O escritor norte-americano Philip Roth, 79, não corre mais risco de deixar algum livro pela metade. Afinal, ele abdicou da brilhante carreira de romancista, com mais de 30 obras, para se devotar “à grande tarefa de não fazer nada” e a “jogar conversa fora”, nas palavras dele. Em oposição, quem se dedica à literatura sem previsão de aposentadoria, facilmente pode ter a própria vida encerrada antes de concluir o último trabalho. Casos assim são registrados em todas as épocas, em todos os lugares: aconteceu em 1817, com a morte de Jane Austen, e em 2014, com a de Gabriel García Márquez.
Diante do infortúnio, fica a dúvida: vale a pena publicar histórias sem fim? Se estivesse vivo, o autor concordaria com a exposição do trabalho interrompido, provavelmente não revisado? Algumas dessas questões pairam sobre 'Cidade' (Nova Fronteira, 128 páginas, R$ 29,90), cujo primeiro capítulo foi escrito por Nelson Rodrigues em 1937, então com 25 anos, e agora concluído por outras penas. André Sant’Anna, Carlito Azevedo, Aldir Blanc e Veronica Stigger fizeram um trabalho de equipe para “psicografar” o restante da obra, com base em poucas páginas. “Tínhamos um capítulo já bem-desenhado acerca da tessitura de seus personagens e com a marca rodriguiana, sem dúvida. Ora, e por que não trazer a público essa preciosidade, fazendo um tributo ao nosso grande dramaturgo?”, diz Maria Cristina Antônio Jerônimo, editora da Nova Fronteira.
Na opinião da professora da UFPE Lucila Nogueira, doutora em letras, a publicação do livro representa a decadência literária de alguns segmentos e a descaracterização autoral da obra. “Sou contra esse tipo de comportamento ridículo. A obra só existe se houver autoria. Se não há autor, não pode haver obra. O mercado editorial é culpado pela banalização da literatura e de toda essa decadência”.
Lucila Nogueira comparou o livro à recente polêmica em torno da versão simplificada de 'O alienista', de Machado de Assis, adaptado pela escritora Patricia Secco. “Ela captou R$ 1 milhão para isso, e ainda deixou o nome dele, como se Machado tivesse escrito aquela coisa horrível”. Para a professora, o caso de Nelson Rodrigues é ainda mais grave, pois a não publicação da obra não estava relacionada à morte do autor. “Ele tinha muita força para publicar o que quisesse. Nelson morreu velho, teve tempo para publicar o que quis”.
Já para o pesquisador Luis Augusto Reis, também doutor em letras pela UFPE, o resgate da obra incompleta é um importante instrumento para valorizar as produções rodrigueanas no gênero. “Ofuscada pela teatro escritor por Nelson, a sua prosa – de um estilo fortíssimo – ficou em segundo plano. Embora eu veja esse projeto como um risco absoluto, acredito que precisa ser visto como tributo. A partir daí pode surgir algo com valor artístico ou ficar só na homenagem. De qualquer forma, estimula o interesse de mais pessoas pela prosa do autor, e nos rende um texto inédito”. Positiva ou não, a polêmica em torno de Cidade dialoga com a conhecida frase de Nelson Rodrigues: “Todas as vaias são boas, inclusive as más".
Gabriel García Márquez
João Cabral de Melo Neto
Jorge Amado
Diante do infortúnio, fica a dúvida: vale a pena publicar histórias sem fim? Se estivesse vivo, o autor concordaria com a exposição do trabalho interrompido, provavelmente não revisado? Algumas dessas questões pairam sobre 'Cidade' (Nova Fronteira, 128 páginas, R$ 29,90), cujo primeiro capítulo foi escrito por Nelson Rodrigues em 1937, então com 25 anos, e agora concluído por outras penas. André Sant’Anna, Carlito Azevedo, Aldir Blanc e Veronica Stigger fizeram um trabalho de equipe para “psicografar” o restante da obra, com base em poucas páginas. “Tínhamos um capítulo já bem-desenhado acerca da tessitura de seus personagens e com a marca rodriguiana, sem dúvida. Ora, e por que não trazer a público essa preciosidade, fazendo um tributo ao nosso grande dramaturgo?”, diz Maria Cristina Antônio Jerônimo, editora da Nova Fronteira.
