Refeito do susto de um “enfarto que não deu certo”, quando, há 10 dias, precisou ser internado depois de se sentir mal, o desenhista, pintor, jornalista, dramaturgo, chargista, caricaturista e escritor recebeu o Estado de Minas em sua casa/escritório no Rio de Janeiro. Ele é o segundo entrevistado da série 'Escultores de sonhos', com os mestres da literatura infantojuvenil no Brasil.
Quando se mudou de sua terra natal para o Rio de Janeiro, ele já desenhava e levou suas histórias em quadrinhos a tiracolo. “Era isso o que queria ser, autor de histórias em quadrinhos, mas a profissão nem existia”, conta. Acabou indo parar em uma agência de publicidade, já que muitos anúncios eram desenhados naquela época. “Quem entrava nesse ramo tinha que desenhar muito bem e eu passava o dia todo lá, fazendo o que mais gostava. A fotografia não era uma coisa muito usada para anúncio, porque a impressão não era boa, então a gente desenhava. Foi assim que descobri a caricatura, virei cartunista e comecei a publicar meus cartuns em várias revistas e jornais do país”, lembra.
Foi nesse período também, fim dos anos 1950, que ele criou a primeira revista em quadrinhos brasileira feita por um só autor, a 'Turma do Pererê', publicada de 1959 a 1964. “Uma turma de amigos com nomes bem brasileiros, que fazia parte da esperança de um Brasil novo. Aquela coisa das reformas de base, de ter um Natal sem Papai Noel, mas com personagens nossos. Mas veio a ditadura e acabaram com a revista”, lamenta.
E nada mais brasileiro do que um Saci. Porém, como havia várias empresas e lojas com este nome e a burocracia era enorme, Ziraldo decidiu batizar a sua revistinha com o sobrenome do menino de uma perna só e gorro vermelho. “Saci estava registrado em tudo que é categoria e por isso era complicado registrar mais uma coisa com o nome. Ia demorar demais. Aí, lembrei que ele se chamava Saci Pererê e ninguém tinha registrado nada com Pererê. E era um som até mais agradável”, destaca.
Com o fim da publicação para a garotada, o multiartista mineiro passou a buscar novas maneiras de ganhar o pão. Começou a fazer capas de cadernos, cartazes, inclusive de cinema – chegou a criar cerca de 400 –, foi um dos fundadores do periódico 'O Pasquim', tabloide de oposição ao regime militar, e escreveu seu primeiro livro infantil, 'Flicts', em 1969, a história de uma cor que não encontrava seu lugar no mundo. 'O Menino Maluquinho', aquele com macaquinhos no sótão, já começava a dar sinais de vida. Mas isso é outra história.
Principais obras
>> A Turma do Pererê (1959)
>> Flicts (1969)
>> O Menino Maluquinho (1980)
>> Vito Grandam (1987)
>> Uma professora muito maluquinha (1995)
>> The Supermãe (1996)
O Menino Maluquinho
“Era uma vez um Menino Maluquinho. Ele tinha o olho maior do que a barriga, tinha fogo no rabo, tinha vento nos pés, umas pernas enormes (que davam para abraçar o mundo) e macaquinhos no sótão (embora nem soubesse o que significava macaquinhos no sótão). Ele era um menino impossível! A melhor coisa do mundo na casa do Menino Maluquinho era quando ele voltava da escola. A pasta e os livros chegavam sempre primeiro, voando na frente.”
A história da criação de 'O Menino Maluquinho' remonta aos tempos do 'Pasquim'. Frequentemente, Ziraldo e outros companheiros do jornal eram convidados para dar palestras, e foi numa delas, na Ilha do Governador, que pintou a ideia de sua obra mais conhecida. Corria o ano de 1980 e o autor comentou sobre a distância entre as gerações e o mito de que os filhos não se entendiam mais com os pais. Ziraldo citou seu exemplo e de vários amigos e de como mantinha uma boa relação com seus filhos e discorreu sobre como se deveria tratar uma criança.
“Uma das moças presentes gostou do que falei e me sugeriu: ‘Por que você não escreve um livro sobre este tema?’. Argumentei que não era teórico do assunto e que estava apenas dando a minha opinião”, recorda. Ziraldo voltou para casa e ficou com a sugestão martelando na cabeça. Não resistiu. “Fiquei com essa ideia de um menino que, por ser feliz, compreendido e amado, criado com carinhos na infância, sem ser sacaneado e chateado pelos pais, tinha grande chance de virar um cara legal. Essa era a proposta que defendia para a criação das crianças e era a ideia que queria para o livro”, explica.
Faltava batizar o tal menino. O escritor e cartunista estava fazendo a barba quando teve um estalo: “Se eu botar Renato, o menino chamado Pedro não vai se identificar e vice-versa. Melhor não pôr nome nenhum. E aí, de repente, veio vindo a ideia. Era uma vez um menino maluquinho… Ah, Menino Maluquinho é bom porque é pequeno, tem uma coisa de ternura, já que o sufixo -inho, tem essa coisa carinhosa. E maluco não é maluquinho”, pontua. Pronto! Era só sentar e escrever a história.
Esse tem sido, ao longo dos anos, o mecanismo básico do trabalho de Ziraldo. “Crio a história primeiro. É sempre assim e acredito que ocorre o mesmo com quase todo mundo. É igual o Gênesis: ‘No princípio era o verbo’. Depois vem o resto. E até porque desenhar é muito mais fácil do que escrever. Nem o mais tranquilo dos escritores diz: ‘Está perfeito’. Se todo mundo tivesse que reeditar seu livro, certamente mexeria no texto. Um texto nunca fica pronto”, diz.
