Genesis chega a Belo Horizonte na quarta-feira. Foram oito anos de trabalho, em todos os continentes, que deram origem às 245 fotografias de Sebastião Salgado, que vão ocupar as galerias do Palácio das Artes. O fotógrafo oferece um poema de amor ao planeta, com imagens de lugares intocados, santuários que exprimem ao mesmo tempo como é grandiosa e frágil nossa morada.
Memórias do menino Tião
Aimorés – Em 1944, em plena Segunda Guerra Mundial, ano em que Sebastião Ribeiro Salgado Júnior nasceu, em Conceição do Capim, distrito de Aimorés, no Vale do Rio Doce, a 489 quilômetros de Belo Horizonte, o prefeito da cidade se chamava Américo Martins da Costa. Segundo consta no primeiro volume do livro História de Aimorés, do professor Antônio Tavares de Paula, ele havia sido nomeado em outubro de 1932, pelo então presidente de Minas, Olegário Maciel. O Brasil estava em plena era Vargas, e Aimorés experimentava um surto de progresso como até então não havia ocorrido em sua história.
Ainda naquele ano, o prefeito assinou um convênio com a Rockfeller Foundation, dos Estados Unidos, para a instalação do sistema de água tratada, rede de esgoto e a construção de uma unidade sanitária. A primeira cidade do Brasil a ter água fluoretada foi Baixo Guandu, bem ali pertinho, no vizinho Espírito Santo, e a segunda, para orgulho do seu povo, foi Aimorés – o que foi considerado um feito e tanto para a época. Por aquelas bandas, imperavam os coronéis.
Dos tantos que existiam em Aimorés, onde dominavam a vida política, social e econômica, o mais conhecido de todos foi Secundino Cypriano da Silva Filho, o famoso coronel Bimbim. Ainda hoje cantado em prosa e versos por seus feitos, muitas vezes polêmicos, Bimbim fez e aconteceu por aqueles territórios, até a tomada do poder pelos militares, em 1964, quando, então, teve suas asas cortadas.
Por aqueles tempos, Sebastião Ribeiro Salgado, pai do futuro fotógrafo Sebastião Salgado, pelo que tudo indica – pelo menos em Aimorés – não se envolvia diretamente na política, ou então o fazia de forma mais discreta, sem se expor muito. Ele vinha de uma experiência não muito boa, vivida em Ocidente, distrito de Mutum, também no Vale do Rio Doce, onde tinha uma pequena farmácia.
Por ter apoiado uma facção política local, que perdeu as eleições no início dos anos de 1930, Sebastião Ribeiro se viu obrigado a fechar seu negócio e deixar o lugar às pressas, em razão de perseguições. Mudou-se para Manhuaçu, também no Vale do Rio Doce. Seguiu para Conceição do Capim e, depois, transferiu-se para Aimorés. Lá se estabeleceu, criou com dignidade a família e se tornou um dos homens mais respeitados do lugar, dono da Fazenda Bulcão, com mais de 700 hectares. Nas terras da família, hoje funciona o Instituto Terra, projeto de Sebastião Salgado e de sua mulher Lélia Wanik Salgado, referência na preservação ambiental em todo o mundo.
“Era um menino bonitinho, muito branquinho, e tinha aqueles olhinhos azuis, que faziam o maior sucesso. Foi o único de nós que puxou a família da minha mãe, que era descendente de suíços”
Maria da Penha Salgado Tavares, 84 anos,
irmã mais velha de Sebastião Salgado
Quem também conta boas histórias, com a sabedoria de quem já viu muita coisa nessa vida, é dona Maria da Penha Salgado Tavares, irmã mais velha de Sebastião Ribeiro Salgado Júnior, o Tião, caçula de uma família de sete mulheres. Com 84 anos, ainda vivendo em Aimorés, onde é muito respeitada, ela é viúva do professor Antônio Tavares, autor de livros sobre a história da cidade.
De boa conversa, educação antiga, dona Penha, como é chamada pelos conterrâneos, diz que quando o Tião nasceu ela não vivia mais em Conceição do Capim, mas em Aimorés, onde estudava interna na Escola Normal Nossa Senhora do Carmo. No prédio, atualmente, funciona uma unidade da Universidade Presidente Antônio Carlos (Unipac). “Pelo fato de morar num internato, que tinha normas muito rígidas, e só ir à Conceição nas férias, porque naquele tempo quase não havia estradas, não cheguei a cuidar muito do Tião quando ele era pequenininho. Mas as lembranças que tenho são as melhores. Eu e minhas irmãs tínhamos o maior carinho por ele, que era um menino muito levado e ativo”, recorda.