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Lucila Nogueira comparou o livro à recente polêmica em torno da versão simplificada de 'O alienista', de Machado de Assis, adaptado pela escritora Patricia Secco. “Ela captou R$ 1 milhão para isso, e ainda deixou o nome dele, como se Machado tivesse escrito aquela coisa horrível”. Para a professora, o caso de Nelson Rodrigues é ainda mais grave, pois a não publicação da obra não estava relacionada à morte do autor. “Ele tinha muita força para publicar o que quisesse. Nelson morreu velho, teve tempo para publicar o que quis”.
Já para o pesquisador Luis Augusto Reis, também doutor em letras pela UFPE, o resgate da obra incompleta é um importante instrumento para valorizar as produções rodrigueanas no gênero. “Ofuscada pela teatro escritor por Nelson, a sua prosa – de um estilo fortíssimo – ficou em segundo plano. Embora eu veja esse projeto como um risco absoluto, acredito que precisa ser visto como tributo. A partir daí pode surgir algo com valor artístico ou ficar só na homenagem. De qualquer forma, estimula o interesse de mais pessoas pela prosa do autor, e nos rende um texto inédito”. Positiva ou não, a polêmica em torno de Cidade dialoga com a conhecida frase de Nelson Rodrigues: “Todas as vaias são boas, inclusive as más".
CONTRA >>>>> Inêz Cabral, cineasta e filha de João Cabral de Melo Neto
O mais legal é publicar sem terminar. Indo até onde o autor deixou, não interferir, inventar um final... Fazer isso é no mínimo invasivo. Se Nelson Rodrigues fosse meu pai, eu ia bater o pé. O projeto (do livro 'Cidade') é oportunista, um absurdo, vende gato por lebre. É preciso respeitar o leitor. Seria aceitável apenas se tivesse um título como “Se eu fosse Nelson Rodrigues...”, para deixar claro que não é uma obra do autor.
Comigo aconteceu muito diferente. Antes de morrer, meu pai (João Cabral de Melo Neto) me passou o manuscrito de 'Casa de farinha' dizendo: “Não vou mais terminar, estou cego. Veja se dá para fazer alguma coisa”. Na hora que ele morreu, não quis mexer nessas coisas. Mas depois de um tempo, comecei a ler e me toquei que o livro estava inacabado, sim, mas eram anotações dele para construir a obra. Dava para ver como funcionava a cabeça dele, junto a pesquisas, ensaios. Era um rascunho, como se você estivesse mexendo na gaveta dele.
A FAVOR >>>>> Antônio Edson Cadengue, diretor de teatro e encenador
Estou em cartaz com uma peça de Nelson Rodrigues ('Dorotéia'), e o texto não foi mudado, somente teve uma diminuição, foi dada uma essencialidade. Mas acredito que pegar algo para reescrever é do universo da literatura. Escritores recriam obras de outros. O texto é produto de tudo o que ele leu, visualizou, sofreu interferência. Não tenho esse purismo de que não se pode reler, reescrever. Se fosse assim, Ariano Suassuna não teria escrito 'O auto da Compadecida' a partir de uma forma básica, a medieval. ('Cidade') é um tributo, uma homenagem. A partir de projetos assim surgem coisas maravilhosas. O próprio Nelson escreveu muito do que está no consciente coletivo. Do ponto de vista moral, não vejo problema. Há contos (inclusive de Osman Lins) que foram reescritos a partir de 'A missa do galo', de Machado de Assis. Há uma intertextualidade, em que toda obra dialoga com outras.
>>>>> OUTROS INACABADOS
Otto Lara Resende
O único romance do escritor mineiro, 'O braço direito', foi publicado em 1963. Na década de 1980, a editora propôs-lhe uma reedição. Otto aceitou, pôs-se a reler o livro e a reescrevê-lo pelo menos cinco vezes. Quase 30 anos depois, ele morreu e deixou a obra incompleta. Foi concluída pela escritora Ana Miranda, a partir de indicações do autor e publicado em 1993.
Elmore Leonard
Morto aos 87 anos, Elmore Leonard deixou inacabado seu 46º romance, 'Blue dreams', que deve ser finalizado pelo seu filho, Peter Leonard, também escritor. O herdeiro já conversou com a família sobre a continuação. A obra tem como personagem central Raylan Givens, que já esteve em outras narrativas do autor.
