Um grupo de garotos mal entrados na casa dos vinte (alguns, nem isso) que querem montar uma banda de rock. Esse enredo já existiu (e ainda vai existir) milhares de vezes. Mas, em duas ocasiões bem distintas, essa mesma história acabou sendo determinante para mais de uma geração.
Foram liderados por vocalistas carismáticos, com um pendor para a poesia e outro para a tragédia – isso sem falar da influência marcante que os ingleses tiveram no início da carreira da Legião, bem como a dança característica de Renato Russo, emulada do que Ian Curtis fazia no palco.
Com a morte de Curtis, há 35 anos, e de Renato, há quase 19, o mito em torno do Joy Division e da Legião só fez crescer. Já biografadas mais de uma vez, as duas bandas ganham agora um olhar de dentro.
O baixista Peter Hook e o guitarrista Dado Villa-Lobos publicaram suas próprias memórias. As duas autobiografias ainda têm em comum o fato de terem sido escritas pelos principais instrumentistas de suas respectivas bandas. No entanto, as narrativas têm resultados bem distintos.
SEM FRAUDE NEM FAVOR
Hook evita o tom rancoroso e mantém Ian Curtis como um enigma
Em 2007, o baixista Peter Hook deixou o New Order. A partida acabou sendo traduzida no fim de uma das mais influentes bandas inglesas da década de 1980, nascida sob as cinzas do Joy Division. Quatro anos mais tarde, o New Order voltou à ativa. Para surpresa de Hook, à revelia dele.
A biografia Joy Division – Unknown pleasures, de Hook – editada em inglês em 2013 e publicada agora no Brasil, pela Seoman –, poderia ser um livro pesado e rancoroso.
Haveria sentido, já que o Joy Division passou para a história da música pop como uma banda sombria e fria, que terminou no dia em que seu vocalista, Ian Curtis, enforcou-se em casa. E Hook, se já vivia às turras com Bernard Sumner e Stephen Morris em seus últimos anos no New Order, poderia aproveitar o próprio livro para destilar rancor e veneno nos ex-companheiros, guitarrista e baterista, respectivamente.
Inteligentemente, fez o oposto. Unknown pleasures é, apesar da tragédia que terminou com a banda quatro anos depois de formada, uma narrativa bem-humorada, fluida, que lança novas luzes à figura do próprio Curtis. Contextualizando as memórias de Hook, cada capítulo traz uma linha do tempo, com as datas dos acontecimentos mais importantes do período. Há ainda a discografia comentada da banda e uma lista com todos os shows.
De maneira direta, por vezes como que conversando com o leitor, praguejando e também se autodepreciando – tom semelhante ao utilizado por Keith Richards em Vida (2010) –, Hook conta sua história pessoal, desmistifica a figura de Curtis e ainda faz um panorama da Manchester de meados dos anos 1970.
Afirma que, mesmo com a convivência, não conheceu profundamente Curtis. Para Hook, ele era um cara adorável que fazia de tudo para agradar os outros. Um cara que podia se dedicar com os amigos a uma inconsequente noitada de escatologia depois de um show. Um cara que, fã de William Burroughs, teria levado um “vá a merda, garoto!” do escritor quando pediu a ele para lhe dar de presente o livro que autografava. E que podia mudar de atitude, dependendo de seu interlocutor.
Ainda sobre Curtis, Hook faz um mea culpa. Admite não ter prestado a devida atenção à doença que acometia o amigo, que não deveria ter continuado a fazer shows. Diagnosticado epilético em janeiro de 1979, Curtis, nos últimos meses de vida, sofreu ataques no palco em absolutamente todas as apresentações (várias por semana) do Joy Division. Em crise no casamento, com uma filha pequena, apaixonado por uma jornalista belga e tomando forte medicação, a pressão vinha de todos os lados.
Integrante da classe trabalhadora que sempre se portou como um casca-grossa (as palavras são dele), Hook é músico autodidata. Usa somente três dedos para tocar baixo porque aprendeu errado; descobriu que, se tocasse seu instrumento muito abaixo da linha da cintura, pareceria ser um músico mais legal, quase cool; confessa que só prestou atenção às letras do Joy Division após a morte de Curtis, numa tentativa de entender o que aconteceu.