Dona Penha, que se formou no magistério e durante 32 anos trabalhou na Vale do Rio Doce como professora e diretora de escola, até se aposentar, revela também que o xodó que ela e suas irmãs tinham pelo Tião vinha ainda do fato dele ser o único homem da casa, além do pai. “Era um menino bonitinho, muito branquinho, e tinha aqueles olhinhos azuis, que faziam o maior sucesso. Foi o único de nós que puxou a família da minha mãe, que era descendente de suíços. Eu e minhas irmãs saímos à gente do meu pai, que vinha de portugueses, e somos mais morenas”, prossegue dona Penha.
Sem mudar o rumo da prosa, a irmã mais velha de Sebastião Salgado diz que Tião, quando chegou a Aimorés com a família, tinha apenas 5 anos. Dois anos depois, como era costume, ele entrou para “aula” e fez o curso primário no Grupo Escolar Machado de Assis e, depois de “formado”, foi para o Pan Americano, hoje Colégio Estadual Frei Afonso Jordá, no qual fez o ginásio, antes de se mudar para Vitória, com 15 anos, para seguir os estudos.
Atenta a tudo que diz respeito ao irmão famoso, que sempre a procura quando volta a Aimorés, mesmo que rapidamente, para recarregar as baterias ou cuidar dos interesses do Instituto Terra, dona Penha conta que ela e Tião são muito amigos. “O meu filho, o Pierre, trabalha lá no Instituto Terra, e isso me deixa muito orgulhosa e feliz. Toda vez que o Tião lança um livro novo ele faz questão de mandar autografado para mim e minhas irmãs (três vivem em Vitória, duas em Niterói e uma em Búzios), e a mulher dele, a Lélia, é uma cunhada muito boa e amiga”, completa dona Penha.
“Mas uma coisa eu digo, pois é pura verdade: o Tião era muito brigão e não levava desaforo para casa. Se tomasse um tapa, dava dois. Ah!, isso dava”
Reynaldo de Almeida Jardim, 70 anos, colega do fotógrafo no Grupo Machado de Assis
Quem também conviveu de perto com Sebastião Salgado nos anos da infância foi o comerciante Reynaldo de Almeida Jardim, que tem 70 anos, a mesma idade do Tião. Dono do Bar Aimorés, um dos mais tradicionais da cidade, e também de uma sorveteria nos fundos do estabelecimento, Reynaldo viveu muitas histórias com o amigo. “Nós nos conhecemos desde os 8 anos, éramos vizinhos. Logo em seguida, comecei a trabalhar como engraxate, para ganhar uns trocados, e o Tião também tinha sua caixa, até que seu pai o levou para ajudá-lo na fazenda”, conta o amigo.
Reynaldo Jardim nunca saiu de Aimorés, onde se casou e criou a família. Recorda que a infância foi muito boa: brincavam de esconde-esconde, soltavam papagaio, jogavam birosca e futebol pelas ruas. Apesar de nem ele nem o amigo serem bons de bola, gostavam muito do esporte. “Mas uma coisa eu digo, pois é pura verdade: o Tião era muito brigão e não levava desaforo para casa. Se tomasse um tapa, dava dois. Ah!, isso dava”, diz Reynaldo, colega de Sebastião no Grupo Machado de Assis e no Ginásio Pan Americano.
A propósito da fama de brigão do amigo, ele revela, depois de um sorriso maroto, que uma vez ele e Tião arranjaram uma encrenca com outro garoto, o Chico do José dos Reis, que havia batido neles com um chinelo. Então, como bons filhos do Rio Doce, Tião e ele prepararam a vingança e, no dia em que encontraram o Chico sozinho, meio descuidado, deram duas pedradas nele. “A do Tião acertou na cabeça do coitado, e o ‘melado’ desceu na hora. Então nós corremos e nos escondemos em um quintal, debaixo de uns pés de taioba, lá na casa do meu avô, Gastão Jardim, de onde só saímos à noite, meio ressabiados. Ainda bem que não aconteceu nada grave com o Chico”, diz Reynaldo.
Outra coisa que eles faziam com gosto era tomar banho no Rio Doce, que hoje em dia nem passa mais em Aimorés, já que foi desviado para a construção de uma hidrelétrica. Uma vez, a mãe de outro menino, o Waldemar, porque tinha medo que eles se afogassem, resolveu pregar uma peça e recolheu as roupas dos garotos enquanto se banhavam no rio. A consequência foi que tiveram de esperar escurecer para poder voltar para casa, pelados. Foi um vexame e tanto.
Reynaldo Jardim, que como todos em Aimorés não poupa elogios ao fotógrafo, revela ainda que eles adoravam brincar à noite, em frente à padaria União Portuguesa, cujo dono se chamava Acendino Francisco Dias, e que já havia sido prefeito da cidade. A casa existe até hoje e fica perto do bar, numa esquina. “A gente ficava por ali até quase meia-noite, para poder comer pão, que saía quentinho do forno. O Tião era guloso, até porque também sempre foi muito forte”, elogia.
