É sem pudor e com o sorriso no rosto que o luthier e bonequeiro Gianfranco Fiorini assume: “Este aqui é um dos meus amores”. A mulher, Bernadete Fiorini, não se enciúma e até compartilha do mesmo sentimento. “Mas é meu também”, responde, antes de cair na risada. É difícil mesmo não se encantar pelo caminhão Ford 1936. Ainda mais quando tem uma história tão boa. Em 1999, o veículo foi adquirido do compositor Pacífico Mascarenhas com o fim específico de se tornar o palco da companhia fundada pelo casal.
Com sede em Contagem, a Cia. Fiorini Teatro Mambembe é um dos grupos que têm transformado carros em palcos, que por sua vez se convertem em verdadeiros personagens a dividir a cena com os artistas. Depois da célebre Esmeralda, a Veraneio de 'Romeu e Julieta' do Grupo Galpão, temos a Kombi La Poderosa do grupo Circo Teatro El Índivíduo, a motocicleta da Cia. Caixa 4 Teatro de Bonecos de Sabará, o fusca da Cia. Pierrot Lunar e o caminhão da Associação Teatro de Bonecos Origens. Ou seja, uma galera indo aonde o povo está, com criatividade e bom humor.
Foram quatro anos de reforma até que o caminhão da Cia. Fiorini pudesse finalmente levar os espetáculos pelas ruas e praças. Giancarlo é um tipo Professor Pardal. “Minha vida passa a ter mais sentido quando vou transformando as coisas”, assume. No caso do caminhão, percorreu ferros-velhos, começou a juntar uma peça daqui, outra dali e, na mistura de pedaços de 14 modelos de carros diferentes surge o palco da trupe.
Gianfranco garante que a companhia já passou por pelo menos 200 cidades. Quando o grupo chega a uma localidade, a única coisa que precisa é de um ponto de energia e banheiro. Dentro do baú tem mesa de som, estrutura de iluminação, espaço de camarim e os figurinos. Em cerca de 40 minutos, Fiorini e Marcão de Jesus, também integrante do grupo, montam toda a estrutura.
Acessibilidade é palavra-chave. “A gente faz pensando no público da rua. Temos que levar alguma coisa que seja viável, agradável e atraente para essa plateia diversa e heterogêna que vamos encontrar na rua”, afirma Bernadete. Desde que a família – as filhas Cecília, Helena e Laura Fiorini também fazem parte do grupo – faz teatro no caminhão, já foram montadas seis peças diferentes, todas utilizando a linguagem dos bonecos. Atualmente, circulam com 'Cordel de papel', adaptação do clássico História de Juvenal e o dragão, do nordestino Leandro Gomes de Barros.
La Poderosa
A relação do Circo Teatro El Índivíduo com o teatro mambembe é caso de amor antigo. Há pelo menos 15 anos, os argentinos Marcelo Castillo e Diego Gamarra, respectivamente, os palhaços Mercurio e Cloro, pesquisam esse jeito de levar espetáculos ao público. Há cerca de uma década fixaram residência no Brasil e, em 2006, compraram La Poderosa, a Kombi modelo 1972 utilizada como palco e personagem das peças 'Cirkombinados' e 'Bombeiros'. O nome é uma homenagem à moto de Che Guevara.
“É o diferencial do grupo. Temos uma linha de pesquisa com carros transformados. Nosso foco é a rua”, afirma Diego Gamarra. Foram mais de dois anos procurando o veículo certo e depois mais um de reforma. A Kombi foi cortada ao meio, perdeu um eixo, para favorecer a mobilidade. Roda, mas como já deu muito problema pelas estradas, atualmente é rebocada em uma carretinha. Os problemas mecânicos, inclusive, viraram mote de Cirkombinados, com direção de Rodrigo Robleño. “É a história de dois palhaços que viajam para se apresentar e no primeiro quarteirão a Kombi estraga e eles têm que fazer a peça ali mesmo”, conta Diego.
Na estrada
“Sempre tivemos como princípio a democratização. Por isso optamos por ter esse equipamento itinerante para atender a uma população que tem pouco acesso”, justifica Roberto Silva, integrante da Associação Teatro de Bonecos Origens. O grupo, com sede no Barreiro, transformou um caminhão Volkswagen 690, com cinco metros de comprimento e 2,5 metros de altura, na caixa cênica.
A companhia carrega de tudo ali, até mesmo as cadeiras para o público. “Já estivemos em Curitiba, São Paulo, em todo o interior de Minas, e a partir de 2015 passaremos a circular pelos parques de Belo Horizonte”, conta Roberto. Já são mais de 10 mil quilômetros rodados e a certeza de que pouco a pouco cumprem seu papel. “Somos reconhecidos como um equipamento que faz parte da vida cotidiana de BH. Circulamos as regionais, somos parte da cidade”, resume.
Na garupa
Palcos em caminhões, carros antigos ou mais modernos e até em bicicletas não eram novidade para Giselle Fernandes, integrante da Cia. Caixa 4 Teatro de Bonecos de Sabará. Na época em que pensou em criar um palco ambulante, ela já se deslocava de moto. “Por que não levar o palco na garupa?”, pensou. “Quis fazer algo que nunca tinha visto”, reconhece.
Em 2009, adaptou o veículo para receber 'Cirk in', espetáculo de teatro de bonecos. Com direção de Tião Viana, o tipo de montagem chamada de lambe-lambe, ou seja, pequenas caixas cênicas com apresentações restritas a poucos espectadores. Nas cenas, que não passam de dois minutos, tem bailarina na corda bamba, mágico, palhaço e outros números tradicionais. Ao fim, o baú se abre para um espetáculo de 15 minutos, com texto de Fernando Limoeiro.
“Chego com o baú encaixado na moto, abro e começa o espetáculo”, conta Giselle. Ali dentro também tem de tudo: do cenário à iluminação. Batizado de Miniteatro Moto Expresso, a ideia é criar um expresso de cultura. 'Cirk In', a primeira experiência no formato, circulou por vários festivais. O Caixa4 já trabalha na próxima peça.
Onde está Esmeralda?
Ícone do teatro mineiro, a Veraneio Esmeralda, usada pelo Grupo Galpão nas primeiras apresentações de Romeu e Julieta, fica hoje em uma garagem no Bairro Jaqueline. Seu guardião é Bagre, que há anos cuida do carreto dos grupos Galpão e Corpo e da banda Skank.
Teatro mambembe
Comum na Europa durante a Idade Média, o chamado teatro mambembe fazia referência ao fato de atores, malabaristas, cantores e outros profissionais das artes começarem a viajar em carroças para apresentar seus espetáculos, fugindo da repressão da Igreja. No Brasil, a expressão começou a ser utilizada entre os séculos 17 e 18, também como referência a grupos teatrais e circenses itinerantes, que apresentam espetáculos populares sem recursos tecnológicos.