Não é essa a regrinha capaz de instigar o público a uma experiência que toca extremos. “Você está convidado a permanecer o quanto quiser na exposição. Pode sair quando preferir”, diz o guia. Depois de um tempo de observação da proposta da artista, nascida em Belgrado, nota-se que parte do público opta por ficar horas – e até o dia inteiro – revezando-se entre movimentos e posições, como de pé ou sentado, de olhos fechados e de frente para a parede. Ou simplesmente tirando uma soneca.
Em 64 dias, seis vezes por semana, 'Marina Abramovic: 512 horas' atraiu mais de 120 mil pessoas à Galeria Serpentine. Situada no berço do luxo e da beleza britânica, o Hyde Park, a Serpentine é uma das referências entre as grandes casas de arte contemporânea espalhadas pelo mundo, com entrada franca.
á uma certa curiosidade mítica em torno desta romaria de pouco mais de dois meses à Galeria Serpentine. A artista que levou milhares de visitantes às lágrimas na performance 'A artista está presente' de 2010, no Museu de Arte Moderna (MoMA). Afinal, trata-se da artista que permitiu ao público cutucar seu corpo com objetos como facas, comida e penas em 1974. Da performer que ficou 12 dias confinada e sem ingerir comida aos olhos dos espectadores em 2002. Agora, aos 67 anos, Marina Abramovic tornou-se sinônimo de submissão a duros testes artísticos de limite físico e mentais.
No Brasil, ela ganhou maior visibilidade com a exibição em circuito nacional do documentário 'A artista está presente' em 2012, sobre a obra mostrada no MoMA, reprisada exaustivamente na TV por assinatura. Um preparativo para o que vem por aí. Além de um filme em 2015, que deverá contar com o registro de uma de suas visitas recentes ao Brasil, Marina lança um projeto ambicioso entre março e abril no Sesc Pompeia, em São Paulo.
Lynsey Peisinger, 35 anos, coreógrafa e colaboradora de Marina há quatro anos e meio, conta que a ideia é estrear a primeira versão do Instituto Marina Abramovic, dedicado ao desenvolvimento projetos de performance de longa duração – o que significa mais de seis horas non-stop. Será um trabalho que envolverá estudantes e artistas locais.
Os primeiros momentos de 'Marina Abramovic: 512 horas' são tensos para os viciados em tecnologia: nem relógio analógico é permitido. Digitalmente despido, o visitante recebe um fone que tapa completamente os ouvidos. Não, não haverá trilha sonora para aplacar a solidão cúmplice das paredes brancas nuas das três salas da mostra – exceto o eco dos passos alheios.
A sala central apresenta um tablado quadrado e cadeiras à volta, outro retangular próximo a uma parede e na outra ponta, cadeiras viradas para o concreto. Tudo branco, sendo os móveis em madeira clara. As reações são similares. Inicialmente, procura-se a artista, imersa nas dezenas de pessoas e invisível entre os cerca de 10 assistentes – todos vestidos de preto, inclusive ela.
Então, acontece o choque: o que fazer? Aonde ir? O que é permitido? Até que um dos seres vestidos de preto, em gesto de simpatia, oferece a mão. Se você topar, sobe no tablado ou senta na cadeira. O ser de preto silenciosamente aponta para que feche os olhos. Suavemente larga a sua mão. E tudo começa.
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À direita, o cômodo que provoca expectativa no público, amontoado na porta como se estivesse diante da Monalisa: carteiras escolares nos cantos com um montinho misturado de arroz e microlentilhas, papel e lápis para desenhar; e camas montáveis com travesseiro e lençóis coloridos.
Você pode deitar e dormir, separar grão a grão de lentilha do arroz, escrever tratados, desenhar impropérios. A única voz de comando é o silêncio. O resto, vale tudo. São vivências que parecem brincar com a consciência do corpo, com a liberdade restrita imposta por uma determinada estrutura organizacional, com a solidão, com o ritmo, com a paciência.
Marina aparece e desaparece, sussurra no ouvido de uns, sorri para outros, abraça, compartilha a meditação com mais alguns. Em dado ponto, a presença da artista perde importância e a performance torna-se uma experiência individual, o que parece óbvio, mas pode levar a uma espécie de ato de devoção.
