Um país pacífico, próspero e com pleno emprego. Uma capital em que as mulheres não trabalham e onde as jovens abandonam minissaias, adotando vestes "não desejáveis", como véus islâmicos integrais. Uma Europa em que a poligamia é legalizada, minaretes são construídos e até universidades públicas como a Sorbonne, privatizadas, acabam nas mãos de investidores árabes. Depois de vencer em 2010 o Prêmio Goncourt, um dos mais prestigiosos do mundo, o escritor francês Michel Houellebecq retoma no polêmico 'Submissão' a crítica às transformações individuais e sociais, desta vez imaginando uma França islamizada.
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Nas ruas de Paris, rajadas de metralhadoras ressoam próximas aos bairros mais centrais. Jovens de movimentos identitários, de extrema direita católica, e salafistas, ultraconservadores muçulmanos, lançam-se a um conflito que põe o país à beira da guerra civil, situação mascarada por uma imprensa manipuladora, que não veicula a gravidade real dos fatos.
A disputa favorece os extremos e faz despontar uma terceira força política, liderada pelo fictício Mohammed Ben Abbes, candidato da Fraternidade Muçulmana - uma alusão ao grupo conservador Irmandade Muçulmana, que ascendeu ao poder em países como Tunísia e Egito durante a Primavera Árabe.
Político jovem, habilidoso e com discurso republicano, Ben Abbes vai ao segundo turno das eleições com a candidata (real) de extrema direita Marine Le Pen, líder da Frente Nacional (FN), e acaba eleito graças à decisão do Partido Socialista (PS) de formar uma coalizão com os muçulmanos.
A eleição é sucedida de uma mudança brutal na sociedade, que Houellebecq, no entanto, descreve como lenta. Em três meses, o país é pacificado, a economia avança.
Então, as transformações tocam a vida de François - o nome próprio serve como um jogo de palavras com "francês", ou o cidadão comum. Professor de literatura apático e alheio à busca pelo sucesso na carreira, o acadêmico vive entre as aulas que dá com indiferença, o deserto afetivo, a desagregação familiar absoluta, as estudantes com quem, às vezes, mantém relações, um envolvimento sem paixão com uma universitária judia que o troca por Israel e a vida sexual fracassada.
No que diz respeito ao protagonista, ou seja, "Submissão" traz a típica existência individual e social, vazia ao extremo, do personagem "houellebecquiano", que permeia toda a obra do autor: 'A Extensão do Domínio da Luta' (1994), 'Partículas Elementares' (1998), 'Plataforma' (2001), 'A Possibilidade de Uma Ilha' (2005) e 'A Carta e o Território' (2010).
Foi o fato de captar com brilhantismo o imaginário e descrever de forma crua e sulfurosa esse perfil pós-moderno de homem europeu comum, sem rumos, sem fé, esmagado pelas implicações sociais do liberalismo político, econômico e sexual contemporâneo, que fez de Houellebecq um sucesso internacional de público e crítica desde os anos 1990. Não à toa o autor é descrito por muitos como um gênio à espera do Nobel de Literatura.
Em 'Submissão', Houellebecq repete a narrativa do deprimido crônico, politicamente incorreto, misógino, fracassado na vida privada e em geral bem-sucedido na carreira, para a qual não dá a mínima. Mas, como em 'Plataforma', por exemplo, alia uma temática explosiva ao personagem controverso - a bem da verdade, cada vez menos surpreendente aos olhos dos círculos literários da França.
Em lugar do turismo sexual, um dos temas de seu terceiro livro, o autor põe em destaque uma suposta transição política, social e religiosa da França. Daí resultam a repercussão internacional, as discussões acaloradas entre críticos e, claro, suas vendas astronômicas.
Mas, para detratores, o autor usou o recurso fácil da narrativa do medo que move a extrema direita na França. "Submissão" incorpora em sua história cenários da "grande substituição", uma pseudoteoria descrita em 2010 pelo escritor extremista Renaud Camus baseada na ideia de que, pela imigração e pela fecundidade "minorias visíveis" - árabes e negros - se tornarão maioria na França, substituindo a população francesa "de origem", impondo costumes e religião e, em última análise, matando a herança greco-cristã que faz a essência da cultura europeia.
Esse argumento, em geral defendido por minorias fascistas ou de direita católica integrista, mal esconde sua islamofobia e, de tão radical e complotista, foi rejeitado até por Marine Le Pen, líder da extrema direita. Fragmentos esparsos desse pensamento, porém, têm sido incorporados por intelectuais como o historiador e romancista Max Gallo e sobretudo o ensaísta Eric Zemmour, autor de "Suicide Français" (2014), um best-seller no qual desfila clichês sobre a suposta islamização da França.
'Submissão' não faz a apologia aberta da extrema direita. É sutil até mesmo quando coloca a Frente Nacional, da família Le Pen, como último refúgio dos princípios republicanos e do Estado laico, e os socialistas como colaboradores da nova França muçulmana. Também é ambíguo, e pode até dar a impressão de ser um livro "islamófilo", favorável ao Islã, embora o autor tenha definido em 2001 a religião de Maomé como "a mais idiota" -, ele voltou atrás no que disse.
Houellebecq faz ficção e, portanto, seus personagens são livres para expressar ideias e defender bandeiras, mesmo extremistas. Mas, diante de críticas duras a Submissão, o autor reiterou que não apoia nenhum partido ou nenhuma ideologia. "Eu não sou um intelectual. Eu não tomo partido, não defendo nenhum regime. Eu renego toda responsabilidade, e reivindico a irresponsabilidade" ressaltou em uma entrevista ao jornalista Sylvain Bourmeau, publicada pela revista "The Paris Review".
Independentemente de Houellebecq acreditar nos cenários que descreve ou não, o fato é que, antes mesmo de ser lançado, "Submissão" e sua fórmula de polêmica viva deu certo. Com a ofensiva de mídia de sua editora, Flammarion, o livro tomou as discussões literárias e políticas na França.
Não bastasse, no dia exato de seu lançamento, 7 de janeiro, Paris viveu o trauma do atentado ao jornal satírico "Charlie Hebdo", que resultou em 12 mortos por dois radicais islâmicos. Chocado pelo assassinato de um amigo e por motivos de segurança, Houllebecq suspendeu entrevistas e se retirou, enquanto seu livro seguia sua senda: 120 mil exemplares vendidos em cinco dias, 345 mil em um mês e topo das vendas na França, na Alemanha e na Itália. Na atmosfera de maniqueísmos do Brasil atual, não é difícil prever o futuro próximo.