Repaginadas, drag queens renovam interesse do público na noite de BH

Homens seguem exemplo das artistas performáticas e ''se montam'' com elementos femininos para curtir eventos com temática drag

por Bossuet Alvim 09/08/2014 06:30

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Do primeiro toque de maquiagem à última ajeitada no salto alto, o processo de montagem — que elas tratam como 'montação' — consome quase duas horas. O figurino é planejado com antecedência, apesar de a transformação abrir espaço para improvisos: um alfinete pode prender o espartilho, fita de esparadrapo serve para aproximar as curvas do peito da forma de seios femininos. Com a missão completa, elas chegam à festa e constatam que, apesar de serem as únicas drag queens profissionais do evento, quase metade do público saiu de casa com peruca, saia ou algum outro elemento visual em referência ao gênero oposto.

deu Zebraa/Divulgação
Malonna (à direita) integra o Donas Drags com Kelly Caramelo e Manuza Leão; artista acredita que ''a turma entre 15 e 25 anos está interessadíssima em ser drag'', mais do que em assistir os shows (foto: deu Zebraa/Divulgação)
"A turma entre 15 e 25 anos está interessadíssima em ser drag, mas nem tanto em relação ao show", explica André da Silva, maquiador que há mais de oito anos empresta o corpo ao alterego Malonna. Fundador das Donas Drags, grupo de performance que é figura fácil na noite belo-horizontina em quase uma década de carreira, ele observa que a nova geração de curiosos, posterior ao reality show 'RuPaul's drag race', "quer diluir e experimentar os limites de gênero" na prática. A atração da TV paga norte-americana é uma das inspirações para a festa Lacre, que o trio de drag queens apresenta na boate Mary in Hell neste sábado, 9. Todos os convidados são incentivados a se montar, ainda que com apenas um elemento de maquiagem ou figurino.

 

Confira os depoimentos do grupo Donas Drags sobre a vida de drag queen em BH:

 

Para quem acompanha de perto o cenário, é possível falar em renovação no modo como o público da capital mineira se relaciona com as drag queens. "É muito interessante esse movimento que BH está vivendo, com festas dedicadas a drag queens e espaços que se abrem cada vez mais", comenta o ator David Maurity. Integrante do coletivo Toda Deseo, que mantém espetáculo centrado em personagens travestis e faz performances na maioria dos eventos ligados à cultura drag da capital, ele se admira do modo como "as pessoas abraçaram a proposta" de festas com essa temática. "Quem não se montava começou a se montar por diversão e o mais legal tem sido participar disso tudo", afirma.

 

Inspirado em ícones recentes do estilo drag, o interesse deste novo público se distancia de formatos tradicionais no gênero, que envolvem dublagem de músicas pop e uma pose caprichada sobre os palcos de boates. "Quando se trata de performance, a maioria dos novos espectadores praticamente se recusa a ver shows de dublagem. No entanto, estão se deleitando em aspectos do fazer drag", relata André. Os ícones recentes desta geração de espectadores costumam flertar com a dualidade de gêneros, ao mesmo tempo em que desenvolvem trabalhos artísticos que pouco têm a ver com o antológico 'lip-synch'.

Conchita Wurst, persona drag do austríaco Thomas Neuwirth, conquistou notoriedade ao vencer o concurso musical Eurovision em maio. Com vestido e cabelos longos, o cantor mantém a barba cerrada em meio às características femininas e parece uma referência óbvia entre os jovens que se montam parcialmente para as festas de drags em BH. O fascínio provocado pela excentricidade de Conchita pode estar relacionado à contracultura que marcou outras gerações, como aponta André da Silva. "A drag barbada já era recorrente nos anos setenta", ressalta o performer.

Facebook/TodaDeseo/Reprodução
Formado por Ronny Stevens, Rafael Lucas Bacelar, Igor Leal, Will Soares e David Maurity, o coletivo Toda Deseo mantém espetáculo sobre travestis e faz performances drag em eventos da capital (foto: Facebook/TodaDeseo/Reprodução)
Expressão e subversão

Com visuais situados entre feminino e masculino, os adeptos da nova onda drag sinalizam "uma cultura de trânsito que começa a se estabelecer com mais definição", segundo Carlos Mendonça, professor do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UFMG. "São pessoas que usam elementos que serviriam de referência a um duplo gênero, sem necessariamente se apegar a ele", detalha o acadêmico, que também é coordenador do Núcleo de Estudos em Estéticas do Performático na universidade. "O corpo do homem não desaparece; a drag queen não quer chegar ao máximo possível de proximidade com o corpo feminino. Ela se compõe pelo exagero e deixa um lugar de origem muito marcado", complementa.

 

Para o intérprete de Malonna, esta aproximação de jovens rapazes com a estética feminina pode simbolizar avanços em lutas sociais, como o embate contra o machismo. "Quando um homem abre mão de símbolos masculinos, que estão ligados à dominância do próprio homem na sociedade, e consegue gerar outros símbolos de poder a partir da feminilidade, criamos uma afirmação política com nossos corpos", defende André da Silva. Ele relaciona o aumento no interesse do público por drags justamente ao "espaço conquistado por movimentos em prol das liberdades individuais nos últimos anos".

 

Espaço na noite

Apesar do aumento no interesse do público por performances drag e eventos relacionados a elas, Belo Horizonte ainda carece, na avaliação dos artistas, de locais que se disponham a receber estas iniciativas. "Há uma restrição de espaço", define David Maurity, que cita como principais palcos da cidade para novas drags o Matriz, no Edifício JK, a Mary in Hell na Savassi e A Gruta, no Horto. No próximo dia 21, o grupo apresenta o espetáculo 'No soy un maricón' no Sesc Palladium, pelo Festival Palco Giratório.

 

Contudo, a morna interação dos novos formatos de performance com as boates mais tradicionais da capital também pode ser via dupla: "talvez exista também uma falta de ousadia de quem propõe as festas", pondera o ator do Toda Deseo. "A gente nunca tentou levar nosso show para esses ambientes, mas também nunca ouvimos falar que esses lugares tivessem aberto espaço para algo parecido", comenta.

Maurity destaca ainda que as casas noturnas que recebem shows de drag queens há muitos anos "já têm programação fixa" atrelada às apresentações em formato convencional. André da Silva, líder das Donas Drags, acredita que a rejeição inicial às novas propostas de performance "é algo recorrente da cultura de Minas", no sentido de que "ou queremos o que for mais estrangeiro ou amamos apenas o que é mais tradicional".

 

"Drag, a grosso modo, é uma tribo urbana que está ganhando visibilidade e consequentemente espaços para consumir", opina o artista. "É maravilhoso que tenhamos mais espaço e é motivo para celebrar. Mas também devemos nos perguntar sobre como estamos gerando lucros para empresas a partir de desejos nossos", conclui André.

 

Donas Drags apresentam Lacre - A festa

Sábado, 9 de agosto, a partir das  23h na Mary in Hell (Rua Tomé de Souza, 470, Savassi). Ingressos a R$ 20. Censura 18 anos. Informações: (31) 8707.8349.

 

'No soy un maricón', por Toda Deseo 

Espetáculo integra o  festival Palco Giratório em 21 de agosto, às 21h no Sesc Palladium (Av. Augusto de Lima, 420 - Centro). Entrada franca. Informações: (31) 3214-5350.

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