Mickey Spillane
Cinco anos depois de morrer, o escritor Mickey Spillane contou com o talento do amigo Max Allan Collins para que três livros fossem concluídos. Com a retomada, foram lançados postumamente 'Lady, go die!', 'Complex 90' e 'King of the weeds'. As históriam giram em torno do personagem Mike Hammer.
Gabriel García Márquez
O escritor colombiano Gabriel García Márquez tinha dificuldades para se decidir pelo desfecho das histórias. Iniciado em 1999, o livro 'Em agosto nos vemos' foi sucessivamente adiado pelo autor, que morreu este ano sem concluir a obra. O romance pode vir a ser lançado, caso seja autorizado pelos herdeiros.
João Cabral de Melo Neto
Por ter perdido a visão, o pernambucano João Cabral de Melo Neto não concluiu a obra 'Casa de Farinha'. Muitos anos depois da morte do poeta, os manuscrito inéditos viraram livro. A casa de farinha é um auto, um texto dramático - assim como o poema mais famoso de João Cabral, 'Morte e vida Severina'. Restaram 40 folhas manuscritas, coletadas pela filha, Inez Cabral.
Érico Veríssimo
Morto aos 69 anos, o escritor gaúcho Érico Veríssimo deixou inacabada a segunda parte de seu livro de memórias 'Solo de clarineta'. O autor ficou famoso no Brasil e no exterior ao retratar o cotidiano dos moradores do extremo Sul do país. Dentre os livros que abordam o tema, destaca-se a trilogia 'O tempo e o vento'.
Jorge Amado
Membro da Academia Brasileira de Letras e um dos escritores mais aclamados do país, Jorge Amado deixou dois romances inacabados: 'Bóris, o vermelho', e 'A apostasia universal de Água Brusca'. Durante a sua vida, escreveu 42 livros, alguns deles adaptados para novelas de televisão e para o cinema.
Jane Austen
Dois livros deixados incompletos pela escritora inglesa têm várias edições concluídas por outros escritores. Austen escreveu apenas cinco capítulos de 'The Watsons', totalizando menos de 18 mil palavras. É especulado que ela abandonou a novela após a morte de seu pai em 1805. O outro romance inacabado se chama 'Sanditon'.
Eça de Queirós
No ano seguinte à morte do escritor português Eça de Queirós, foi publicado 'A cidade e as serras' (1901). Apesar de o livro estar praticamente pronto, a versão final ainda não tinha passado por todas as revisões que Eça costumava fazer. Em busca do perfeccionismo estilístico, o autor revia inúmeras vezes o texto e fazia alterações.
José Saramago
'Alabardas, alabardas! Espingardas, espingardas!', de José Saramago. Ao falecer em junho de 2010, o ganhador do prêmio Nobel deixou em seu computador um romance sobre o tráfico de armas. O livro foi publicado mesmo inacabado, pois, segundo a viúva, Pilar del Río, os vários capítulos têm uma unidade e funcionam como um relato.
COMPARE:
TRECHO do capítulo 1 – (original de Nelson Rodrigues)
TRECHO do capítulo 1 – (original de Nelson Rodrigues)
E ficou esperando que ela descesse, seria quando ouvisse passos na escada. Sentou-se numa cadeira. Subitamente, sentiu-se tomado de uma sensação estranha, de uma apatia profunda, um desinteresse por tudo aquilo, pelo destino da irmã. Ouviu passos na escada. Levantou-se maquinalmente, numa expectativa sem impaciência. Sim, devia ser ela, Branca, que descia. E vinha sem pressa, sem curiosidade, não imaginando que fosse ele.
TRECHO do capítulo 2 – (escrito por André Sant’Anna)
Branca, quando amava, amava por apenas dois ou três dias um ou outro homem que subia com ela, Branca, para o quarto. Bastava o homem ter os dentes da frente, o hálito limpo e os sapatos bem-engraxados para ser amado por Branca. Amor passageiro, um sonho, uma fantasia de amor numa noite de chuva fina e constante, postes com lâmpadas amareladas, cachorros uivando, um bêbado gritando muito e, vez ou outra, passando do outro lado da rua, pisando nas poças, uma dessas pessoas que sofrem muito, de noite, o tempo todo. Pessoas amando muito, ridículas.
SERVIÇO
Cidade, de Nelson Rodrigues, André Sant’Anna, Aldir Blanc, Verônica Stigger, Suzana Flag
Editora Nova Fronteira
Páginas: 128
Preço: R$ 29,90