E garante que nunca, em momento algum, a banda, a despeito das acusações no início de carreira, teve alguma admiração pelo nazismo – Joy Division era o nome dado aos grupos de mulheres judias que satisfaziam sexualmente os soldados nazistas em campos de concentração.
Trecho
JOY DIVISION – UNKOWN PLEASURES
De Peter Hook. Editora Seoman, 392 páginas, R$ 52
SOU A GOTA D’ÁGUA
Dado não turbina amizade na Legião, mas reverencia Renato Russo
A diferença crucial entre uma biografia e uma autobiografia é o olhar. Ao contar a própria história, o autor dá sua versão sobre algo que ocorreu com ele, sem ficar sujeito à interpretação de alguém que pesquisou sobre determinado fato, mas não o vivenciou. De maneira geral, autobiografias ainda têm uma proximidade maior com o leitor, muitas vezes em tom de conversa.
O maior problema de Memórias de um legionário é que Dado Villa-Lobos escreve na primeira pessoa como se estivesse na terceira. Ao manter uma distância considerável de sua própria narrativa, o guitarrista não avança na trajetória da Legião Urbana.
O guitarrista não entrou na empreitada sozinho. O livro foi escrito a seis mãos, com os pesquisadores Felipe Demier (que estimulou o músico a produzir a biografia) e Romulo Mattos (que se responsabilizou pela pesquisa histórica).
Devido à sua importância e ao crescimento do mito desde a morte de Renato Russo, a Legião é uma das bandas do Rock Brasil que mais têm relatos biográficos. Dado reúne citações de todos os livros para contar muitos dos fatos que ocorreram com sua banda.
Um bom exemplo vem de um dos primeiros shows em que tocou, em abril de 1983, na chamada Temporada de Rock Brasiliense, quando se apresentaram as principais bandas da cidade. Apresenta o olhar de três biógrafos, até chegar ao seu próprio relato, que não acrescenta nada ao que já foi escrito. Essa situação se repete ao longo do livro.
A despeito de não trazer nenhuma grande revelação, Memórias de um legionário traz alguns pontos positivos. Dado esmiúça as gravações de todos os álbuns da banda, fazendo um relato completo do dia a dia no estúdio. A cada novo disco lançado, ainda faz um panorama crítico, repassando a recepção que a imprensa reservou a cada trabalho.
O olhar de protagonista aparece raras vezes, quando fala do relacionamento entre os colegas de banda. A Renato, logicamente, é dedicado o maior espaço. São vários os conflitos, desde o primeiro disco, quando Dado lê no diário do vocalista, em inglês, “I hate those guitars” (Eu odeio aquelas guitarras); ou quando ele dá um piti com Fernanda, mulher de Dado e então empresária da banda, porque ela não havia comprado o leite que ele queria.
Afirmando que o trio central da Legião – Dado, Renato e Marcelo Bonfá – nunca foi realmente um trio de amigos, mas de companheiros de banda, o autor adota na parte final um tom mais carinhoso, principalmente quando a Aids começa a minar Renato. Dá todos os créditos ao líder da Legião – “um personagem muito especial, daquele tipo que, talvez, surja apenas um por geração” –, mas não vai além do que outros, que não tiveram a convivência que ele teve, já fizeram.
Trecho
“‘Cuidado, não toca aí não, tem meu sangue aí.’ Ele havia se cortado e tinha um borrinho de sangue coagulado. ‘Renato, você é um escroto mesmo, e o vírus desse sangue aí já morreu’, eu reclamei. Mas, a partir daí, conversamos mais seriamente. Papo vem, papo vai, de algum modo falamos um para o outro: ‘Bom, a sua condição é essa, né?’. Afinal, eu também tinha uma condição instável, quando se trata de saúde física. Não tinha a mesma gravidade, certamente... ‘Somos os dois ‘éticos’ da banda, você diabético e eu aidético, hahaha!’, completou ele. E assim terminou nossa conversa naquela clínica. E foi o que então nós todos decidimos: manter esse cara ativo, trabalhando.”
DADO VILLA-LOBOS – MEMÓRIAS DE UM LEGIONÁRIO
De Dado Villa-Lobos, Felipe Demier e Romulo Mattos. Editora Mauad X, 256 páginas, R$ 49,90