

Antes de acabar o romance, Saramago, no entanto, sabia bem como terminaria. “Creio que poderemos vir a ter um livro. O primeiro capítulo, refundido, não reescrito, saiu bem, apontando já algumas vias para a tal história ‘humana’. Os caracteres de Felícia e do marido aparecem bastante definidos. O livro terminará com um sonoro ‘Vá à merda’, proferido por ela. Um remate exemplar”, escreveu Saramago em uma das notas que compõem a publicação.
A história não terminou como Saramago previu. Aliás, não terminou. Faltou, inclusive, um ponto final — o que deixa o texto tão aberto, que o crítico português Alberto Gonçalves sugere que 'Alabardas' inaugura um novo gênero, o de romances “praticamente por começar” e conclui: “Meia dúzia de críticos hão de considerar estarmos perante um momento de ruptura na cultura universal”. No entanto, o estilo consagrado do polêmico escritor acaba se destacando, como sempre ocorreu antes mesmo da publicação de seus livros. O debate acerca da temática das obras começava logo no anúncio de lançamento de um romance.

Em entrevista, Pilar del Río justifica a publicação da obra e garante que não há mais livros inéditos de Saramago. Diz também que o novo trabalho é um final feliz “em mais alto grau de criatividade.” A jornalista fala, ainda, sobre a ausência do marido, o dia a dia na Fundação Saramago e as parcerias com Fernando Gómez Aguilera, Luiz Eduardo Soares e Roberto Saviano, que assinam os textos que complementam o livro; assim como a participação de Günter Grass com os traços fortes que ilustram a história do Nobel português.
Entrevista / Pilar del Río
Como veio a decisão de publicar uma obra inacabada de Saramago?
Porque é uma obra acabada, de um mestre da literatura, que merece ser conhecida pelos leitores. E digo bem: essas páginas estão acabadas, mesmo que o romance não esteja. É o que se entende pelas notas que o autor deixou escritas e que foram publicadas.
Ele chegou a revisar o texto? Acredita que ele publicaria um livro sem revisar?
Não sei se faria, porque nunca vou interpretar quem não está aqui. Sei, isso sim, que os capítulos que ele deixou estão acabados. Também sei que era fiel leitor de obras cujos autores não puderam terminar, como Camus e Mann.
A maioria das críticas sugere que Saramago não teria revisado o texto. E que isso comprometeria a obra. Como avalia isso?
O texto estava revisado, pronto. O autor ia mudar de nome e a morte veio quanto estudava outra frase. Digamos que o planejamento estava em finalização também, como se pode ver nas notas.
Como você vê que os textos complementares de Roberto Saviano, Fernando Gómez Aguilera e Luiz Eduardo contribuem no texto de Saramago?
Como disse um editor brasileiro na apresentação em Lisboa, o diálogo se produz no livro porque o autor não está aqui para mantê-lo fora. Estes três autores completam a função ética de Alabardas, a de dar uma porrada nas consciências adormecidas de tanta gente. Saramago estabelece a função literária e abre caminho para os demais.
E a parceria com Günter Grass, como se deu?
Como se dão as relações entre colegas, de forma generosa e decidida: dos antibelicistas que se gostam, se respeitam e se valorizam.
Saramago é considerado um autor profundamente parabólico. Você concorda com isso? O que acredita ser a principal mensagem desse novo livro?
Não sei se é um autor parabólico… José Saramago podia utilizar a alegoria ou outra forma literária, o que nunca fez de seus romances algo panfletário ou de falso moralismo. Ele fazia literatura a partir de assuntos que lhe inquietavam e os desenvolvia com seu peculiar e estupendo estilo literário. Respeitava muito o leitor, para fazer doutrina, como sabe qualquer leitor que já o leu. E o humor e a ironia estão sempre presentes antes de qualquer tentação de deixar que pesem ideias e conceitos dogmáticos, sejam políticos, sejam religiosos. José Saramago era um antidogmático.
Há outro trabalho inédito a ser publicado?
Não, não há nenhum outro livro a ser publicado. Haverá, sim, e espero que muitas, reedições.
Como anda o projeto do Diocionário Saramaguiano?
Está a caminho, mas não é a Fundação que está tocando. É o professor Carlos Reis, a partir de sua absoluta e grande liberdade de acadêmico de primeira ordem.
Como é a sua rotina com a demanda de trabalho da fundação?
Rotina? Cada dia é novo. Os brasileiros que vêm se assombram de ver como se trabalha. E se emocionam com a exposição permanente e com o espírito da casa. Muitos também vão a Lanzarote, onde se pode ver a casa e a biblioteca de José Saramago, que está aberta para visita pública.
O que da convivência com Saramago você mais sente falta?
Isso, a convivência e me desculpe por não ser mais explícita neste assunto tão pessoal.
Passou a ver a morte de uma maneira diferente depois que ele morreu?
Talvez a desejá-la mais. E que seja tão natural e tranquila como a que ele teve.