

Don José conheceu Carmen ao prendê-la durante um tumulto entre funcionários da fábrica de cigarro. A operária havia agredido uma companheira de trabalho com uma navalha. A cigana não apenas convenceu o militar a soltá-la, como fez dele seu amante. Influenciado por ela, o cabo ingressou numa gangue de contrabandistas, perdeu seu posto no Exército e pôs um ponto final em seu noivado com Micaela, a nora queridinha de sua mãe.
O enredo de 'Carmen', de Bizet, seria mais ou menos assim, se fosse contado pelo jornalismo policial contemporâneo. Ao ensanguentar o palco com um drama passional, Bizet chocou a plateia parisiense na estreia da ópera, em 1857. Também rendeu polêmica o fato de a heroína da história ser uma mulher que não troca sua liberdade por um homem e uma vida familiar convencional, mas prefere viver intensamente aventuras amorosas. É a obra de Bizet que marca a primeira montagem operística da Fundação Clóvis Salgado neste ano, com estreia nesta sexta-feira.
O pivô da tragédia em Carmen é o toureiro Escamillo, interpretado por Licio Bruno, carioca de 50 anos, radicado em Vila Velha (ES). O ator define seu personagem como um homem vaidoso, bem-sucedido, viril, que tem prazer em disputas e se sente atraído pelo “animal indomável” que é Carmen e faz tudo para conquistá-la. “Carmen é uma ópera sobre sentimentos que o ser humano conhece bem, porque os tem dentro de si, mas que, em determinado momento, saem do controle”, afirma. O cantor enxerga no texto uma tensão entre as forças do instinto e as sociais, dada no embate entre aspectos telúricos e a razão.
Carmen é uma mulher que chama a atenção pela beleza e a sensualidade e que se vale desses poderes para afirmar-se. Ela vai ser interpretada por Luciana Bueno, paranaense que vive em São Paulo. “Carmen não é morte, mas vida. É alegre, expansiva, bem resolvida, vive intensamente o que sente, uma mulher que enfrenta tudo de frente, com coragem e não foge ao destino dela. Se as coisas dão errado ou certo, isso para ela é parte da vida”, observa.
Esta é a décima vez que Luciana Bueno encarna a cigana. A cantora conta que já imaginou outro final para a história: Carmem com Don José, que é “o grande amor da vida dela”, embora a relação não tenha dado certo. Mas, pondera a cantora, uma mulher como Carmen não ficaria indiferente ao homem famoso, valente e sensual que é Escamillo. Ele se arrisca a ir atrás dela num lugar ermo, onde estão contrabandistas. “É algo que Don José jamais fez.”
Luciana considera “a música de Carmen extraordinária, arrebatadora do começo ao fim”. A cantora afirma que quando alguém que não ouve ópera habitualmente lhe pede uma dica sobre por onde começar a curtir o gênero, é Carmem sua indicação. “Quem vir a cena e ouvir a música entende tudo, independentemente do texto. Carmem é a personagem que mais me exige fisica e emocionalmente, porque com ela tudo é muito. Não tem nada mais ou menos.”
O papel do homem que, transtornado, mata Carmen é do carioca Fernando Portari. “Todos nós, homens e mulheres, somos Don José. Todos já tivemos uma pessoa que passou por nossa vida, nos transformou e foi embora. O modo de reagir a esta perda é que difere”, afirma ele. Don José é um homem comum, com formação religiosa e moral rígida, que sonha em se casar, constituir uma família e ter filhos. Um homem que “mata o objeto de seu amor por não suportar ter por ela tanto amor”, define Portari. “Carmen é a chave, o portal para Don José descobrir nele dimensões que desconhece”, observa, apontando a cigana como uma representação do inconsciente.
O fascínio que Carmen exerce, na opinião do cantor, que a classifica entre as três mais importantes óperas de todos os tempos, vem da soma de dramaturgia clara e sem maniqueísmo com a força das personagens e “a mágica” da música. “É a música que dá ambiência perfeita para todas as ambiguidades humanas que são postas no palco, criando um outro mundo de significados para elas.” Portari observa que Bizet é inovador na história da ópera por trazer questões e personagens contemporâneas e populares para um gênero que até então abordava apenas tramas épicas, dramas históricos ou sobre reis e rainhas. É o caminho que abre as portas para o musical.
A OUTRA
Há uma segunda mulher em cena: Micaela, uma camponesa que vê seu noivado ruir quando Don José se apaixona por Carmen. “Muitas montagens tratam Micaela como uma boba. Vejo nela uma mulher de coragem, que, percebendo o destino sombrio do noivo, luta por ele e contra a situação até o fim”, afirma a carioca Rosana Lamosa, que interpreta a personagem. Ela cita a ária em que a camponesa pede coragem para enfrentar Carmen, descrita como perigosa e bela, para argumentar: “Micaela revela que cada pessoa tem opção de tomar vários caminhos, ainda que não seja simples administrá-los”.
“A história apresentada em Carmen ocorre todo dia, especialmente no Brasil”, observa Rosana. “A sociedade mudou mas a essência do ser humano é a mesma: questionamentos sobre ética, o amor, a retidão do comportamento etc.”, enumera.
Em tempo: no romance de Prosper Mérimée publicado em 1845, que é fonte de inspiração para Carmen, Don José termina condenado à morte.
Carmen
De Georges Bizet, com a Orquestra Sinfônica de Minas Gerais, Coral Lírico de Minas Gerais, Coral Infantojuvenil do Palácio das Artes, Cia. de Dança Sesiminas.
. Hoje e sábado (dias 20/6 e 27/6), às 20h30; domingo (dias 21/6 e 28/6), às 19h. Grande Teatro do Palácio das Artes, Avenida Afonso Pena, 1.537, Centro, (31) 3236-7400.
. R$ 50 (inteira) e R$ 25 (meia- entrada).
. Classificação: 10 anos.
. Direção musical e regência: Marcelo Ramos.
. Concepção, direção cênica e cenografia: Menelick de Carvalho.
. Adaptação do original, com duração de duas horas, em formato de concerto cênico com trechos da ópera, apresentando de forma concisa a narrativa.