O ano era 1997. O mestre do teatro butô Kazuo Ohno estava no Brasil para uma oficina em São Paulo. Calmo, o homem de gestos precisos se aproximou do participante de Belo Horizonte. A mensagem foi ao pé do ouvido. “Dance seu sonho”, recomendou ao ator e bailarino Marcelo Gabriel. Naquele momento o artista não segurou as lágrimas e nunca mais esqueceu aquelas palavras.
Às vésperas de estrear Danças do abismo 2, o 30º espetáculo da carreira, que será apresentado amanhã, às 20h, no Teatro de Bolso do Sesc Palladium, o artista mineiro ainda não tem certeza se o que leva anualmente aos palcos são sonhos. São certamente inquietações. Marcelo Gabriel é acupunturista há 10 anos, tem formação superior em gastronomia – com direito a emprego com Alex Atala no badalado restaurante D.O.M. –, mas é a arte a atividade protagonista na vida dele.
Refugiado
O ator e bailarino tinha 17 anos quando começou a frequentar as oficinas do Festival de Inverno de Ouro Preto. Foi arrebatado pelo livro Em busca do teatro pobre, de Jerzy Grotowski, e desde então procura uma interpretação que seja lastreada principalmente pelo corpo e não apenas nas palavras. “Que não tivesse essa defesa de um intelecto, do racional, do discurso cartesiano”, explica.
Nessa época, Marcelo Gabriel era punk. Daqueles que passavam sabão azul no cabelo para ficar de pé e desfilava com coturno cor-de-rosa pelas ruas de BH. As tatuagens se espalham naturalmente pelo corpo. Perdeu as contas de quantas estrelas carrega na pele. Com elas, frases em diversas línguas. Tem Nietzche e também Fassbinder. Gravou no antebraço a pergunta: “O amor é mais frio que a morte?”.
“Eu me sinto um refugiado, um apátrida e à margem. Não me encaixo em nenhuma estrutura formal social e nem de poder. Nada. Eu me sinto totalmente deslocado da estrutura possível, plausível para se validar como um cidadão aceitável”, apresenta-se. Mas poucos minutos de conversa são suficientes para dar a dimensão de que ele não é assim tão fora da curva.
Danças do abismo 2 é o segundo tempo de uma discussão que começou em 2006, em Berlim. Naquela época, o artista esteve em contato com nações indígenas, como os maxacalis, e foi tocado pela experiência. Por meio do teatro físico e da dança, falou dos índios como desterrados.
As circunstancias políticas do mundo o fazem hoje retomar a discussão sob um outro prisma. O novo espetáculo fala sobre êxodo e migração massiva dos que escapam de guerras e genocídios no Oriente Médio. “Não existe uma coreografia, não existe uma estrutura formal de cenas. O que se afirma ali é a presença humana errante a despeito de todas as adversidades”, explica o criador, que contou com a pesquisa da jornalista Carmem Diniz.
Liberdade
Para Marcelo Gabriel, certos temas são impossíveis de se ilustrar com palavras. “Tudo vira alegoria, ilustração e técnico demais perante um tema desses. O que posso fazer é chamar a atenção da opinião pública em relação a isso. Despertar a sensibilidade das pessoas”, afirma. Para ele, o uso da palavra, entendida como uma estrutura formal de expressão, limita a experiência humana. “Não existe molde. O único lugar onde se tem liberdade é no palco. Fora dele tem todas as estruturas de ação social.”
O ator faz questão de salientar que Danças do abismo 2 não é ilustrativo, não existe moral da história. Isso nunca interessou a ele. Ainda assim, a experiência desta vez é mais radical. A montagem não tem roteiro ou qualquer coreografia predeterminada. Há uma trilha sonora assinada por ele mesmo em parceria com André Cabelo e Ricardo Frei.
“Não vamos adotar a jogada de marketing ideal para vender o produto”, diz Marcelo Gabriel, que não faz concessões. Reconhece que poderia fazer movimentos mais bonitos, mais “palatáveis” ao grande público, mas, na percepção dele, não estaria fazendo arte dessa forma. “Estaria vendendo um produto, e arte não é um produto. Arte está ligada ao inconsciente, à liberdade. Tocar as pessoas no âmago e não enganar”, resume.
