Como é possível um personagem murmurar, em um romance: “siamed orucse ocuop mu átse” (ou seja, uma frase ao contrário)? Essa é a menor das questões inexplicáveis presentes em 'Fernanflor' (Iluminuras, R$ 38), primeiro volume da trilogia 'Gerônimo', de Sidney Rocha. Ao mergulhar na complexidade da narrativa ficcional (bem curta, “boa para ser lida em um gole só”), o leitor terá indícios dos motivos pelos quais a obra demorou seis anos para ser escrita. O livrinho de 114 páginas e 23 centímetros pesa uma tonelada, de tão burilado. A generosidade em suscitar questionamentos, elucubrações e teorias, mingua quando mais precisamos de respostas, certezas, explicações.
O texto acompanha com argúcia a vida – talvez vivida, talvez imaginada – pelo protagonista, um bon vivant capaz de grandes feitos, graças à (suposta) inteligência acima da média e ao poder de sedução, mas com defeitos tão graves quanto as qualidades. “Picado pelo escorpião da vaidade”, Jeroni Fernanflor percorre cidades e se integra com facilidade a elas e a seus habitantes, embora deseje fugir do ordinário. Tal qual um Forrest Gump, personagem vivido por Tom Hanks no filme homônimo de 1994, o homem alcança (ou sonha ter alcançado) grandes conquistas por obra do acaso. Nada parece estar fora de suas possibilidades: “Cada dia sem alcançar o topo da montanha é de martírio e fracasso”.
Torna-se homem da alta sociedade cuja vivência é estranhamente catalogada. Por exemplo, sabe-se detalhes precisos do itinerário de Jeroni enquanto esteve na cidade de Bressol. Frequentou 38 almoços de embaixada, 116 jantares de confraternização, 46 bailes. 220 chás, 39 banquetes, 64 casamentos, 17 missas de corpo presente, 125 noitadas de pôquer, 48 apostas no clube de jóquei, 260 velórios. Parece prestes a conquistar o mundo com o próprio talento para as artes, com a fama, a inteligência. Pintava retratos e possuía atrizes, rainhas e princesas.
Sidney define o personagem: “'Fernanflor' é meio ou completamente individualista, apaixonado pela beleza. Vive a própria verdade. Extremamente sedutor, mas a sedução está mais ligada ao mal do que ao bem. Ele é as duas coisas. A gente tem que entender que não somos bons ou maus. Somos bons e maus. Por isso que você pode sentir pelo personagem amor, ódio, pena ou compaixão”.
Anunciado na quinta-feira passada como semifinalista do prêmio literário Oceanos (com Sofia), o autor cearense – pernambucano por acolhimento – completa este mês 50 anos de idade e 40 de literatura. O segundo e terceiro título da trilogia 'Gerônimo' estão previstos para 2016 e 2017, respectivamente. Depois disso, Sidney cogita encerrar a carreira literária. “Se eu fizer um excelente trabalho, considero acabado. Não tenho o romantismo de que vou morrer escrevendo”.
Entrevista >> Sidney Rocha
Como define o personagem-título?
Fernanflor é meio ou completamente individualista, apaixonado pela beleza. Vive a própria verdade. Extremamente sedutor, mas a sedução está mais ligada ao mal do que ao bem. Ele é as duas coisas. A gente tem que entender que não somos bons ou maus. Somos bons e maus. Por isso que você pode sentir pelo personagem amor, ódio, pena ou compaixão. Lógico que há característica forte do livro, o fato de ser tudo a partir da linguagem, que termina nivelando tudo. Tanto Jeroni Fernanflor, o indivíduo, quanto a multidão. O grande paradoxo desse livro por ser esse sonho de solidão do personagem.
O livro começa com epílogo e termina com prólogo. É uma pegadinha?
Não foi à toa. Quando digo sim, estou dizendo não, quando digo fim, estou dizendo começo. Quando estou falando a verdade, Fernanflor pode não estar. São muitas dúvidas: O que é fim e o que é começo? Aquela é a vida do personagem, a vida que ele sonhou? Ou a vida para a qual ele morreu? Não é somente pegadinha. É um paradoxo.
'Fernanflor' tem relação forte com as cidades e observa muito as pessoas para pintá-las. Você tem essa relação com a cidade onde mora?
