Por mais doloroso que seja, a jornalista Hildegard Angel jamais se furta a dar depoimentos sobre a mãe, Zuleika Angel Jones (1921-1976), a Zuzu Angel. O martírio da estilista mineira se tornou internacionalmente conhecido quando ela usou a própria criação, na década de 1970, para denunciar a ditadura militar brasileira. Militantes de esquerda, seu filho Stuart e a nora Sônia Maria foram assassinados por agentes da repressão. Poucos anos depois, ela morreu em acidente automobilístico tramado por agentes da repressão.
Uma visita à exposição Ocupação Zuzu, em cartaz no Paço Imperial, no Centro do Rio de Janeiro, mostra a contundência daquele momento. Concebido e realizado pelo Itaú Cultural com o auxílio do Instituto Zuzu Angel, o evento reúne 470 objetos, entre fotografias, cartas, vestidos e acessórios. A curadoria é assinada por Hildegard Angel e pela equipe do Itaú Cultural.
Depois da estreia em São Paulo, onde atraiu 45 mil pessoas, a mostra permanecerá no Rio de Janeiro até 2 de novembro. Vê-se a obstinação da mãe, que jamais cedeu na busca pelo corpo do filho. Não por acaso, a tragédia vivida por Zuzu a levou a ser comparada à personagem do clássico Mãe Coragem e seus filhos, de Bertolt Brecht. De Chico Buarque e Miltinho do MPB-4 ela ganhou a tocante canção Angélica.
Hildegard revela que o Itaú Cultural trouxe Katia Johansen, curadora das coleções reais da Dinamarca, para cuidar da primeira montagem dos vestidos nos manequins importados. Em São Paulo, houve performances com desfiles e leitura das cartas da estilista para autoridades e generais.
No Rio de Janeiro, atrizes circulam entre os visitantes usando réplicas dos vestidos de Zuzu. Por meio de estampas que traziam anjos e figuras bordadas, ela clamava pelo corpo do filho. Uma das surpresas é a exibição de fitas restauradas do famoso desfile realizado por Zuzu Angel em Nova York, em 1974. Elke Maravilha surge jogando almofadas com estampas de anjo no colo do público. Ao fim, ela entrava na passarela de luto, denunciando o drama de sua família.
“Além de criativa, Zuzu era mulher de negócios. Tinha controle do marketing e do próprio empreendimento”, elogia Claudiney Ferreira, gerente do Núcleo de Audiovisual e Literatura do Itaú Cultural. Ele articula a vinda de Ocupação Zuzu para BH.
Ferreira conta que a mineira, com o objetivo de abrir a própria maison, pesquisava a criação de um perfume feito a partir das populares palmas-de-São-Jorge. “Na época, com o Brasil se urbanizando, ela entrava na casa da classe média por meio de acessórios como toalhas, descansos de copos, bolsas para óculos, roupas íntimas”, conclui Claudiney.
Feliz com a oportunidade de mostrar pela primeira vez o acervo de Zuzu Angel ao grande público, Hildegard Angel diz que o depoimento do ex-delegado Cláudio Guerra à Comissão Nacional da Verdade, confirmando a presença do então major Freddie Perdigão Pereira em uma das fotos na cena do desastre que matou sua mãe, “fechou um ciclo de terror do estado de exceção vivido pelo país”.
Mineira de Curvelo, Zuleika de Souza Netto se mudou para BH ainda menina. Passou a adolescência na capital e conheceu Norman Angel Jones, canadense naturalizado norte-americano, com quem se casou. Depois de morar na Bahia, já com o primogênito Stuart Edgard Angel, o casal se mudou para o Rio, onde Zuzu teve as filhas Ana Cristina e Hildegard Angel. Militante do MR8, Stuart foi assassinado em 1971.
Costureira dedicada, com a eleição do mineiro JK à Presidência da República ela passou a frequentar a alta sociedade carioca. As roupas que criava chamavam a atenção. Talentosa, inovadora e com inglês fluente, Zuleika logo se projetou social e profissionalmente.
Já desquitada, consagrou-se como a estilista Zuzu Angel. Suas criações, que valorizavam o artesanato brasileiro, eram usadas por artistas e gente famosa. A mineira participava também de feiras de moda no Brasil e no exterior. O primeiro contato do estilista mineiro Ronaldo Fraga com a obra dela se deu por meio do livro 1968, o ano que não terminou, de Zuenir Ventura.
“A partir de então, passei a pensar na roupa como escrita. Zuzu entrou na minha vida para não sair nunca mais”, afirma Ronaldo. Além do texto exclusivo para o programa da exposição, ele criou, em 2001, a coleção Quem matou Zuzu Angel.
Diretor da cinebiografia Zuzu Angel (2006), Sérgio Rezende conta ter feito o filme perseguindo a tradição do cinema de buscar grandes histórias. “De repente, descobri que Zuzu era uma personagem dessa grandeza”, admite. “A vida dela sofreu uma virada. Virou uma tragédia clássica, com passagens inacreditáveis”, surpreende-se o cineasta ainda hoje. “Ela não tinha medida. Foi até o fim”, conclui, emocionado.
OCUPAÇÃO ZUZU
Paço Imperial, Praça 15 de Novembro, 48, Centro, Rio. De terça-feira a domingo, das 12h às 18h. Entrada franca. Informações: (21) 2533-4359.
Palavra de especialista
Ronaldo Fraga
estilista
Moda militante
“‘Sou uma mineira jeca’, costumava proclamar Zuzu – a mesma que, em seus desfiles em Nova York, preferia ser reconhecida como costureira, e não como estilista. Por meio de suas coleções, foi a primeira a falar de uma moda com identidade e legitimidade brasileiras: trouxe rendas e bordados nordestinos para o sul maravilha; misturou tecidos nobres a lençóis de algodão de lojas populares; bordou figuras do cangaço e estórias de um Brasil rural, temas que continuam ainda hoje caros ao mercado, dependente das tendências internacionais... Seu legado vai além de qualquer criação ou peça de roupa específica. Zuzu foi a primeira estilista a usar o ofício como instrumento de denúncia politica e vetor de reafirmação cultural num Brasil encarcerado pela ditadura. Nos ensinou que a moda, acima do “feio” e do “bonito”, pode ser muito mais do que roupas e fricotes. Foi também a precursora de uma moda que cantava através dos tecidos e gritava através dos bordados. Sinalizou, assim, um caminho antes impensado na moda brasileira como escrita e documento de um tempo.”