Cenógrafo Décio Noviello abre mostra de pinturas e serigrafias em SP

Multiartista, o ex-capitão do Exército transformou a linguagem pop e o carnaval em trincheiras da cor

por Jefferson da Fonseca Coutinho 24/03/2014 06:00

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C/Arte
Serigrafia da série Violência 1 (foto: C/Arte)
A mão envelhecida traz, na ponta dos dedos, a pluralidade da alma. Décio Noviello também é um apanhado de segredos – que esse ex-militar e artista pop agora decide revelar, com sua prosa boa, ilustrada com surpresas vindas do baú de relíquias. A partir de amanhã, ele expõe pinturas e gravuras na Galeria Berenice Arvani, em São Paulo. Quem vê e ouve o sujeito doce e gentil, de 84 anos, não o imagina armado até os dentes, à frente de centenas de soldados do Exército, pronto para barrar as tropas de Minas Gerais comandadas pelo general Mourão Filho, que marcharam para o Rio de Janeiro dispostas a derrubar o presidente João Goulart. Coube a elas deflagrar o golpe militar de 1964. O artista capitão não queria saber de sangue. E revela: escondia a munição de seus soldados para que ninguém se ferisse.

Difícil falar do multiartista Décio Noviello – pintor, carnavalesco, cenógrafo e figurinista – sem passar pelas Forças Armadas. É no mínimo curioso constatar que por duas décadas um capacete de guerra guardou-lhe os pensamentos. Percebem-se em sua obra sombras das marcas daquele período. Na parede da sala do casarão no Bairro Gutierrez, Região Oeste de Belo Horizonte, há três telas inspiradas na Guerra do Vietnã. Numa delas, a expressão de horror dos civis, em preto e branco, é de tirar o sono.

Noviello relembra o momento em que se viu tocado pelo conflito no Sudeste asiático: “Um oficial norte-americano esteve no curso de aperfeiçoamento de que eu participava no Rio de Janeiro. Em sua palestra, ele justificava a ação dos Estados Unidos na Ásia. Daí em diante, despertou em mim o olhar mais crítico sobre as Forças Armadas”.

Desde os primeiros anos do curso de oficial do Exército, Noviello levou a vocação artística para os quartéis. Irrequieto, o jovem militar não abriu mão da experiência de infância de construir presépios sofisticados, tampouco das habilidades na confecção de cenários, figurinos e arranjos para peças teatrais escolares. Guardava traumas também. “Vi que não era possível ser ator. Tentei uma vez, esqueci o texto na hora da apresentação. Sopraram para que improvisasse, mas não deu certo. No caso do canto, devia ter uns 10 anos. A professora disse: ‘Você não vai participar do coro porque é muito desafinado’. Nunca esqueci isso.” Em compensação, aquele dedicado estudante de piano passou a se empenhar ainda mais na coxia.

Também foi parar no quartel o aprendizado de Décio no Cine Rosário, em São Gonçalo do Sapucaí, no Sul de Minas, sua terra natal. Naquele cinema – pertencente ao pai do artista – fazia-se teatro, vez por outra. Ali se apresentavam companhias que chegavam à cidade. “Gostava muito daquilo. Querendo participar de tudo, sempre me envolvia com as produções. O diretor Raul Levi me marcou bastante com sua arte mambembe: um teatro de revista bem-cuidado, com piano, violino e contrabaixo em cena. Ele reunia os jovens da cidade para o elenco ”, diz. Aos 12 anos, Noviello se dedicou às cortinas amarelas: com desenhos de brocal, transformou, com pompa, o cinema da família em casa de espetáculos.

Revista Disciplinado, sobrevivente ao rigor do comando, o jovem oficial ainda deu um jeito de aprimorar publicações editadas pelo Exército. Noviello produzia, escrevia, diagramava e ilustrava a 'Revista da Academia Militar das Agulhas Negras', no Rio de Janeiro. Vindo de um internato no Sul de Minas, o cadete assumiu também a programação dos shows de humor que distraíam as tropas. Nos anos 1970, inovou ao usar fumaça colorida, marca de sinalizadores militares, em intervenções vanguardistas no Parque Municipal de Belo Horizonte.