“Será que posso falar? Ah, meu Deus!, mas a menina da qual o Tião gostava era a Izabel Godinho”
Maria Antonieta Soares Batista, 71 anos,
colega do jovem Tião no ginásio
Vizinha de Reynaldo Jardim na Rua Pedro Nolasco, quem também desfrutou da amizade de Tião foi Maria Antonieta Soares Batista, de 71 anos. Professora aposentada, ela conta que foram colegas por quatro anos no Ginásio Pan Americano. “Era um tempo muito gostoso. Tínhamos uma amizade sincera e não havia rivalidade entre os colegas e nem entre os colégios, como hoje.” Quanto ao Tião, Maria Antonieta revela que ele era muito quieto dentro da sala de aula e também pouco expansivo, já que gostava de ficar na dele, no seu canto. Mas tinha uma coisa: aproveitava qualquer folguinha que fosse e até matava aula para dar um mergulho no Rio Doce.
Maria Antonieta guarda algumas recordações da época, como dois retratos antigos, que ela faz questão de mostrar. No primeiro, a turma do Pan Americano aparece reunida na porta do colégio, em 1958, nas vésperas da formatura do ginásio; e o outro eterniza o dia da comemoração, com todos juntos em um bar. Aí o repórter quer saber: “E as paqueras de vocês, como eram?”. A colega disfarça um sorriso, passa as mãos nos cabelos e diz que tinham seus namoricos, como era normal na idade. “Será que posso falar? Ah, meu Deus!, mas a menina da qual o Tião gostava era a Izabel Godinho”, revela a colega.
“Ter uma roupa feita pela mãe de Tião era um privilégio. Para conseguir, a pessoa tinha de entrar na fila. Peça feita por dona Dércia era selo de qualidade garantido”
Roseli Costa, a Rosinha,
colega do Ginásio Pan Americano
Quem também concorda com Maria Antonieta, quanto ao fato de Tião ser um garoto meio tímido, de poucos arroubos, é Roseli Costa, a Rosinha, outra colega do Pan Americano. Filha de Aimorés, ela revela que Sebastião Salgado era uma pessoa muito boa, discreta e que não se envolvia muito nas bagunças da turma. Formada no magistério lá mesmo na cidade, e em pedagogia, em João Monlevade, Rosinha se recorda ainda que dona Dércia, mãe do Tião, era uma costureira de mão cheia, das melhores que Aimorés já teve.
“Ter uma roupa feita por ela era um privilégio. Para conseguir, a pessoa tinha de entrar na fila. Peça feita por dona Dércia era selo de qualidade garantido. Aqui em casa, só minha irmã mais velha teve essa alegria e eu fiquei morrendo de inveja”, diz Rosinha. Quanto ao Tião, desde aqueles dias do ginásio, a não ser pela televisão, nunca mais viu.
Os dois retratos guardados por Maria Antonieta são a única referência à fotografia na vida do menino e adolescente de Aimorés. A paixão pela profissão só seria despertada quando o já economista Sebastião Salgado e sua mulher, Lélia, moravam na França, no fim da década de 1960. Mas essa é outra história.
“Há pouco tempo, o Tião mandou reformar duas bicicletas, ainda do tempo da sua infância, e foi lá para a rua em uma delas. Quando voltou, estava feito um menino”
Marilda Moreira Damasceno, ex-enfermeira dos
pais do fotógrafo e funcionária do Instituto Terra
Ainda jovem, Marilda Moreira Damasceno, atualmente uma espécie de relações públicas do Instituto Terra, onde é encarregada de receber os visitantes, deixou a sua comunidade de Rosca Seca, distrito que fica a 53 quilômetros de Aimorés, em busca de melhores condições de vida. Quis o destino que, em 2000, ela começasse a trabalhar como enfermeira na casa do casal Sebastião Ribeiro Salgado e dona Dércia, pais de Sebastião. Com a morte da mãe do fotógrafo, no ano seguinte, ela continuou zelando pelo pai de Salgado, que morreria depois de alguns anos. Em retribuição ao carinho que dedicou a eles, Sebastião Salgado e “Lelinha” não só pagaram a faculdade de ciências biológicas para Marilda, lá mesmo em Aimorés, como a levaram para trabalhar no Instituto Terra, onde está há 12 anos.
“É um grande privilégio e sou muito agradecida a eles pelo que fizeram por mim”, diz Marilda, casada e mãe de dois filhos, enquanto mostra, orgulhosa, uma foto tirada ao lado ao lado de Albert II, príncipe de Mônaco, em fevereiro do ano passado, por ocasião de sua visita ao Instituto Terra. Sobre o seu padrinho, ela conta uma história das muitas que sabe sobre ele. “Há pouco tempo, o Tião mandou reformar duas bicicletas, ainda do tempo da sua infância, e foi lá para a rua em uma delas, meio disfarçado. Quando voltou, estava feito um menino, todo triunfante por ter andado à vontade, sem ser reconhecido, completando seu passeio com tranquilidade”, conta.