Ele poderia ter sido piloto de avião. Economista, talvez. Ou simplesmente se deitado no berço esplêndido de onde viera. Mas não. Tornou-se cantor quase por acidente; bateu de frente com Roberto Carlos sem intenção; foi fundo na psicodelia, apesar de não ter experimentado drogas alucinógenas; conheceu o sucesso popular meio que por acaso. Também – e isso por muito querer – tornou-se uma “mãe de gravata” e desafiou a morte. Enfim, Ronnie Von nunca se deteve diante da vida e buscou fazer diferente. Aos 70 anos, completados no dia 17, Ronaldo Lindenberg von Schilgen Cintra Nogueira ganhou a biografia Ronnie Von – O príncipe que podia ser rei (Planeta), dos jornalistas Antonio Guerreiro e Luiz Cesar Pimentel.
É mesmo um presentão. Recheado de fotos e com a discografia completa, a narrativa – resultado de 100 horas de conversa com Ronnie, além de entrevistas com 50 pessoas que convivem ou conviveram com ele – apresenta um retrato simpático do biografado. Por vezes recai mais num perfil, evitando polemizar ou aprofundar-se em assuntos mais difíceis. Mas carrega como maior mérito conseguir traduzir a trajetória de Ronnie Von, que nunca se deteve em um só aspecto.
Ronnie Von é hoje um senhor que conversa amenidades de toda sorte (e com conhecimento de causa) em programa diário que, a despeito de seu alcance limitado (o Todo seu é exibido pela TV Gazeta, disponível apenas em São Paulo), é referência no país (houve quem apostasse que ele seria o substituto de Hebe Camargo). Também tem seu lado empresário, mas o que interessa aqui são os diferentes matizes que compõem seu passado.
Apaixonado por Beatles e com um fraco pelo existencialismo, foi alçado ao posto de novo ídolo jovem na década de 1960 graças a uma versão para um lado B de Rubber soul, dos Beatles. Com a ajuda do pai, que nem em seus maiores pesadelos poderia imaginar um filho cantor, Ronnie criou a versão para Girl, de Lennon e McCartney (foi o primeiro a verter Beatles no Brasil). Meu bem foi a porta de entrada para o universo jovem. Em contraponto ao Rei Roberto, Ronnie – com seus cabelos longos e aquele rosto de parar o trânsito – tornou-se o Pequeno Príncipe. Não entrou para a Jovem Guarda – Roberto inclusive proibia que artistas que participassem de seu programa fossem ao dele –, mas conseguiu virar febre da juventude.
Os então recém-formados Mutantes se tornaram sua banda de apoio e, na virada dos 1960 para os 1970, no auge da popularidade, Ronnie gravou três álbuns que só foram compreendidos 30 anos mais tarde. A chamada fase psicodélica, que gerou os LPs reeditados recentemente Ronnie Von (1968), A misteriosa luta do reino de parassempre contra o império de nunca mais (1969) e Máquina voadora (1970), fez dele objeto de culto mundo afora. Na segunda metade dos anos 1970 se reconciliou com o público mais popular. Virou figura fácil dos programas de auditório comandados por Silvio Santos e voltou a fazer muitos shows com seu viés de cantor romântico.
Até que pouco antes da virada dos anos 1980, passou pelos maiores percalços da vida – fim conturbado do primeiro casamento e diagnóstico de uma doença rara, que lhe tirou os movimentos e o levou a ser desenganado pelos médicos. Ronnie Von sobreviveu a tudo, criou os filhos (até hoje ganha presente no Dia das Mães) e deu outro foco tanto à carreira quanto à vida pessoal. É o produtor Arnaldo Saccomani, que trabalhou a seu lado durante anos, quem o melhor o resume: “Você vê que ele sempre buscou a diferenciação. Buscou ser uma pessoa distante da Jovem Guarda. Às vezes de maneira correta, às vezes de maneira errada, não importa. O que importa é que ele nunca foi na mesmice”.
RONNIE VON – O PRÍNCIPE QUE PODIA SER REI
De Antonio Guerreiro e Luiz Cesar PimentelEditora Planeta, 120 páginas, R$ 34,90
Trecho
“Quando, em 15 de outubro de 1996, Ronnie estreou O pequeno mundo de Ronnie Von na mesma Record, Roberto Carlos sentiu o seu castelo estremecer. Nos bastidores, alguns pauzinhos foram movidos e os convidados do Jovem Guarda ficaram impedidos de entrar no mundo de Ronnie. Mas, apesar disso e da gritante carência de recursos, o programa decolou. Decolou tanto que apenas dois meses depois, segundo conta quem estava no estúdio, o Rei teria colocado uma foto do Príncipe na sua frente e cantado, com a ajuda dos pulmões e do fígado, a música "querem acabar comigo/ isso eu não vou deixar”.
ENTREVISTA
Antonio Guerreiro e Luiz Cesar Pimentel
Biógrafos de Ronnie Von
“Ronnie não vetou nada”
O título do livro tem um tom de provocação. “Podia”, mas não se tornou rei. Por que Ronnie Von, de certa forma, ficou sentado à beira do caminho?
