'Ainda estou aqui' é a frase presente em vários momentos do novo livro do escritor Marcelo Rubens Paiva, inclusive nas entrelinhas. É ela que dá título à publicação, que tem a memória como instrumento de costura das histórias biográficas do autor. Trinta e três anos depois do lançamento do best-seller 'Feliz ano velho', que relata o acidente que o deixou tetraplégico, Marcelo volta a falar da própria história, mas, desta vez, a partir de lembranças que tem do início na infância, quando o pai, o então deputado federal Rubens Paiva foi torturado e morto, em 1971, por militares da ditadura. Marcelo tinha apenas 11 anos de idade.
No ano passado, a Comissão da Verdade finalmente conseguiu esclarecer o desaparecimento do político, o que trouxe à família Paiva o alívio de poder dizer com convicção que o pai havia sido morto no segundo dia de torturas. A informação veio na época em que manifestações pelo país pediam a volta do regime militar — mesmo momento, também, em que o primeiro filho nascia. A maneira de lidar com os sentimentos emaranhados foi escrever.
Por telefone, Marcelo Rubens Paiva disse que a mãe, Eunice Paiva, foi personagem fundamental na luta da família contra a ditadura militar. “Se minha mãe não tivesse Alzheimer, eu não teria escrito o livro. Sempre senti que a história do meu pai pertencia a minha mãe. Talvez ela escrevesse esse livro.”
Em meio à confusão mental causada pela perda gradativa da memória, Eunice diz “ainda estou aqui”, um esforço de mostrar que está presente, apesar de não sae lembrar mais de rostos, cores e sabores preferidos. Rubens Paiva, o pai, parece repetir a mesma frase, cada vez que manifestantes vão às ruas pedir pela volta da ditadura militar. E ele, o próprio autor, que poderia ter morrido em um acidente que lhe limitou movimentos, traz com o livro todas as memórias que tornam as histórias possíveis e mostra que ele ainda está presente para contá-las.
Infância
Tive uma infância muito feliz. Convivi com muitas mulheres durante a minha infância e, para mim, isso é foi uma coisa natural. Nasci em uma família com quatro irmãs. Quando papai morreu, eu tinha 11 anos; então, ficaram quatro irmãs, mamãe e eu. Toda a rotina das minhas irmãs era a minha rotina também, acabava que englobava essa riqueza de detalhes. Então, para mim, acabou sendo natural falar e escrever sobre o universo feminino.
Bullying
Eu era baixinho e não tinha irmão, e os baixinhos na escola eram sempre os que mais apanhavam. Apanhei muito na escola. Como eu mudava muito de cidade, não tinha aquela turma enraizada. Eu estudava em São Paulo, depois fui para o Rio, voltei para São Paulo… Sempre em escolas diferentes, eu nunca criei raiz. E acabava tendo que me virar. Era um bullying bem brando, às vezes um tapa aqui, outro ali (risos).
Memórias
Percebi memórias interagindo entre elas. O meu filho construindo a sua própria memória, o que é curioso, porque ele, desde neném, já tem memória, sabe o doce, que gosta, já pede as músicas que quer ouvir. Eu me lembro dos primeiros passos da minha vida, quando eu tinha 3 ou 4 anos. Está todo mundo, a primeira cena que lembra, nunca é de um ano, mas a criança já tem memória com essa idade. Por outro lado, está minha mãe, que mora no bloco ao lado, perdendo a memória reconhece ele. Meu filho é uma das poucas pessoas que minha mãe reconhece.
Henry Bergson
Com o tempo, comecei a discutir a memória, como contar a história do país, recontar sempre a história para poder passar o passado a limpo, aí pensei que esse novo livro era, na verdade, um livro sobre memória. Comecei a pesquisar a memória. O filósofo que mais escreve sobre o tema é o que eu cito no livro, Henry Bergson, que inspirava Marcel Proust, que é um autor que fala muito da memória, do cheiro, como as cores remetem a outras imagens, outros pensamentos. A memória serviu, no livro, para juntar as histórias.
