São Paulo – Na casa de Mauricio de Sousa todo mundo contava histórias, principalmente sua avó, que mesmo analfabeta tinha uma narrativa que envolvia a criançada em Mogi das Cruzes, interior de São Paulo. Nascido em Santa Isabel, perto dali, o menino queria seguir a tradição da família. “Esse fascínio que encanta até hoje gente de todas as gerações, acho que é porque consegui refletir no meu trabalho o jeito da minha avó de contar histórias”, diz o criador da Turma da Mônica. Mauricio de Sousa é o entrevistado desta semana na série Escultores de sonhos, que o Estado de Minas vem publicando com os mestres da literatura infantojuvenil brasileira.
saiba mais
Ainda criança, Mauricio copiava as histórias de outras revistas. Colocava o papel em cima das ilustrações para pegar os traços. E, claro, não parava de ler os gibis. “Só pensava nisso e lia muito também. Lia de tudo. Sem falar que frequentava muito teatro e cinema desde criança, com meu pai. Outra coisa que ajudou muito na minha formação foi a convivência com todo tipo de gente. Na minha rua, tinha pessoas de todas as classes, etnias, cores e culturas, então, não tive preconceito de nenhuma espécie, todo mundo tratava todo mundo igualmente”, recorda.
Ao longo desse tempo, Mauricio de Sousa foi acompanhando a evolução dos quadrinhos, dos personagens e dos estilos, até que chegou um determinado momento em que todos com quem convivia achavam que ele desenhava muito bem. Foi aí que tomou a decisão de colocar seus desenhos debaixo do braço e partir para São Paulo. “Queria ser desenhista e bati na porta de vários jornais e revistas. Acabei indo parar na Folha. Mostrei meus desenhos para o então diretor de arte do jornal, ele disse: ‘Olha, menino, desista! Vai fazer outra coisa na vida, porque desenho não dá futuro para ninguém. Não dá dinheiro’. Meu mundo caiu. Ainda bem que não estava do lado de nenhuma janela e nenhum abismo para pular”, brinca.
Mauricio, que na época deveria ter uns 17 anos, já estava se preparando para ir embora, completamente desolado, quando um jornalista o viu e perguntou o que tinha acontecido. Ele analisou os desenhos do adolescente e lhe deu um conselho: que fizesse um teste para entrar no jornal como repórter, pois pelo menos estaria enturmado com aquele meio e, quando surgisse uma oportunidade na área de ilustração, ele poderia aproveitar. “Fiz o teste, passei e me tornei repórter policial. Na minha cabeça, esse tipo de jornalista era o mocinho das histórias em quadrinhos, o super-herói, e fiquei empolgado. Comprei uma capa e um chapéu de detetive americano e voltei para a redação fantasiado. Lógico que todo mundo me gozou. Mas como era muito tímido, com aquela roupa tinha coragem de conversar com qualquer pessoa, de investigar os crimes”, recorda.
Ao mesmo tempo em que se entusiasmava com o novo ofício, o ‘pai’ da Mônica, Cebolinha e companhia limitada ia observando e aprendendo sobre todas as publicações, sobretudo as tirinhas que chegavam dos Estados Unidos. Ele se inteirou praticamente de todo o processo. “Com todo aquele material, acabei aprendendo como faziam, vendiam, publicavam, enfim, como transformavam histórias em quadrinhos em negócios. Vi que aquilo não era apenas arte. Naqueles anos que fiquei na reportagem, fiz uma verdadeira faculdade sobre tudo que os norte-americanos sabiam. O marketing, os prospectos, os folders, o planejamento. Juntei um monte de material, estudava e, assim, me preparei para o que eu ia fazer depois”, recorda.
Estava nascendo a Turma da Mônica, uma indústria que conquistaria 100 países e chegaria à marca de 1 bilhão de revistas vendidas em 55 anos de história. E que, pela vitalidade de seu criador, ainda está longe de perder o pique.
Entre os mais lidos
Maurício de Sousa é o sexto escritor mais lembrado pelos leitores brasileiros, de acordo com informação do Instituto Pró-Livro. À frente dele estão apenas, pela ordem, Monteiro Lobato, Machado de Assis, Paulo Coelho, Jorge Amado e Carlos Drummond de Andrade.
Números
55 anos de carreira
400 personagens criados
70 personagens fixos
1 bilhão de revistas vendidas no mundo
100 países já publicaram suas histórias
No fim dos anos 1950, o Brasil vivia um período turbulento, com muitos protestos e greves. Por causa da conjuntura, Mauricio de Sousa teve que sair da reportagem policial para cobrir os movimentos populares. “Era uma coisa muito violenta. Com cinco, 10 mortos por dia. Não queria aquilo para mim de jeito nenhum. Queria desenhar, larguei o emprego, fui para casa e passei uma semana trancado até criar minha primeira história”, conta. Era a historinha do Bidu, inspirada no seu cãozinho Cuíca, e de seu dono, Franjinha, que acabou sendo publicada semanalmente primeiro na Folha da Tarde e depois na Folha da Manhã, onde Mauricio de Sousa iniciou sua carreira.
