A ideia da montagem surgiu do fascínio do curador pelo mito recriado. “Sempre achei a história linda, e o desenho sempre me impressionou muito. Recentemente, montando a exposição, descobri que havia mudado o mito. Alterou de um jeito muito sensível e poético, que diz respeito à natureza da criação. Uma eterna busca por algo que está dentro do próprio artista”, conta Rafael.
Laerte editou ou participou de revistas, como 'Circo', 'Chiclete com Banana' e 'Piratas'. Os personagens da cartunista ganharam destaque na exposição. Piratas do Tietê, a Muchacha, os moradores de O Condomínio, Deus, Overman, Muriel, a versão travestida de Hugo Baracchini, e Los 3 Amigos — da parceria com Angeli e Glauco —, marcaram um período de intensa produção e criatividade da artista, não poderiam ficar de fora dessa retrospectiva. Algumas homenagens para amigos e personalidades que ela admira como Henfil, Glauco, Beethoven, Mozart também entraram na mostra.
Assisti a um depoimento do Rafael dizendo ter ficado surpreso com o volume de trabalho encontrado durante as pesquisas para montagem da Ocupação. Revelou que conhecia apenas 1/3 de tudo que você produziu. Essa intensa produção lhe privou do convívio familiar?
Não sei se fui um modelo de pai, nem sei se alguém consegue ser um modelo de pai. Fui o pai que pude ser. Claro que me arrependo de algumas coisas, mas não em relação a ter despendido mais tempo no trabalho. Despenderia esse tempo em outra coisa também. Sou meio relativista nessa questão de culpas e omissões no papel de educadores. Trabalhei o que devia trabalhar e que quis. Não fui um modelo de atenção enquanto figura paterna, mas não relaciono as duas coisas. Espero que o rafael também não relacione. (Risos)
Ele fez um depoimento sobre você para a exposição…
Eu li. Fiquei muito emocionada.
Seu filho é o curador da mostra. Como foi ter alguém tão próximo de você pesquisando em catalogando seu trabalho?
Foi melhor. Rola um tipo de intimidade e confiança que dificilmente aconteceria com outra pessoa. Fora que ele é muito competente, não é só um alguém íntimo. Ele tem uma capacidade de edição invejável, que poucos têm. Estava muito bem atendida.
Você faz distinção da artista com intensa produção da Laerte que se apresenta para a grande mídia?
Não. O meu íntimo nem eu conheço. Vou fazendo o meu trabalho, lógico, e não preocupação analítica com ele. Estou em uma posição privilegiada, por que consigo ver dentro de mim. Tenho acesso acesso a gênese da ideias, dos processos, que normalmente o leitor não tem.
Qual foi a melhor época para o quadrinho brasileiro?
Agora. É sempre agora.
Como você vê a produção atual?
Fico muito satisfeita de conhecer trabalhos novos, de autores e autoras. Tem aparecido muitas meninas, ainda bem. Fico bem animada. Apesar do quadrinho e a linguagem gráfica brasileira ser uma fatia relativamente modesta do mercado, levando em conta a música popular ou expressões de festa, mesmo assim é original e autêntica. Tenho visto isso se aprofundar.
Alguns personagens que marcaram sua carreira você não desenha mais. Sente falta de alguma produção específica?
Não. Parei de desenhar os personagens porque o processo de trabalhar com a construção de piadas, como fazia, historicamente está concluído. Acho legal o que fiz, mas não quero e nem preciso fazer mais. Parti para outras formas de trabalho.
Qual a melhor parte desses 40 anos de carreira?
Agora. É hoje.
Envaidece você ser considerado um dos melhores quadrinistas do Brasil?
Fico bem constrangida. Não lido muito bem com elogios e nem com a falta. (Risos)
O que lhe faz perder o humor?
Burrice e a truculência.
Você tem se destacado pelo ativismo político na luta contra o conservadorismo e conquista de direitos dos homossexuais. Esse tema vem sendo abordado em todos os debates dos candidatos à presidência. Como você avalia essas eleições?
É um momento muito bom. Perceber que as candidaturas, de alguma forma, se viram pressionadas a ter uma postura mais clara e não varrer o tema para baixo do tapete é ótimo sinal. É um progresso, apesar de que o discurso homotransfóbico continua, como percebemos no último debate eleitoral. Também é verdade que a reação está acontecendo, mesmo não com a agilidade e prontidão que desejamos. Sim, as coisas estão mudando.
Você virou referência para pautas sobre transgenicidade. De certa forma, se tornou uma porta voz sobre a causa. Incomoda lhe procurarem mais para isso, esquecendo da sua obra?
Para mim não tem problema nenhum, por que para também é uma curiosidade minha. É uma inquietação para mim. O fato é que me descobri e percebi dentro de uma condição que é uma incógnita, não é algo claro. É ao mesmo tempo fascinante e inquietante. Gosto de conversar sobre isso. Boa parte da aceitação como uma pessoa trans vem do fato de que me respeitam como cartunista, profissional. No Brasil, trans, gays, lésbicas são muito hostilizadas e alvo de violência social ainda. O fato de não ter passado por essa via crucis acredito que se deve ao conceito que as pessoas têm de mim como profissional. Elas não esquecem do meu trabalho, apenas estão inquietas com a questão da transgenicidade.
Quais são suas referências de desenho hoje?
Pergunta difícil. Não que eu não tenha. Na verdade, são muitas. Tenho duas pessoas que admiro e vou citar duas: Alison Bechdel e Rutu Modan. Têm sido motivos de reflexão e de pensamento. Claro que ainda tenho as referências antigas que sempre vão ser referências, como Luiz Gê, Ziraldo, Fortuna.
Qual o desejo para os próximos anos de carreira?
Tenho um projeto que gostaria de fazer, mas não tenho mais grandes metas. Estou com 63 anos e 40 anos de trabalho. Não tenho mais metas no sentido de sonhos profissionais. Tenho desejos e planos.
Como é esse projeto?
É um trabalho que tem material autobiográfico, mas não é uma autobiografia. É uma avaliação ficcional dos anos 1970 até hoje, dentro do eixo sexo e política. São histórias, relatos e reflexões sobre o tempo e esses assuntos. Acho que tanto eu quanto o Brasil e o mundo passamos por processos bem marcantes e densos nesse período.
Ocupação Laerte
Até 2 de novembro, no piso térreo do Itaú Cultural, na Avenida Paulista, 149 - São Paulo/SP. As visitações são de terça a sexta, das 9h às 20h (permanência até as 20h30); e sábado, domingo e feriado, das 11h às 20h. Entrada gratuita. Não recomendado para menores de 14 anos. Informações: (11) 2168-1777.