Dor
A memória que mais me causou dor para escrever o livro foi a da morte do meu pai. Foram 12 dias em que minha mãe, minha irmã e meu pai estiveram presos e eu tive uma sensação de abandono completo aos 11 anos de idade. Eu me lembro detalhadamente daqueles 12 dias. Não me lembro dos meus últimos 12 dias, mas daqueles 12 dias eu me lembro bem, de todos os detalhes, até da temperatura daqueles dias. É impressionante como tudo aquilo ficou marcado e o tanto que a memória é seletiva.
“Ainda estou aqui”
Minha mãe está perdendo a memória, como se um arquivo estivesse se apagando e a gente, como todo familiar em conflito com alguém com Alzheimer, trata a pessoa falando no passado. É uma coisa muito comum, por exemplo, falar “minha mãe gostava de”, “minha mãe fazia”, já não é mais a mesma pessoa. De repente, quando a minha mãe soltou a frase “ainda estou aqui”, eu tive uma epifania de que ela estava tentando mostrar que ela ainda está presente. É interessante, porque esse livro foi escrito em julho do ano passado e ela continua dizendo essa frase. Ela me disse isso no último fim de semana. Então, fico pensando, “será que ela sabe que lancei um livro, cujo título é essa frase?”. É muito misterioso esse processo da ausência. E meu pai também, desaparecido; eu, escritor, que quase morri no acidente com 20 anos de idade, mas ainda estou aqui para falar de coisas que eu já tinha contado em Feliz ano velho, mas não com tantos detalhes.
História paralela
Pode-se dizer que esse livro é a continuação de Feliz ano velho, pode-se dizer também que é uma história paralela, que é uma intervenção, um cruzamento. Pode-se dizer que é Feliz ano velho reescrito, porque foi escrito em 1982, em plena ditadura militar e não era para ser um livro sobre meu pai e minha mãe, mas um livro sobre meu acidente e a minha geração. Sempre achei que quem deveria escrever um livro sobre meu pai deveria ser a minha mãe. Ela foi mais atuante que ele no combate à ditadura. Ele morreu em 1971 e foi uma vítima da ditadura e minha mãe foi uma combatente. Ela lutou pela anistia, pelo reconhecimento dos desaparecidos e contra a tortura.
Intervenção militar
O livro é uma forma de narrar a vida de uma família comum, que tinha uma casa no Leblon. Meu pai tinha sido cassado em 1964 e nunca mais atuou politicamente. Essas manifestações que pedem a intervenção militar são horrorosas porque revelam que essas pessoas representam uma minoria que não sabe o que aconteceu de fato. Falam de intervenção com banalidade, sem saber os riscos que isso pode causar para a democracia do país.
Amarildo
O caso do meu pai, por exemplo, pode ser comparado ao do Amarildo. Os dois foram presos por uma acusação, não foram julgados, não percorreram o curso normal da Justiça, não tiveram direito à defesa e foram torturados barbaramente. Foram presos, sofreram choque elétrico e desapareceram com o corpo. São casos semelhantes e o caso do Amarildo prova que ainda existe o procedimento do desaparecimento e da tortura, como houve na época da ditadura.
Paternidade
Essa fase com o meu filho pequeno está maravilhosa, porque nos amamos. A gente passa o dia todo juntos, só nos separamos quando ele vai para a escola. Consegui encontrar um equilíbrio entre trabalhar e ser pai. Eu já estava desistindo da vida boêmia, com 56 anos. E é assim: ele dorme e eu escrevo. Minha sorte é que meu filho dorme muito, 12 horas por dia.
Jornalismo
Acho que o jornalismo está vivendo um momento de reciclagem muito intensa, como viveu a indústria fonográfica, a indústria de exibição de cinema. A internet, realmente, veio para revolucionar a indústria do entretenimento, da notícia, dos taxistas, agora, com o Uber. E o jornalismo está em guerra com a informação fácil das redes sociais, às vezes, informações sem fonte. Estava difícil e agora está mais porque o Brasil está vivendo uma recessão. Mas acredito que o jornalismo sobreviverá, sim, vai encontrar outras formas de se manter vivo, porque existem tantas invenções, mentiras e boatos pela internet e é preciso ter essas empresas de tradição e responsabilidade ética para as pessoas buscarem informação. Acredito que a internet vai nos ajudar, não vai matar o jornalismo. Eu mesmo tenho investido muito no meu blog. Gosto da tecnologia, não sou inimigo dela. O que acontece é que, além dessa crise com a tecnologia da informação, tem a crise econômica. Os jornalistas sempre sofreram todas as crises, porque não tem anúncio, as pessoas deixam de ler.