“Queria escrever e desenhar sobre o que vivi e conhecia, e como tinha sido moleque havia pouco tempo e tinha tido um cachorro, poderia reproduzir isso na história em quadrinhos. Não tinha vivência para fazer coisas mais sofisticadas. E um menino e um cachorro sempre têm aventuras. O nome Bidu se deve a uma gíria usada na época, que se referia a quem era muito sabido, sabichão. Porque o Bidu era assim, um cão muito inteligente”, explica.
Há muitos anos ele nem desenha mais, a não ser em alguma ocasião especial ou quando quer dar uma finalizada em alguma coisa, até para não perder a mão. “Todos meus artistas são ótimos. Não preciso dar o mote da história. Todos eles aprenderam a ler com as nossas histórias, então sabem o clima que tem que fazer parte das histórias, de preferência com temas atuais. E como os personagem foram criados com muita força e têm características marcantes, basta pegar o motivo e despejar os personagens dentro. Assim eles vão reagir à moda deles. A história fica pronta”, ensina.
Mesmo com uma equipe tão numerosa, Mauricio de Sousa consegue reconhecer quem desenhou e quem escreveu cada historinha. “E a minha esposa, a Alice, que é a diretora do estúdio, que foi arte-finalista, cuida muito bem do desenho e sabe dizer o que está bom ou não. Analisa minuciosamente. Isso é muito importante também”, frisa. Aliás, a família está bem presente na empresa. Além de vários filhos terem inspirados personagens, alguns também trabalham com o pai, como a própria Mônica, que faz parte da diretoria, Marina, desenhista como Mauricio, e Mauro, também diretor.
Um de seus mais recentes sucessos é a revista Turma da Mônica Jovem, na qual os personagens estão com cerca de 15 anos. Sua tiragem chega a atingir marcas expressivas de mais de 500 mil exemplares mensais. Nos últimos anos, Mauricio expandiu seu universo para diversos públicos, com projetos como as Graphics MSP, nas quais autores convidados reinterpretam seus personagens em seus próprios estilos. A linha é um sucesso de vendas e de crítica. O próximo passo é a Turma da Mônica Adulta, mas o projeto vai demorar pelo menos seis anos para ser concretizado.
Academia e lambada
Primeiro quadrinista brasileiro e, segundo ele do mundo, a fazer parte de uma Academia de Letras – no caso, a paulista – Mauricio acredita que tem provocado a repetição de um fenômeno. Assim como ele, milhões brasileiros aprenderam a ler por meio dos gibis. “Acho que somos os maiores alfabetizadores do país. E fico muito feliz com isso, mas dá uma sensação também de insegurança, porque morro de medo de sair um erro. Quando sai, quero matar (risos). E por conta dessa responsabilidade, temos cinco revisores. Para nós, isso é vital”, salienta.
E, claro, além de ter um português correto, o desenhista e empresário lembra que as histórias devem ter um bom apelo. “Têm que ser alegres, divertidas e interessantes, atrair as crianças na medida do possível e falar de hábitos e comportamentos legais, que não prejudiquem ninguém. Nossas histórias têm uma boa busca da moral, bons costumes e principalmente ética”, assegura.
Mauricio acrescenta que nesse meio século de carreira nunca enfrentou grandes problemas em relação à censura e que o único personagem que chegou a ter uma certa resistência foi Chico Bento. “A gente praticamente passou incólume nesses 50 anos, porque sempre tivemos muito cuidado e sabíamos até onde podíamos ir. Mas aqui e ali houve alguma coisinha. Chegaram a querer acabar com o Chico Bento, na época da ditadura, porque ele falava errado, tem aquele sotaque caipira e poderia passar isso para a criançada. Pressionaram a Editora Abril, mas ainda bem que não foi para a frente”, comenta.
Sempre de bom humor e com muita disposição para o trabalho – chega a atravessar a madrugada no computador – Mauricio ainda encontra tempo para cuidar da saúde. “Faço RPG, tenho uma personal e estou contratando uma professora de dança para mexer essa parte do quadril. Quero fazer lambada, salsa ou algo assim”, diz, com seu sorriso inconfundível.
