altos. Hoje, a fábrica de couro não existe mais, mas ficou o nome: Rua do Curtume. É para esse endereço que ruma todos os dias o paranaense Lino Paes, de 43 anos. Ele acorda às 3h30 e viaja seis horas desde São José do Rio Preto. Trabalha no prédio na altura do número 700, há 17 anos. Mas faz sempre o exercício de “esquecer” que tem um emprego ali, para, quando abrir a porta do estúdio, tomar o mesmo susto: “Caramba, estou no estúdio do Mauricio de Soooooousa!!”. Um sonho de criança.
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A VOZ DO CHEFE Um ponto importante é que todos ali dentro têm sempre em mente que irão reproduzir “a voz do Mauricio”. No caso, uma voz infantil, da criança que teve espaço, árvores, parquinho e campinho de bola para brincar livremente. “Essa não é mais a realidade da meninada hoje em dia, que muitas vezes fica no game, no tablet”, diz Flávio. “O quintal foi perdido, mas não aqui, em nossas histórias, pois elas jogam pião e bola de gude”. Do roteiro, as histórias, já em storyboard, partem para as mãos dos desenhistas. Praticamente, não há mais aquela figura romântica do desenhista na prancheta. Mais de 90% das quase mil páginas mensais produzidas são feitas digitalmente, como é o caso de Lino Paes. Mas há um sujeito que dali não sai e que usa todos os dias, há 47 anos, os mesmos instrumentos. Lápis e papel. Trata-se de Sidão, ou Sidney Losano, de 65, um dos homens que moldou forma e caráter de personagens como Cebolinha e o cão Bidu.
Sidão começou com Mauricio quando este fazia apenas tirinhas para a Folha da Manhã, extinto jornal do Grupo Folha. “Quando o encontrei, já era deslumbrado com desenho. Mas vendo o amor que ele tinha pelos personagens, o quanto ele queria aquilo, o jeito visionário de ser, me incentivou profundamente”, diz Sidão. “As únicas referências de quadrinhos que tínhamos na época eram alguns super-heróis e Disney, claro. Estava na cara que ele faria da Turma da Mônica a Disney brasileira, dava para sentir”, relata. Ele dispensa o digital, mas é um dos poucos. Depois de prontos os desenhos, eles são escaneados e partem para a arte-final. Muitas vezes, pode-se pensar que se trata apenas de “passar o traço por cima”, mas vale lembrar que o arte-finalista é o responsável pelo desenho como o leitor vê. “É na arte final que surgem os cílios da Mônica, por exemplo”, diz Rosana Valim, de 51, que entrou no estúdio em 1984.
Seu trabalho envolvia tinta nanquim, pincéis, todo tipo de parafernália. E estava ligado a fatores externos, como por exemplo a chuva torrencial em São Paulo na última quinta, quando o Estado de Minas visitou o estúdio. A umidade inviabilizava o desenho muitas vezes. “Perdia-se muita coisa, carregava-se muito peso”, explica Rosana, que hoje leva apenas um pen drive e desenha em uma espécie de prancheta digital. No estúdio, trabalham também sua filha e o marido (como colaborador). “Aqui todo mundo é família.”
O coordenador de arte Vagner Bonilla, de 38, está ali há 17 anos, seu primeiro e único emprego. “Fui alfabetizado pela Turma da Mônica”, relembra. “Um dos segredos das pessoas trabalharem aqui muito tempo é que nunca se perde o contato com o universo infantil. Às vezes, a gente tem até vergonha de dizer o que faz, porque é muito bom trabalhar com arte.” Para ele, ter como mestre um criador como Mauricio de Sousa faz toda a diferença. “Ele transita entre mundos. Ao mesmo tempo em que está aqui, está sempre em outro lugar, na imaginação”, conclui.