No ano passado, a Comissão da Verdade finalmente conseguiu esclarecer o desaparecimento do político, o que trouxe à família Paiva o alívio de poder dizer com convicção que o pai havia sido morto no segundo dia de torturas. A informação veio na época em que manifestações pelo país pediam a volta do regime militar — mesmo momento, também, em que o primeiro filho nascia. A maneira de lidar com os sentimentos emaranhados foi escrever.
Por telefone, Marcelo Rubens Paiva disse que a mãe, Eunice Paiva, foi personagem fundamental na luta da família contra a ditadura militar. “Se minha mãe não tivesse Alzheimer, eu não teria escrito o livro. Sempre senti que a história do meu pai pertencia a minha mãe. Talvez ela escrevesse esse livro.”
Em meio à confusão mental causada pela perda gradativa da memória, Eunice diz “ainda estou aqui”, um esforço de mostrar que está presente, apesar de não sae lembrar mais de rostos, cores e sabores preferidos. Rubens Paiva, o pai, parece repetir a mesma frase, cada vez que manifestantes vão às ruas pedir pela volta da ditadura militar. E ele, o próprio autor, que poderia ter morrido em um acidente que lhe limitou movimentos, traz com o livro todas as memórias que tornam as histórias possíveis e mostra que ele ainda está presente para contá-las.
Infância
Tive uma infância muito feliz. Convivi com muitas mulheres durante a minha infância e, para mim, isso é foi uma coisa natural. Nasci em uma família com quatro irmãs. Quando papai morreu, eu tinha 11 anos; então, ficaram quatro irmãs, mamãe e eu. Toda a rotina das minhas irmãs era a minha rotina também, acabava que englobava essa riqueza de detalhes. Então, para mim, acabou sendo natural falar e escrever sobre o universo feminino.
Bullying
Eu era baixinho e não tinha irmão, e os baixinhos na escola eram sempre os que mais apanhavam. Apanhei muito na escola. Como eu mudava muito de cidade, não tinha aquela turma enraizada. Eu estudava em São Paulo, depois fui para o Rio, voltei para São Paulo… Sempre em escolas diferentes, eu nunca criei raiz. E acabava tendo que me virar. Era um bullying bem brando, às vezes um tapa aqui, outro ali (risos).
Memórias
Percebi memórias interagindo entre elas. O meu filho construindo a sua própria memória, o que é curioso, porque ele, desde neném, já tem memória, sabe o doce, que gosta, já pede as músicas que quer ouvir. Eu me lembro dos primeiros passos da minha vida, quando eu tinha 3 ou 4 anos. Está todo mundo, a primeira cena que lembra, nunca é de um ano, mas a criança já tem memória com essa idade. Por outro lado, está minha mãe, que mora no bloco ao lado, perdendo a memória reconhece ele. Meu filho é uma das poucas pessoas que minha mãe reconhece.
Henry Bergson
Com o tempo, comecei a discutir a memória, como contar a história do país, recontar sempre a história para poder passar o passado a limpo, aí pensei que esse novo livro era, na verdade, um livro sobre memória. Comecei a pesquisar a memória. O filósofo que mais escreve sobre o tema é o que eu cito no livro, Henry Bergson, que inspirava Marcel Proust, que é um autor que fala muito da memória, do cheiro, como as cores remetem a outras imagens, outros pensamentos. A memória serviu, no livro, para juntar as histórias.
Dor
A memória que mais me causou dor para escrever o livro foi a da morte do meu pai. Foram 12 dias em que minha mãe, minha irmã e meu pai estiveram presos e eu tive uma sensação de abandono completo aos 11 anos de idade. Eu me lembro detalhadamente daqueles 12 dias. Não me lembro dos meus últimos 12 dias, mas daqueles 12 dias eu me lembro bem, de todos os detalhes, até da temperatura daqueles dias. É impressionante como tudo aquilo ficou marcado e o tanto que a memória é seletiva.
