Saraus de poesia se espalham por BH e conquistam público diversificado

Temas apresentados vão da política ao cotidiano. Encontros acontecem em bares, praças e até cemitérios

por Ana Clara Brant 18/05/2014 00:13

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‘‘Aqui não precisa ser convidado. É bem democrático. É só chegar e recitar. Todos, sem exceção, têm voz”, assegura o poeta, compositor e um dos idealizadores do Sarau Vira-Lata Kdu dos Anjos. A iniciativa, que é realizada em ruas, praças, museus, bibliotecas e centros culturais de Belo Horizonte, é apenas um dos saraus periféricos que tomam conta da capital e Região Metropolitana. Ao lado de exemplos como o Coletivoz, Sarau Comum, Apoema e Cabeçativa, eles dão voz aos poetas da periferia, além de serem uma forma de exercer a cidadania, ocupar o espaço urbano e mostrar a arte que produzem.

Até quem está acostumado a organizar encontros literários em locais mais centrais da cidade, como o poeta e editor Wilmar Silva, curador dos projetos Terças Poéticas – que está completando 10 anos – e do Café com Poesia, reconhece a importância das iniciativas. “São acontecimentos críticos, criativos e periféricos em todos sentidos: ficam às margens. Para essas comunidades, é importante, porque está sendo realizado lá e leva as pessoas para lá. Há esse deslocamento da arte. O que é bom e grande só pode ser apresentando no grande teatro? Muito pelo contrário. Pode acontecer em qualquer lugar. E esses encontros periféricos estão aí para provar isso”, salienta Wilmar.
Pablo Bernardo/Divulgação
Encontros do Sarau Vira-Lata, na sede do Grupo de Teatro Espanca!, reúne público no centro de BH (foto: Pablo Bernardo/Divulgação)

Um dos pioneiros em BH é o Coletivoz, criado em 2008, realizado uma vez por mês no Bar do Bozó, no Valé do Jatobá, no Barreiro. O público é heterogêneo, formado não só por gente da região, como de outros bairros periféricos. Os textos também são de diversos estilos e assuntos. Falam de temas ligados à periferia, como política, injustiça social, opressão, mas também de amores e do cotidiano. “É natural que a vida social e política interfira na vida artística, mas o sarau não é monotemático e o perfil dos poetas é variado. Mas como há muita gente do rap frequentando, e política é algo muito forte entre eles, é natural que esse tema surja nos textos”, analisa o poeta e um dos articuladores do Coletivoz Sarau de Poesia Eduardo DW.

Num pequeno palco, com um microfone aberto a quem quiser declamar, seja um texto próprio ou de outro autor, o evento costuma reunir de 40 a 50 pessoas. Mas há ocasiões, como nas férias e quando o sarau recebe atrações especiais e convidados, que o público pode chegar a 80 interessados em ouvir poesia.

Emoção A dona de casa Kátia Leal, de 50 anos, é uma das que sempre que pode bate ponto no encontro literário. Moradora da região, ela estava passando na porta do Bar do Bozó, há três anos, quando se deparou com uma faixa anunciando o sarau. Desde a adolescência, ela sempre gostou de escrever e costumava presentear amigos e parentes com seus textos. “Mas ninguém se importava muito. Até debochavam. Nunca valorizaram”, lamenta.

Os escritos de Kátia abordam temas como racismo, Lei Maria da Penha, pessoas especiais (ela é mãe de um menino hiperativo) e drogas, entre outros assuntos. Quando começou a frequentar o Coletivoz, tinha apenas três textos guardados. Hoje, são quase 30. Na maior parte das vezes, costumar ler seu trabalho autoral, mas, vez por outra, apresenta poema de um autor de sua preferência, como Vinicius de Moraes. Aliás, ler não. A dona de casa faz questão de falar de cor. “Dessa maneira acabo interpretando um personagem. Se ficar lendo no papel, não passo a mesma emoção”, justifica.

O sarau promovido pelo Coletivoz é uma espécie de terapia e válvula de escape para ela. Separada e mãe de três filhos, Kátia enfrentou momentos difíceis na vida, entre eles dois cânceres que teve que tratar, e é ali, no momento de se entregar à poesia, que ela se liberta. “Esse encontro significa muito para mim. Fico até emocionada de contar. Por isso, acho que todo mundo aqui da região devia valorizar iniciativas como essas”, frisa.

 

 Pesquisa

O psicólogo Otacílio de Oliveira Júnior, que está fazendo doutorado em psicologia social, também é um frequentador do Coletivoz, o que acabou despertando seu interesse em desenvolver um estudo sobre o evento. “Bateu um desejo de mostrar a produção artística da periferia. A arte como ação coletiva. Estou no começo da minha pesquisa, mas quero abordar temas como a construção do texto para o sarau, o sentido que isso tem para os poeta, o que esse espaço pode contribuir para os textos e para as performances dos artistas, entre outros assuntos”, explica.

Outro aspecto que tem chamado a atenção de Otacílio é a relação entre o palco e a plateia. Enquanto aproveita para declamar seus poemas, ele observa o que se passa no evento. “Venho aqui há um ano e sempre leio algo meu. Acho bem bacana essa coisa de a plateia ser o palco e depois a coisa se inverter. Esse compartilhamento é bem interessante e rico”, destaca.