Danças do abismo 2 tem um desejo de privilegiar o contato humano. O ator se vê como um espelho social, com o papel de refletir o que acontece na sociedade. Hoje, considera a estrutura social vigente como chocante. “O foco deste trabalho é a fuga. É essa eterna dificuldade dos seres humanos em se aceitar como iguais. Com a atual situação da migração, as máscaras caíram”, afirma.
Em busca de equilíbrio
Embora possam parecer áreas muito díspares, Marcelo Gabriel diz que vê muitos pontos de interseção entre a holística da medicina chinesa, a gastronomia e a arte, as três vertentes de formação dele. Há muito tempo é adepto da filosofia do taoísmo (Tao), que liga o homem à natureza. “Se não estivermos plenamente equilibrados, não seremos felizes para viver plenamente com criatividade, alegria, compreensão”, acredita.
Ainda na adolescência, Marcelo Gabriel começou a estudar a macrobiótica em conexão com a medicina chinesa. Foi a curiosidade pelos alimentos, os benefícios para o bem-estar, que o fizeram cursar a graduação em gastronomia na Faculdade Estácio de Sá. Assim que se formou, mudou-se para São Paulo e bateu na porta de Alex Atala.
“Telefonei para o Alex e ele me chamou para conversar. Trabalhei no D.O.M. por dois anos e meio”, conta. Quem conhece Marcelo Gabriel, um homem de fala calma, muitos silêncios, deve imaginar o contraste entre a calma dele e o fuzuê tradicional de uma cozinha. “Quase enfartei algumas vezes. Mas lá, enquanto estávamos trabalhando, era um monastério. É um trabalho de uma precisão absurda. Foi uma experiência muito boa”, diz.
Além do D.O.M, Marcelo Gabriel também trabalhou como cozinheiro no Dalva e Dito e nos mineiros Dádiva e Mes Amis.
INTERROGAÇÕES
Como parte da programação do projeto Pauta em Movimento, Marcelo Gabriel vai lecionar a masterclass “Interrogações” neste domingo. A oficina será as 11h e as 14h, no mezanino do Sesc Palladium (Rua Rio de Janeiro, 1.046, Centro). Inscrição gratuita pelo e-mail inscricaopalladium@sescmg.com.br. Necessário envio de currículo.
Danças do abismo 2
Sábado, às 20h, no Teatro de Bolso Júlio Mackenzie do Sesc Palladium (Av. Augusto de Lima, 420, Centro). Ingressos a R$ 10 ou mediante a doação de 1kg alimento para o Programa Mesa Brasil Sesc. Os trabalhadores do comércio de bens, serviços e turismo têm 15% de desconto no valor da inteira. Informações: (31) 3270-8100.
Às vésperas de estrear Danças do abismo 2, o 30º espetáculo da carreira, que será apresentado amanhã, às 20h, no Teatro de Bolso do Sesc Palladium, o artista mineiro ainda não tem certeza se o que leva anualmente aos palcos são sonhos. São certamente inquietações. Marcelo Gabriel é acupunturista há 10 anos, tem formação superior em gastronomia – com direito a emprego com Alex Atala no badalado restaurante D.O.M. –, mas é a arte a atividade protagonista na vida dele.
Refugiado
O ator e bailarino tinha 17 anos quando começou a frequentar as oficinas do Festival de Inverno de Ouro Preto. Foi arrebatado pelo livro Em busca do teatro pobre, de Jerzy Grotowski, e desde então procura uma interpretação que seja lastreada principalmente pelo corpo e não apenas nas palavras. “Que não tivesse essa defesa de um intelecto, do racional, do discurso cartesiano”, explica.
Nessa época, Marcelo Gabriel era punk. Daqueles que passavam sabão azul no cabelo para ficar de pé e desfilava com coturno cor-de-rosa pelas ruas de BH. As tatuagens se espalham naturalmente pelo corpo. Perdeu as contas de quantas estrelas carrega na pele. Com elas, frases em diversas línguas. Tem Nietzche e também Fassbinder. Gravou no antebraço a pergunta: “O amor é mais frio que a morte?”.
“Eu me sinto um refugiado, um apátrida e à margem. Não me encaixo em nenhuma estrutura formal social e nem de poder. Nada. Eu me sinto totalmente deslocado da estrutura possível, plausível para se validar como um cidadão aceitável”, apresenta-se. Mas poucos minutos de conversa são suficientes para dar a dimensão de que ele não é assim tão fora da curva.