“A minha performance começou há meia hora”, comentou a diretora de teatro Fiore Cesca, de Milão, uma senhora de 60 e poucos anos que não quis revelar a idade. Na fila para a abertura da última quinta-feira, ela ocupava o segundo lugar – foi driblada apenas por uma estudante de 21 anos da França, Camille Beck. “Acho que vou ficar até o final do dia”, cogitava a garota.
Dificilmente Camille superaria a impressionante resistência de Fiore. A italiana anotava naquele dia, com orgulho, a 29a visita à performance. Foram duas sequências de viagens a Londres – uma de 4 a 13 de julho, e a segunda a partir de 20 de julho.
Fiore costuma chegar à Serpentine por volta das 9h. Às 10h é recebida, assim como todos da primeira leva, com o aperto de mão de Marina – movimento rígido, mas acompanhado por um sorriso afetuoso. A diretora de teatro diz que não sai para almoçar e evita beber água para não ter de ir ao banheiro. E apenas vai embora no horário de encerramento, às 18h, quando Marina surge à porta novamente para se despedir.
“Todo dia é diferente. A energia cresce e fica mais profundo. Estou triste porque vai acabar”, conta, lembrando que essa foi a sua primeira experiência em uma performance da artista.
Marina também fez registros diários em vídeo de cerca de dois minutos. No depoimento de 15 de agosto, ela conta: “Hoje eu não tenho nada a dizer. Por quê? Meu cérebro parou de pensar. Estou tão dentro desse trabalho que eu não penso... nada vem à minha cabeça.”
O comentário confere sentido a uma de suas explicações no material da exposição: “Levei 25 anos para ter a coragem, a concentração e o conhecimento para chegar até aqui.”
Esta parece ser a primeira tentativa da artista praticamente invisível em cena, atuando apenas como um fio de condutor para a viagem íntima do público. Intrigante pensar em qual será a causa e o efeito do trabalho de Marina no Brasil.
Como foi o treinamento dos assistentes?
Eles passaram por um workshop intensivo com exercícios para performances de longa duração, de corpo e de som que os ajudaram a incorporar o trabalho. A ideia era que eles pudessem compreender a dificuldade de sentar e olhar uma parede ou caminhar lentamente por uma hora. Era importante que eles fossem, ao mesmo tempo, parte do trabalho e facilitadores.
Fale sobre as dificuldades físicas desse trabalho. Vocês ficam confinados nas três salas executando movimentos lentos, conduzindo pessoas. Como é?
Acho que o trabalho é mais mentalmente exaustivo do que a questão física. Eu e Marina também deitamos nas camas, sentamos nas cadeiras. Não é apenas o público que passa do papel de observador para o de observado. Nós também passamos por isso.
O que mudou do começo até agora?
No começo, tínhamos uma ideia sobre o que era preciso para criar energia no espaço. Mas percebi que você não cria energia, ela já está lá. E não há nada que você possa controlar, nem a energia nem as pessoas. Você só pode criar sugerir às pessoas que se conectem com essa energia e tenham uma linda experiência comunitária. Outra diferença é o público. No início, recebíamos entre 1 mil e 1,3 mil pessoas. Elas eram menos pacientes – queriam mais ver a Marina. No final, o número de pessoas diminuiu, mas elas permaneceram mais tempo na exposição.
Como foram as diferentes reações das pessoas?
Há algumas possibilidades. Você tenta pegar as pessoas pela mão e, ou elas estão muito dispostas e entusiasmadas com o contato físico e com você mostrando algo que não se pode ver, mas sentir, ou elas não querem participar. “Não, não, não”. E essas pessoas são muito céticas, desconfiadas e negativas. Não foram muitas. Isso é válido também. Há espaço para tudo. Muita gente chora. Eu choro quase todo dia.
O que você pode adiantar sobre o trabalho que será feito no Brasil no ano que vem?
Vai ser grande. Será a primeira versão do Instituto (fora dos EUA), que vai levar a metodologia e desenvolverá um trabalho com jovens estudantes e performers brasileiros. Será em março e abril de 2015, no Sesc Pompeia. Marina também deverá fazer uma performance, mas ainda não tenho todos os detalhes. Fui ao Brasil com ela duas vezes, uma neste ano, para acertar os detalhes. Também fizemos um trabalho com um xamã de Curitiba.