“Ainda estou aqui”
Minha mãe está perdendo a memória, como se um arquivo estivesse se apagando e a gente, como todo familiar em conflito com alguém com Alzheimer, trata a pessoa falando no passado. É uma coisa muito comum, por exemplo, falar “minha mãe gostava de”, “minha mãe fazia”, já não é mais a mesma pessoa. De repente, quando a minha mãe soltou a frase “ainda estou aqui”, eu tive uma epifania de que ela estava tentando mostrar que ela ainda está presente. É interessante, porque esse livro foi escrito em julho do ano passado e ela continua dizendo essa frase. Ela me disse isso no último fim de semana. Então, fico pensando, “será que ela sabe que lancei um livro, cujo título é essa frase?”. É muito misterioso esse processo da ausência. E meu pai também, desaparecido; eu, escritor, que quase morri no acidente com 20 anos de idade, mas ainda estou aqui para falar de coisas que eu já tinha contado em Feliz ano velho, mas não com tantos detalhes.
História paralela
Pode-se dizer que esse livro é a continuação de Feliz ano velho, pode-se dizer também que é uma história paralela, que é uma intervenção, um cruzamento. Pode-se dizer que é Feliz ano velho reescrito, porque foi escrito em 1982, em plena ditadura militar e não era para ser um livro sobre meu pai e minha mãe, mas um livro sobre meu acidente e a minha geração. Sempre achei que quem deveria escrever um livro sobre meu pai deveria ser a minha mãe. Ela foi mais atuante que ele no combate à ditadura. Ele morreu em 1971 e foi uma vítima da ditadura e minha mãe foi uma combatente. Ela lutou pela anistia, pelo reconhecimento dos desaparecidos e contra a tortura.
Intervenção militar
O livro é uma forma de narrar a vida de uma família comum, que tinha uma casa no Leblon. Meu pai tinha sido cassado em 1964 e nunca mais atuou politicamente. Essas manifestações que pedem a intervenção militar são horrorosas porque revelam que essas pessoas representam uma minoria que não sabe o que aconteceu de fato. Falam de intervenção com banalidade, sem saber os riscos que isso pode causar para a democracia do país.
Amarildo
O caso do meu pai, por exemplo, pode ser comparado ao do Amarildo. Os dois foram presos por uma acusação, não foram julgados, não percorreram o curso normal da Justiça, não tiveram direito à defesa e foram torturados barbaramente. Foram presos, sofreram choque elétrico e desapareceram com o corpo. São casos semelhantes e o caso do Amarildo prova que ainda existe o procedimento do desaparecimento e da tortura, como houve na época da ditadura.
Paternidade
Essa fase com o meu filho pequeno está maravilhosa, porque nos amamos. A gente passa o dia todo juntos, só nos separamos quando ele vai para a escola. Consegui encontrar um equilíbrio entre trabalhar e ser pai. Eu já estava desistindo da vida boêmia, com 56 anos. E é assim: ele dorme e eu escrevo. Minha sorte é que meu filho dorme muito, 12 horas por dia.
Jornalismo
Acho que o jornalismo está vivendo um momento de reciclagem muito intensa, como viveu a indústria fonográfica, a indústria de exibição de cinema. A internet, realmente, veio para revolucionar a indústria do entretenimento, da notícia, dos taxistas, agora, com o Uber. E o jornalismo está em guerra com a informação fácil das redes sociais, às vezes, informações sem fonte. Estava difícil e agora está mais porque o Brasil está vivendo uma recessão. Mas acredito que o jornalismo sobreviverá, sim, vai encontrar outras formas de se manter vivo, porque existem tantas invenções, mentiras e boatos pela internet e é preciso ter essas empresas de tradição e responsabilidade ética para as pessoas buscarem informação. Acredito que a internet vai nos ajudar, não vai matar o jornalismo. Eu mesmo tenho investido muito no meu blog. Gosto da tecnologia, não sou inimigo dela. O que acontece é que, além dessa crise com a tecnologia da informação, tem a crise econômica. Os jornalistas sempre sofreram todas as crises, porque não tem anúncio, as pessoas deixam de ler.