Não tem a ver com o Recife, mas com o mundo. Um escritor é, sobretudo, um observador, não um anotador. Escrever é ver, olhar. E ler é saber interpretar o mundo. No caso de Fernanflor, ele se via como um “danado”, no sentido da danação, de quem foi prejudicado na maneira de ver o mundo.
O texto acompanha com argúcia a vida – talvez vivida, talvez imaginada – pelo protagonista, um bon vivant capaz de grandes feitos, graças à (suposta) inteligência acima da média e ao poder de sedução, mas com defeitos tão graves quanto as qualidades. “Picado pelo escorpião da vaidade”, Jeroni Fernanflor percorre cidades e se integra com facilidade a elas e a seus habitantes, embora deseje fugir do ordinário. Tal qual um Forrest Gump, personagem vivido por Tom Hanks no filme homônimo de 1994, o homem alcança (ou sonha ter alcançado) grandes conquistas por obra do acaso. Nada parece estar fora de suas possibilidades: “Cada dia sem alcançar o topo da montanha é de martírio e fracasso”.
Torna-se homem da alta sociedade cuja vivência é estranhamente catalogada. Por exemplo, sabe-se detalhes precisos do itinerário de Jeroni enquanto esteve na cidade de Bressol. Frequentou 38 almoços de embaixada, 116 jantares de confraternização, 46 bailes. 220 chás, 39 banquetes, 64 casamentos, 17 missas de corpo presente, 125 noitadas de pôquer, 48 apostas no clube de jóquei, 260 velórios. Parece prestes a conquistar o mundo com o próprio talento para as artes, com a fama, a inteligência. Pintava retratos e possuía atrizes, rainhas e princesas.
Sidney define o personagem: “'Fernanflor' é meio ou completamente individualista, apaixonado pela beleza. Vive a própria verdade. Extremamente sedutor, mas a sedução está mais ligada ao mal do que ao bem. Ele é as duas coisas. A gente tem que entender que não somos bons ou maus. Somos bons e maus. Por isso que você pode sentir pelo personagem amor, ódio, pena ou compaixão”.
Anunciado na quinta-feira passada como semifinalista do prêmio literário Oceanos (com Sofia), o autor cearense – pernambucano por acolhimento – completa este mês 50 anos de idade e 40 de literatura. O segundo e terceiro título da trilogia 'Gerônimo' estão previstos para 2016 e 2017, respectivamente. Depois disso, Sidney cogita encerrar a carreira literária. “Se eu fizer um excelente trabalho, considero acabado. Não tenho o romantismo de que vou morrer escrevendo”.
Entrevista >> Sidney Rocha
Como define o personagem-título?
Fernanflor é meio ou completamente individualista, apaixonado pela beleza. Vive a própria verdade. Extremamente sedutor, mas a sedução está mais ligada ao mal do que ao bem. Ele é as duas coisas. A gente tem que entender que não somos bons ou maus. Somos bons e maus. Por isso que você pode sentir pelo personagem amor, ódio, pena ou compaixão. Lógico que há característica forte do livro, o fato de ser tudo a partir da linguagem, que termina nivelando tudo. Tanto Jeroni Fernanflor, o indivíduo, quanto a multidão. O grande paradoxo desse livro por ser esse sonho de solidão do personagem.
O livro começa com epílogo e termina com prólogo. É uma pegadinha?
Não foi à toa. Quando digo sim, estou dizendo não, quando digo fim, estou dizendo começo. Quando estou falando a verdade, Fernanflor pode não estar. São muitas dúvidas: O que é fim e o que é começo? Aquela é a vida do personagem, a vida que ele sonhou? Ou a vida para a qual ele morreu? Não é somente pegadinha. É um paradoxo.
'Fernanflor' tem relação forte com as cidades e observa muito as pessoas para pintá-las. Você tem essa relação com a cidade onde mora?
Não tem a ver com o Recife, mas com o mundo. Um escritor é, sobretudo, um observador, não um anotador. Escrever é ver, olhar. E ler é saber interpretar o mundo. No caso de Fernanflor, ele se via como um “danado”, no sentido da danação, de quem foi prejudicado na maneira de ver o mundo.