Ziraldo presentou o projeto para os editores da Melhoramento e eles gostaram tanto que, de cara, já mandaram rodar 20 mil exemplares. Um sucesso absoluto. “Geralmente, rodam 3 mil. Isso era em agosto. Quando chegou dezembro, no Natal, já tinha vendido 100 mil exemplares. E até hoje é uma coisa fantástica”, comemora.
Várias faces
O mais conhecido personagem de Ziraldo já deu pano pra manga. O livro foi adaptado para o cinema em duas versões – 'Menino Maluquinho, o filme' (1994), com direção de Helvécio Ratton; e 'Menino Maluquinho 2 – A aventura' (1998), de Fernando Meirelles e Fabrizia Pinto (filha de Ziraldo) –, rendeu musicais, ópera, peças de teatro, revistas em quadrinhos e vários desdobramentos literários, entre eles, Uma professora muito maluquinha. O personagem foi também estrela de vários outros títulos, como 'O livro de jogos, brincadeiras e bagunças', 'Livro dos primeiros socorros do Menino Maluquinho' e até 'O livro de receitas do Menino Maluquinho'.
De olho no futuro
No dia 24, Ziraldo Alves Pinto completa 82 anos, com uma vitalidade que impressiona. Já fez seu pedido de aniversário, que, lamentavelmente, será impossível de ser atendido. “Queria que meu irmão Ziralzi (falecido em setembro) voltasse. Mas, infelizmente, não tem como, né? Mas a vida segue”, desabafa.
O escritor e desenhista de Caratinga não pensa em parar e está cheio de projetos. Quando o questionam sobre férias, ele até ri. “Tirar férias? Descansar de quê? Descanso na minha prancheta. É a frase do Dom Quixote: ‘Meu repouso é o campo de batalha’”, cita.
Entre os planos, um musical para 2015 sobre a terceira idade, escrito em parceria com Zuenir Ventura e Luís Fernando Verissimo, e a continuação da série literária 'Os meninos do espaço'. O próximo livro a ser lançado é o de Saturno. “É uma série de 10 livros e a cada ano sai um. Fiz para garantir pelo menos 10 anos de vida e estão faltando apenas três”, brinca.
Nesta semana, entrou em cartaz no Rio a exposição 'As mulheres de Ziraldo', na Galeria Scenarium, na Lapa, com 15 telas exaltando as curvas do corpo feminino. Uma delas, 'As três graças de Ipanema', é inspirada no clássico de Rafael Sanzio 'As três graças', que mostra as filhas de Zeus, reconhecidas como divindades da beleza. “Sou a maior autoridade brasileira em bunda. Só no Brasil é que você pode editar uma revista chamada Bundas, desenhar bundas e fazer livro para criança. Nos Estados Unidos, isso seria absolutamente impossível”, diverte-se.
ENTREVISTA
Como surgem suas histórias?
Você tem que estar ligado em tudo. É igual sambista. Estou andando na rua e de repente cai uma folha de mangueira e alguém comenta comigo: “Oh, isso dá um samba”, e então surge um dos sambas mais lindos da história, Folhas secas. Qualquer coisa pode te sugerir uma ideia. Vou dar um exemplo. Certa vez, estava autografando e tinha uma fila de crianças. De repente, entrou uma moto que deu um cavalo de pau e todo mundo levou um susto. Quando o motoqueiro tirou o capacete, vimos que era uma senhora loira muito bonita e entregou para uma das meninas na fila o meu livro para ser autografado, já que ela tinha esquecido. Quando chegou a vez dessa menina, perguntei quem era a moça da moto. Era a avó dela. Na mesma hora, pensei: isso dá um livro. Uma avó de moto, moderna, e criei a vovó Delícia. É assim que as coisas acontecem Não é uma coisa de inspiração. É o susto que você leva e então começa a pensar o que pode fazer com essa ideia.
Qual o seu método de trabalho?
Meu método é ficar aqui na prancheta desenhando ou escrevendo. O computador eu não sei nem ligar. Não cheguei nem na máquina elétrica. Ainda uso a máquina antiga ou escrevo à mão. E retrabalho o meu texto demais. Se não fosse a Ivone (a fiel secretária e digitadora há 20 anos), não ia conseguir escrever nada, porque é ela que passa para o computador. E quando ela não gosta do texto, ela até muda (risos). É a minha primeira leitora. As ilustrações, desenho primeiro à mão, coloro com tinta e depois alguém passa para o computador para dar o complemento. Isso facilitou e otimizou muito o trabalho.
Como você desenvolve seus personagens?
A gente não tem consciência disso não. As coisas vão acontecendo, surgem na minha cabeça. E também não trabalho muito o enredo. Não conto histórias longas. Não saberia escrever nenhum dos livros daquela autora que fez o Harry Potter (J.K. Rowlling). A coisa vai se desenvolvendo por si só. Não tem regras.
Você lembra qual foi o primeiro livro que leu?
A coisa que marcou a minha infância foi o Tesouro da juventude. Era o sonho da minha mãe. É uma coleção de 12 livros, com tudo pra criança. Os mistérios do Polo Sul, os segredos das estrelas, e tinha os contos de Grimm, Hans Christian Andersen. Tomei conhecimento de toda a literatura infantil do mundo, com 8, 9 anos, porque era condensado. Li todos. A pequena sereia, Alice no país das maravilhas, Pinóquio, Gulliver. Acho que não ficou nenhum clássico que não tenha lido.