Um dos saraus que mais têm gerado frutos é o Vira-Lata, criado em agosto de 2011 em Belo Horizonte, e que se expandiu para Sabará, Juiz de Fora, Uberaba e Barbacena. Ele costuma ocorrer quinzenalmente, mas não tem um lugar fixo. Já teve como sede a Praça Raul Soares, a Floresta, o Morro das Pedras, a Praça Floriano Peixoto e até a porta do Cemitério do Bonfim. Um dos idealizadores, Kdu dos Anjos conta que basta marcar dia e local, seja pelas redes sociais ou pelo boca a boca, que o público aparece. “Às vezes reúne 10 pessoas, e, em outras, de 200 a 300. No fim, sempre tem a tradição de latir se a poesia for boa. Vira-Lata é rua, é diversidade de raças, de classes. É mistura”, sintetiza.

 

Marcos Vieira/EM/D.A Press
Rogério Coelho, um dos organizadores do Coletivoz, declama versos no Bar do Bozó, no Vale do Jatobá (foto: Marcos Vieira/EM/D.A Press)
Poesia convida outras artes

A maioria dos saraus periféricos de poesia que surgiram em Belo Horizonte teve origem no Coletivoz. E de um ano para cá, pipocaram por vários bairros e cidades. “Houve uma necessidade de se criar referências culturais em outros espaços geográficos da cidade. Muitos dos criadores de saraus que estão espalhados por BH e Região Metropolitana saíram daqui. Além do mais, um evento como esse não precisa de grande estrutura. É muito importante você ir em um lugar onde sua voz pode ser ouvida, se sentir um agente construtor”, comenta um dos articuladores do Coletivoz, Rogério Coelho.

O Sarau Comum, que é realizado no Espaço Luiz Estrela, em Santa Efigênia, é um desses exemplos. O coordenador, Betto Fernandes, diz que a capital mineira sempre foi extremamente literária, mas nos últimos meses tem percebido uma ebulição ainda maior. “Neste ano os saraus que já existiam estão se expandindo, criando filhotes, seja aqui ou no interior. E o interessante é que, não sei se pelo fato do momento histórico que estamos vivendo, com essa angústia e insatisfação que estamos passando, os textos estão batendo muito na tecla de injustiça, da Copa do Mundo, das contradições do capitalismo, dessas questões mais revolucionárias”, analisa.

Betto lembra que o evento, assim como os demais saraus em BH, não se restringem à poesia e abrem espaço para outras manifestações artísticas, como performances, música, teatro, exposições de fotos e pinturas. “Agregamos tudo. É um encontro das artes e das pessoas de todos os cantos da cidade”, resume.

No entanto esses movimento não se limitam a Belo Horizonte. Na Região Metropolitana, um dos mais atuantes é o Apoema Sarau Livre. Marcelo Dias Costa, um dos fundadores, não acredita que há uma tendência ou moda, e que esse tipo de sarau vive um momento de reflexão e mobilização social. “O Apoema é um espaço de expressão viva. Foi a maneira que encontramos para que as pessoas se reunissem, já que ultimamente ninguém tem tempo de nada, tudo é muito corrido. E aqui elas prestam atenção umas nas outras. Tanto que temos esse segundo nome: Hora extra é poesia!”, conta.

Marcelo acrescenta que outro papel importante do evento é o fato de oferecer uma oportunidade de arte para a população de Contagem, além de levar a proposta para espaços históricos do município, que nunca tiveram muito acolhimento do poder público. “Para que as pessoas vivenciem esses espaços de forma democrática e que, ao mesmo tempo, ficasse evidente o descaso”, conclui. 

 

 

Cooperifa
A grande referência para os saraus de periferia de Belo Horizonte é a Cooperativa Cultural da Periferia, a Cooperifa, de São Paulo. Criada em 2000 pelo poeta e ativista Sérgio Vaz, a iniciativa paulista realiza saraus e debates e já contou a com a participação de vários poetas mineiros em sua programação.

Antologia
Como parte das comemorações dos seis anos, o Coletivoz está convidando poetas, recitadores e criadores que tenham textos inéditos para participar do primeiro livro do grupo, uma coletânea de poemas dos participantes do sarau. O edital de inscrição está no Facebook do coletivo (facebook.com/coletivoz.saraudepoesia).

Apoema Sarau Livre – Dia 23, às 20h, Hora extra é poesia!, Avenida João César de Oliveira, Eldorado, Contagem, próximo ao número 751.
Sarau Comum Luiz Estrela – Dia 23, às 19h30 (a confirmar), Espaço Luiz Estrela, Rua Manaus, 348, Santa Efigênia.
Sarau Vira-Lata – Dia 20, Universidade Federal de Uberlândia; dia 24, Batalha do Calçadão, em Uberaba; dia 27, Praça Negrão de Lima, Floresta, em Belo Horizonte; dia 10 de junho, Morro das Pedras, Belo Horizonte. O horário ainda não foi definido
Coletivoz – Dia 11 de junho, às 21h, Bar do Bozó, Av. Djalma Vieira Cristo, 815, Vale do Jatobá, Barreiro

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