“Sei que você é um dos que ele considerava amigo, embora, entre esses, três já mostraram que ele estava enganado. Lendo seu livro percebo que, nas entrelinhas, você está à beira de se unir a eles”, escreveu Alice Ruiz em e-mail a Pellegrini, publicado em 'Minhas lembranças'...
A Câmara dos Deputados aprovou o projeto que permite a publicação de biografias de personalidades públicas sem necessidade de autorização do biografado ou de seus descendentes. Confiante, Pellegrini mandou a biografia para as prateleiras. “Como as novas regras só faltam passar pelo Senado, que juiz concederia um embargo? Ele ficaria conhecido como o último censor da República junto das herdeiras”, afirma.
Lançado inicialmente na internet, o livro ganha nova edição que coincide com os 25 anos da morte de Leminski (1944-1989) por complicações causadas pelo consumo de álcool. Identificado no texto como Pé Vermelho, o autor conta que o convite do editor Samuel Ramos para escrever sobre o amigo veio em 2013. Alice Ruiz e as filhas supervisionariam o trabalho, aprovado por elas.
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Pé Vermelho surge na terceira pessoa, enquanto o poeta se manifesta na primeira. Os últimos dias dele são narrados com intensidade: “E, finalmente, o último golpe líquido que me liquidou foi a hemorragia esofágica (...) Vi, sim, o jorro vermelho ir bater lá na parede, tanto sangue que deixava claro não ter importância saber se era venal ou arterial (...) E, entre tantos líquidos, o coração é quem decidiu a parada, parando de bater. Liquidou-se-me”.
A réplica de Alice Ruiz veio por e-mail. “A ênfase ao álcool, sua leitura de uma ‘precariedade’ de bens em nossa casa (você nunca ouvir falar em contracultura?), as observações exageradas sobre ‘falta de banho’, que corresponde a um período de maiores excessos (...) Enfim, tudo isso serve para criar uma imagem bem negativa do Paulo em contraponto à sua, que aparece como o interlocutor por excelência e cheio de qualidades que supostamente ‘faltavam’ a ele”, desaprovou a viúva.
TRÊS PERGUNTAS PARA..
. Domingos Pellegrini
. Escritor
Como foi escrever a biografia de Leminski, mesmo sabendo que poderia melindrar a família do poeta?
Fui convidado pelas herdeiras e fiquei honrado. Li 'O bandido que sabia latim', de Toninho Vaz, e vi que ele já tem ali uma boa biografia, aliás, sugerida pela viúva, que agora a rejeita, o que é mais uma evidência de que biografias não podem ficar à mercê de biografados e herdeiros. Então, escrevi um livro que mistura um pouco de biografia com minhas lembranças dele. É um livro amoroso e criativo, como ele gostaria, e me sinto orgulhoso. Se a família não gostar, pode pedir correções, que agora, com a nova legislação, serão julgadas rapidamente por um juiz. Nossa democracia avançou em liberdade e responsabilidade.
Qual é a visão que você tem do poeta?
Ele cultivou sua lenda pessoal conscientemente, basta olhar suas expressões nas fotos, plantando-se como ídolo pop, embalado por uma aura cult com tempero erudito – mistura única na cultura brasileira. Aliás, invento o termo “unicabilidade” para defini-lo, pois tinha linguagem e visão de mundo únicas, independentemente de ideologias, tendências e rótulos. Este é seu maior legado intelectual numa cultura como a nossa, ainda tão marcada por ideologias, grupos e patrulhas.
O que ficará da obra de Paulo Leminski?
A obra dele é pequena e incisiva. Sua poesia já evidenciou que permanecerá. Com altos e baixos, sim, como também em Machado ou qualquer outro. O Polaco deve ser o poeta mais lido – e memorizado – hoje no Brasil. A glória máxima de um poeta é incorporar versos ou expressões à língua, como pedra no caminho ou passar em brancas nuvens. Muitos poemas dele ecoam na fala cotidiana dos brasileiros. Seus ensaios e biografias permanecerão como expressões dessa “unicalidade”, assim como Catatau continuará a encantar enquanto existir gente apaixonada por arte experimental.