Antônio Guerreiro – Porque o Roberto, em condução de carreira, cercou-se de pessoas mais adequadas àquilo que ele próprio almejava. Ronnie foi alçado àquela posição e era menos ambicioso (musicalmente) que o Roberto. Era mais um cara de bom gosto e termômetro para aquilo que o povo gosta do que um compositor de hits. Tanto que seus grandes hits caíram no colo – A praça, Cachoeira, Tranquei a vida. E, mais a mais, na comparação, ele é príncipe de nascença; o Roberto é rei por formação.
O fracasso comercial da fase psicodélica acabou definindo o aspecto irregular da carreira de Ronnie Von depois disso?
Luiz Cesar Pimentel – Não só acredito como tenho convicção de que afetou o restante da carreira. Pense na trajetória – ele foi alçado ao posto de o artista mais popular do país ao gravar um tipo de música que não lhe agradava. Aí resolve que “chega de tudo” e grava o som que existia na sua cabeça, que ele define como a mistura do erudito com popular (rock). Em formato de uma música, seria Eleanor Rigby. Quando faz isso e dá com os burros n’água em aceitação, ele lava as mãos, se exime de responsabilidade e fica confortável no “agora eu gravo o que me disserem para gravar e que vai fazer sucesso”.
A fase psicodélica, subestimada na época e valorizada somente 30 anos mais tarde, ainda tem um quê de segredo bem guardado para o chamado grande público. Por que não se detiveram mais sobre essa fase?
LCP – Porque ela não tem uma relevância maior na história da vida dele do que, por exemplo, a doença incurável, que ele superou. Ou a multiformação como aviador, economista, enólogo, botânico. Ou os altos e baixos da carreira. Essa fase psicodélica é brilhante, mas para um nicho, que são aqueles que enxergam a música por microscópio. Mas se colocada em contexto do grande público, tem mais o sentido de libertação que ele precisava naquele momento do que da produção musical brilhante e pouquíssimo reconhecida à ocasião – e durante 30 anos.
Por vezes, a leitura recai mais para um perfil, com passagens rápidas por aspectos importantes da vida dele: a criação dos filhos, a separação das ex-mulheres etc. Qual foi a participação de Ronnie Von no que diz respeito aos aspectos mais pessoais de sua trajetória?
LCP – Nenhuma. O Ronnie abriu completamente a vida para o livro e não vetou nada. Por um cuidado que todo biografado merece, não entramos em questão de valor patrimonial, até porque isso não interfere no retrato que se traça com a biografia. Sobre algumas passagens pessoais serem mais enxutas, é natural, pois é um cara que vive a figura pública Ronnie Von há meio século, sempre em evidência. Enquanto o Ronaldo Nogueira ocupa menor parte disso, com conquistas e derrotas bem menos relevantes. Mas as todas relevantes estão ali.
É mesmo um presentão. Recheado de fotos e com a discografia completa, a narrativa – resultado de 100 horas de conversa com Ronnie, além de entrevistas com 50 pessoas que convivem ou conviveram com ele – apresenta um retrato simpático do biografado. Por vezes recai mais num perfil, evitando polemizar ou aprofundar-se em assuntos mais difíceis. Mas carrega como maior mérito conseguir traduzir a trajetória de Ronnie Von, que nunca se deteve em um só aspecto.
Ronnie Von é hoje um senhor que conversa amenidades de toda sorte (e com conhecimento de causa) em programa diário que, a despeito de seu alcance limitado (o Todo seu é exibido pela TV Gazeta, disponível apenas em São Paulo), é referência no país (houve quem apostasse que ele seria o substituto de Hebe Camargo). Também tem seu lado empresário, mas o que interessa aqui são os diferentes matizes que compõem seu passado.
Apaixonado por Beatles e com um fraco pelo existencialismo, foi alçado ao posto de novo ídolo jovem na década de 1960 graças a uma versão para um lado B de Rubber soul, dos Beatles. Com a ajuda do pai, que nem em seus maiores pesadelos poderia imaginar um filho cantor, Ronnie criou a versão para Girl, de Lennon e McCartney (foi o primeiro a verter Beatles no Brasil). Meu bem foi a porta de entrada para o universo jovem. Em contraponto ao Rei Roberto, Ronnie – com seus cabelos longos e aquele rosto de parar o trânsito – tornou-se o Pequeno Príncipe. Não entrou para a Jovem Guarda – Roberto inclusive proibia que artistas que participassem de seu programa fossem ao dele –, mas conseguiu virar febre da juventude.
Os então recém-formados Mutantes se tornaram sua banda de apoio e, na virada dos 1960 para os 1970, no auge da popularidade, Ronnie gravou três álbuns que só foram compreendidos 30 anos mais tarde. A chamada fase psicodélica, que gerou os LPs reeditados recentemente Ronnie Von (1968), A misteriosa luta do reino de parassempre contra o império de nunca mais (1969) e Máquina voadora (1970), fez dele objeto de culto mundo afora. Na segunda metade dos anos 1970 se reconciliou com o público mais popular. Virou figura fácil dos programas de auditório comandados por Silvio Santos e voltou a fazer muitos shows com seu viés de cantor romântico.