Danças do abismo 2 é o segundo tempo de uma discussão que começou em 2006, em Berlim. Naquela época, o artista esteve em contato com nações indígenas, como os maxacalis, e foi tocado pela experiência. Por meio do teatro físico e da dança, falou dos índios como desterrados.
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Liberdade
Para Marcelo Gabriel, certos temas são impossíveis de se ilustrar com palavras. “Tudo vira alegoria, ilustração e técnico demais perante um tema desses. O que posso fazer é chamar a atenção da opinião pública em relação a isso. Despertar a sensibilidade das pessoas”, afirma. Para ele, o uso da palavra, entendida como uma estrutura formal de expressão, limita a experiência humana. “Não existe molde. O único lugar onde se tem liberdade é no palco. Fora dele tem todas as estruturas de ação social.”
O ator faz questão de salientar que Danças do abismo 2 não é ilustrativo, não existe moral da história. Isso nunca interessou a ele. Ainda assim, a experiência desta vez é mais radical. A montagem não tem roteiro ou qualquer coreografia predeterminada. Há uma trilha sonora assinada por ele mesmo em parceria com André Cabelo e Ricardo Frei.
“Não vamos adotar a jogada de marketing ideal para vender o produto”, diz Marcelo Gabriel, que não faz concessões. Reconhece que poderia fazer movimentos mais bonitos, mais “palatáveis” ao grande público, mas, na percepção dele, não estaria fazendo arte dessa forma. “Estaria vendendo um produto, e arte não é um produto. Arte está ligada ao inconsciente, à liberdade. Tocar as pessoas no âmago e não enganar”, resume.
Danças do abismo 2 tem um desejo de privilegiar o contato humano. O ator se vê como um espelho social, com o papel de refletir o que acontece na sociedade. Hoje, considera a estrutura social vigente como chocante. “O foco deste trabalho é a fuga. É essa eterna dificuldade dos seres humanos em se aceitar como iguais. Com a atual situação da migração, as máscaras caíram”, afirma.
Em busca de equilíbrio
Embora possam parecer áreas muito díspares, Marcelo Gabriel diz que vê muitos pontos de interseção entre a holística da medicina chinesa, a gastronomia e a arte, as três vertentes de formação dele. Há muito tempo é adepto da filosofia do taoísmo (Tao), que liga o homem à natureza. “Se não estivermos plenamente equilibrados, não seremos felizes para viver plenamente com criatividade, alegria, compreensão”, acredita.
Ainda na adolescência, Marcelo Gabriel começou a estudar a macrobiótica em conexão com a medicina chinesa. Foi a curiosidade pelos alimentos, os benefícios para o bem-estar, que o fizeram cursar a graduação em gastronomia na Faculdade Estácio de Sá. Assim que se formou, mudou-se para São Paulo e bateu na porta de Alex Atala.
“Telefonei para o Alex e ele me chamou para conversar. Trabalhei no D.O.M. por dois anos e meio”, conta. Quem conhece Marcelo Gabriel, um homem de fala calma, muitos silêncios, deve imaginar o contraste entre a calma dele e o fuzuê tradicional de uma cozinha. “Quase enfartei algumas vezes. Mas lá, enquanto estávamos trabalhando, era um monastério. É um trabalho de uma precisão absurda. Foi uma experiência muito boa”, diz.
Além do D.O.M, Marcelo Gabriel também trabalhou como cozinheiro no Dalva e Dito e nos mineiros Dádiva e Mes Amis.
INTERROGAÇÕES
Como parte da programação do projeto Pauta em Movimento, Marcelo Gabriel vai lecionar a masterclass “Interrogações” neste domingo. A oficina será as 11h e as 14h, no mezanino do Sesc Palladium (Rua Rio de Janeiro, 1.046, Centro). Inscrição gratuita pelo e-mail inscricaopalladium@sescmg.com.br. Necessário envio de currículo.
Danças do abismo 2
Sábado, às 20h, no Teatro de Bolso Júlio Mackenzie do Sesc Palladium (Av. Augusto de Lima, 420, Centro). Ingressos a R$ 10 ou mediante a doação de 1kg alimento para o Programa Mesa Brasil Sesc. Os trabalhadores do comércio de bens, serviços e turismo têm 15% de desconto no valor da inteira. Informações: (31) 3270-8100.