Nascimento da Mônica
Já existiam Bidu, Franjinha, Cebolinha, Cascão, Xaveco e nada de uma personagem feminina. Foi então que o pessoal do jornal onde Mauricio publicava suas tirinhas o questionou: “Só tem moleque nas suas histórias. Você tem medo de mulher?”. O artista, então, se deu conta: não sabia desenhar mulher. “Desenhava e escrevia o que vivia e nunca fui mulher, como é que ia fazer? Mas sabia que precisava de um personagem feminino. Foi quando me atinei que na minha casa eu tinha três mulheres e que conhecia muito bem minhas filhas. Elas eram bem pequeninas, mas mesmo assim a gente conhece a personalidade da criança assim que ela abre os olhos. Peguei a Mônica, coloquei na história e ela roubou a cena de cara. Porque ela veio com uma carga de humanidade muito forte e a Magali também, que inclusive mora em BH e aproveita bastante da cozinha mineira (risos). E aí comecei a pegar mais gente da família, mais personagens. A Mariângela, a mais velha, inspirou a Maria Cebolinha. E fui colocando um monte de parentes e amigos. Cebolinha e Cascão eram amigos de infância, Chico Bento é inspirado em um tio-avô que morava na roça e o sotaque é do Sul de Minas.”
TOQUES DE MESTRE
Como surgem suas histórias?
Primeiro pinta a necessidade, aliada à vontade de extravasar. E venho de uma família de contadores de história, isso me influenciou demais. Acho que as histórias vêm realmente de tudo que aprendi, assimilei com os gibis norte-americanos, o estilo, a técnica, os truques de cena, tudo isso ficou na minha cabeça. Fui juntando e despejando. Se parar aqui agora para criar uma história sem planejar, certamente vai sair. Ela vai ter começo, meio e fim. E não é mágica. É técnica aprendida e assimilada, que você vai usando. É igual uma cozinheira. Ela pega aquele tanto de ingredientes e sem pensar sai um prato que é uma beleza.
Qual é seu método de trabalho?
Vou ao estúdio todos os dias, geralmente à tarde. De manhã, trabalho no meu computador em casa, despachando. Quando desenho, é à mão. A Marina (filha) já esta desenhando no computador. É uma questão de hábito. Tentei desenhar no computador, mas como estava acostumado com o lápis, não teve jeito. Mas gosto mesmo de trabalhar é de madrugada e distribuo serviço para todo mundo. É bem mais tranquilo. Não só quadrinhos. Tem licenciamento, a parte internacional, os parques. Adoro esse horário, principalmente agora que não preciso dormir tanto por causa da idade. Quando a gente é jovem é mais preguiçoso, mas agora descobri que quanto mais velho, menos falta de dormir a gente sente. Por isso, tenho mais tempo para trabalhar (risos).
Como você desenvolve seus personagens?
Criar um personagem é um processo demorado, porque você tem que cercá-lo de tudo. Tem que treinar como ele reagiria em determinada situação, como ele reage com outros personagens, estudar o mercado. E custa muito caro. Boto muita gente para trabalhar num projeto desse. E como custa caro, ele tem que ser sustentável. Tenho um projeto de uma família afro-descendente, por exemplo, que já está pronto, mas depende de uma série de fatores. A gente os batizou com nomes que tinham conotação religiosa sem saber, e aí tivemos que recomeçar. Tem uma série de fatores envolvidos. Tenho um filho caçula, o Marcelo, que tem um personagem criado, desenhado, mas estamos esperando um intervalo para poder ser lançado. Meus netos e bisnetos também estão doidos para virar personagens. Até gente famosa me pede (risos). E não dá para ficar inventando tanto, senão não dá para cuidar bem.
Você se lembra qual foi o primeiro livro que leu?
O primeiro livro que li, não deveria falar (risos), mas foi do Disney… Era Mickey, o caçador de gigantes. Era colorido, lindo. Sempre falava: ‘Um dia vou fazer isso… Daí comecei a ler cada vez mais. Li Monteiro Lobato, tudo dele, até decorei trechos. Depois li Jack London e em seguida fui para a literatura mais séria. Eu lia um livro por dia.
O Horácio, o preferido
Mauricio de Sousa costuma dizer que seus personagens são como seus filhos e alguns, inclusive, são mesmo: Mônica, Magali e Marina. Por isso é tão complicado escolher seu favorito. No entanto, o desenhista tem uma predileção especial pelos bichos e animais que criou. “Eles sempre falam melhor por você. Observe as fábulas, onde há raposas, gatos e corujas. Todos falam pelos autores”, cita. Mas um deles tem um apelo especial para o desenhista, o dinossauro Horácio, que, aliás, vai ganhar filme, que está em produção e deve ser lançado em 2017. “Quando o fiz, ele ganhou esse lado mauriciano por força das circunstâncias. O Horácio tem um pouco das características do Mauricio. O que ele fala, sugere e vivencia é o que eu faria no lugar dele. O Horácio seria o meu alter-ego”, define.