Até que pouco antes da virada dos anos 1980, passou pelos maiores percalços da vida – fim conturbado do primeiro casamento e diagnóstico de uma doença rara, que lhe tirou os movimentos e o levou a ser desenganado pelos médicos. Ronnie Von sobreviveu a tudo, criou os filhos (até hoje ganha presente no Dia das Mães) e deu outro foco tanto à carreira quanto à vida pessoal. É o produtor Arnaldo Saccomani, que trabalhou a seu lado durante anos, quem o melhor o resume: “Você vê que ele sempre buscou a diferenciação. Buscou ser uma pessoa distante da Jovem Guarda. Às vezes de maneira correta, às vezes de maneira errada, não importa. O que importa é que ele nunca foi na mesmice”.
RONNIE VON – O PRÍNCIPE QUE PODIA SER REI
De Antonio Guerreiro e Luiz Cesar PimentelEditora Planeta, 120 páginas, R$ 34,90
Trecho
“Quando, em 15 de outubro de 1996, Ronnie estreou O pequeno mundo de Ronnie Von na mesma Record, Roberto Carlos sentiu o seu castelo estremecer. Nos bastidores, alguns pauzinhos foram movidos e os convidados do Jovem Guarda ficaram impedidos de entrar no mundo de Ronnie. Mas, apesar disso e da gritante carência de recursos, o programa decolou. Decolou tanto que apenas dois meses depois, segundo conta quem estava no estúdio, o Rei teria colocado uma foto do Príncipe na sua frente e cantado, com a ajuda dos pulmões e do fígado, a música "querem acabar comigo/ isso eu não vou deixar”.
ENTREVISTA
Antonio Guerreiro e Luiz Cesar Pimentel
Biógrafos de Ronnie Von
“Ronnie não vetou nada”
O título do livro tem um tom de provocação. “Podia”, mas não se tornou rei. Por que Ronnie Von, de certa forma, ficou sentado à beira do caminho?
Antônio Guerreiro – Porque o Roberto, em condução de carreira, cercou-se de pessoas mais adequadas àquilo que ele próprio almejava. Ronnie foi alçado àquela posição e era menos ambicioso (musicalmente) que o Roberto. Era mais um cara de bom gosto e termômetro para aquilo que o povo gosta do que um compositor de hits. Tanto que seus grandes hits caíram no colo – A praça, Cachoeira, Tranquei a vida. E, mais a mais, na comparação, ele é príncipe de nascença; o Roberto é rei por formação.
O fracasso comercial da fase psicodélica acabou definindo o aspecto irregular da carreira de Ronnie Von depois disso?
Luiz Cesar Pimentel – Não só acredito como tenho convicção de que afetou o restante da carreira. Pense na trajetória – ele foi alçado ao posto de o artista mais popular do país ao gravar um tipo de música que não lhe agradava. Aí resolve que “chega de tudo” e grava o som que existia na sua cabeça, que ele define como a mistura do erudito com popular (rock). Em formato de uma música, seria Eleanor Rigby. Quando faz isso e dá com os burros n’água em aceitação, ele lava as mãos, se exime de responsabilidade e fica confortável no “agora eu gravo o que me disserem para gravar e que vai fazer sucesso”.
A fase psicodélica, subestimada na época e valorizada somente 30 anos mais tarde, ainda tem um quê de segredo bem guardado para o chamado grande público. Por que não se detiveram mais sobre essa fase?
LCP – Porque ela não tem uma relevância maior na história da vida dele do que, por exemplo, a doença incurável, que ele superou. Ou a multiformação como aviador, economista, enólogo, botânico. Ou os altos e baixos da carreira. Essa fase psicodélica é brilhante, mas para um nicho, que são aqueles que enxergam a música por microscópio. Mas se colocada em contexto do grande público, tem mais o sentido de libertação que ele precisava naquele momento do que da produção musical brilhante e pouquíssimo reconhecida à ocasião – e durante 30 anos.
Por vezes, a leitura recai mais para um perfil, com passagens rápidas por aspectos importantes da vida dele: a criação dos filhos, a separação das ex-mulheres etc. Qual foi a participação de Ronnie Von no que diz respeito aos aspectos mais pessoais de sua trajetória?
LCP – Nenhuma. O Ronnie abriu completamente a vida para o livro e não vetou nada. Por um cuidado que todo biografado merece, não entramos em questão de valor patrimonial, até porque isso não interfere no retrato que se traça com a biografia. Sobre algumas passagens pessoais serem mais enxutas, é natural, pois é um cara que vive a figura pública Ronnie Von há meio século, sempre em evidência. Enquanto o Ronaldo Nogueira ocupa menor parte disso, com conquistas e derrotas bem menos relevantes. Mas as todas relevantes estão ali.