

Sempre interessado por ilusionismo, cálculo e jogos diversos, o britânico marcou o livro (infantojuvenil, a princípio) com inúmeros problemas de matemática e lógica. Nas entrelinhas, muitas referências a vicissitudes da época, piadas regionais, trocadilhos, sátiras a amigos e inimigos do autor, além de paródias de poemas infantis do século 19. Por causa de – e apesar de – toda a complexidade, a fábula de Carroll sobre a visita de uma menina a um universo fantástico povoado por criaturas bizarras se tornou célebre e marco inicial do chamado gênero literário nonsense.
O público infantil dificilmente irá perceber além da superfície textual, mas por trás da aventura de Alice estão reflexões sobre a preocupação do ser humano com o tempo, com os rumos da ciência, com os poderes estabelecidos e a organização da sociedade. Isso tudo, vale lembrar, a partir do ponto de vista de alguém vivendo a Era Vitoriana, no Reino Unido de dois séculos atrás. Na definição do tradutor para o português, o historiador Nicolau Sevcenko (falecido no ano passado), a narrativa é “a melhor lição de ética, de irreverência e de inconformismo, tanto para crianças quanto para adultos”.
Uma mente doentia
Pedófilo, usuário de drogas, vítima de transtornos mentais e alucinações decorrentes de enxaqueca. Assim como sua magnum opus, Lewis Carroll foi acusado, julgado e condenado ao sabor de cada época subsequente à dele. A mais recorrente polêmica diz respeito à descarada preferência por meninas da faixa etária de Alice Lidell (de até 10 anos), em detrimento de mulheres adultas. Muitos fatos depõem contra o escritor, como o fato de ele ter sistematicamente fotografado crianças nuas (pesquisadores apontam, por outro lado, ser esse um hábito comum naquela época, em uma espécie de culto à inocência infantil).
Outras teorias associam a imagem de Carroll ao uso do fungo ergot, fonte primária da droga alucinógena LSD, além de maconha. Mais uma vez a história é faz o papel de defensora do criador de Alice – a substância psicoativa era prescrita como tratamento médico para diversos fins no século 19 e o haxixe era legalizado. Há, ainda, quem atribui os devaneios da história não à imaginação do romancista, mas a supostas enxaquecas ou crises convulsivas, cujos sintomas incluem alucinações visuais, auditivas e olfativas.
Estudiosos da obra e biografia do escritor alertam para o cuidado necessário ao se fazer diagnósticos históricos, principalmente porque os sintomas, nesse caso, são descritos de maneira leiga e não por um médico. O mesmo vale para as interpretações a partir de comportamentos característicos de outrora, quando os costumes sociais tinham significados distintos. Por via das dúvidas, a melhor opção é tomar conhecimento dos indícios biográficos, mas sem fazer julgamentos definitivos. Assim como Alice Tidell, Lewis Carroll não só é fruto de um tempo e um lugar, como já é falecido há bastante tempo. Sua obra, por outro lado, é imortal.