Ao optar por abrir o espetáculo que celebra seus 40 anos com 'Suíte branca', o Grupo Corpo fez uma aposta na renovação. A peça carrega novidade por ser a coreografia de estreia de Cassi Abranches com a companhia e por usar a trilha de Samuel Rosa, que também estreia nesse tipo de composição. A proposta de abrir espaço para uma nova geração traz frescor ao grupo veterano. E os novos ares fizeram bem ao combinar elementos da linguagem característicos do grupo com movimentos inspirados em outras fontes.
A coreografia parte da sonoridade extraída da tensão da corda da guitarra e usa essa tensão nos movimentos. Ao explorar elementos da física, os bailarinos brincam com a gravidade, criando efeitos visuais de grande plasticidade. A física também é expressa no uso de variações temporais, ora imprimindo mais ritmo, ora marcando sua passagem lentamente, como se a tensão sonora esgarçasse o tempo. Em algumas passagens, o uso de movimentos de solo, com os bailarinos deitados no chão, cria uma curiosa oposição entre os corpos estirados e seus pares eretos.
A trilha de Samuel Rosa serve bem ao propósito de evidenciar a tensão nos momentos mais melódicos de guitarra, de estabelecer quebras ao introduzir ruídos e distorções. No entanto, há momentos em que se distancia dos movimentos e explora pouco as possibilidades rítmicas para pontuar os movimentos. Acerta em outros, ao compor um pop lúdico que remete a uma criança descobrindo a música dos Beatles.
FIO NARRATIVO Os momentos em que a coreografia de Cassi Abranches mais se descola da matriz de Rodrigo Pederneiras são os duos. O jogo de quatro pares, cada qual fazendo seu solo, apresenta combinações inteligentes, nas quais se constata um fio narrativo complementar entre os casais. Ao recorrer ao conjunto, com grande número de bailarinos em cena, além de explorar a harmonia, a coreógrafa faz uso de hiatos e rupturas que trazem elementos de surpresa. Sem deixar de carregar os traços que consagraram a linguagem do Corpo, Cassi Abranches imprime promissora marca própria que, espera-se, evolua para maior autonomia da tradição do grupo. Está claro que há ali alguém interessado em investigar possibilidades sem medo de cair. Trata-se de um salto consciente.
'Dança sinfônica', a segunda coreografia do programa, é uma grande celebração. O reencontro entre a dança de Rodrigo Pederneiras e as composições de Marco Antônio Guimarães evidencia ambos os talentos e a intimidade entre som e movimento. A peça começa com um pot-pourri que cita as 36 criações anteriores do grupo. Apesar de pouca novidade, a coreografia evoca a memória de uma trajetória única na dança brasileira e seu lugar na história. A peça valoriza o passado e desfila um repertório de movimentos já consagrado.
A trilha de Guimarães é de excelência, primorosamente executada pela Orquestra Filarmônica de Minas Gerais e os músicos do Uakti. Dosa momentos de tensão e lirismo, que servem de bandeja à experiência de Pederneiras. Os pontos altos são os movimentos em que o coreógrafo se deixa levar pelo lirismo emotivo, evidenciando e revisitando momentos do passado tão intensamente vivido. A paixão pelo fazer, a carga de uma trajetória são tocantes. Mas o longo e lírico pas des deux de 'Dança sinfônica' leva tudo isso ao extremo. A dor da personagem (há ali um componente, raro, de dramaticidade) dilacera qualquer espectador. É brilhante e já está (ouso afirmar) escrito como um dos momentos mais tocantes nesses 40 anos do Corpo.