“Em 1967, por razões particulares, especialmente para me dedicar mais à família, deixei o Exército”, conta ele. Do casamento com Lygia Meirelles, em 1957, haviam nascido Décio Júnior, arquiteto, e Maria de Lourdes, doutora em patologia. Netos são dois: Lucas, de 17, e Mariana, de 12. Todos vivem no casarão da Rua Bernardino de Lima, no Gutierrez.

CRISTINA HORTA/EM/D.A PRESS
Aos 84anos, Décio Noviello fez história nas artes visuais de Minas Gerais (foto: CRISTINA HORTA/EM/D.A PRESS)
Carnavalesco de carteirinha


Décio Noviello mora em Belo Horizonte desde os anos 1950. Depois de dar baixa no Exército, teve mais tempo para a família e o trabalho como artista. Ensinou geometria, foi professor de estilismo na Universidade Federal de Minas Gerais. Ronaldo Fraga, um de seus alunos, chama-o de mestre. O carnaval tomou de assalto o coração do capitão em conflito. São muitas as histórias de destaques, arranjos, adereços, alegorias e fantasias de agremiações carnavalescas na Avenida Afonso Pena da década de 1960.

“Nos anos 1970, já não tínhamos escolas de samba em Belo Horizonte. Nosso carnaval, infelizmente, é um arremedo. Sempre foi. Falta investimento do poder público. Faltam amor, paixão, envolvimento e seriedade”, critica.

Para o veterano, carnaval não se resume a festa de blocos, entre amigos. “É cultura. Exige qualificação. Falta conhecimento, pois carnaval de escola de samba exige entrosamento social. As pessoas precisam saber o que dizer”, adverte. E chama de “ajuntamento de gente” a folia improvisada, feita às pressas.

Hoje, a grande paixão de Noviello é o teatro, amor de infância. “Sempre tive muito prazer em ajudar na criação: cenário, figurino… Com o tempo, passei a gostar mais de criar figurinos”, revela. Ele já perdeu a conta de quantos prêmios recebeu. “Tenho o sentimento de missão cumprida, mas continuo aberto a desafios”, sorri, cheio de saúde.

Filó Shiva, a cadela paulistinha, não perde Noviello de vista. Com 2 anos, é a “caçula” da casa. Na sala, o refletor antigo, no canto perto da janela, contrasta com o videogame de última geração. “Não entendo nada de tecnologia. Quando preciso de ajuda, peço aos netos”, diverte-se. Noviello relembra produções requintadas de que participou no Palácio das Artes, na Oficina de Teatro e nos palcos da Associação Mineira de Imprensa (AMI). Cita certa passagem de 'Noite de Walpurges': um diretor da Fundação Clóvis Salgado (FCS) deu-lhe uma bronca na véspera da estreia. “Ao me ver rasgando o filó que pedi para o cenário, ele ficou horrorizado. Não entendeu que o filó rasgado era parte da caverna onde o demônio colocava a donzela para dançar até a morte”, sorri.

Décio Noviello abre seu baú de relíquias. Antes, dá um conselho ao repórter: “Você deveria usar a caderneta sem pauta. Assim, não seria conduzido pela linha”. E convida: “Você vai gostar de ver uma coisa que nunca mostrei”. Na volta, traz a pasta de desenhos raros entre laços de fita. Vinda do janelão em frente, a luz recorta os guardados históricos. Das mãos riscadas pelo tempo, surge a série em guache. Traços e cores saltam do papel: são 26 Nossas Senhoras de Minas Gerais, pintadas de 1970 a 1980.

Bem perto de comemorar seus 85 anos (em 24 de abril), o capitão Décio ressalta a alegria com as suas escolhas. “Pessoas como eu, otimistas, são felizes com certa facilidade. Acho que o que fiz foi certo. Acertei com o casamento, com os filhos e, agora, com os netos”, conclui, de malas prontas para São Paulo.

Palavra de especialista

Marília Andrés Ribeiro
Pesquisadora

Poética particular

A poética de Décio Noviello é permeada pela cor, elemento fundamental de sua pintura, serigrafia, aquarela, intervenção na paisagem e também de seus projetos de ornamentação de carnavais, cenários e figurinos de teatro. Noviello trabalha com a cor no campo expandido da arte contemporânea, envolvendo a paisagem urbana e o corpo dos participantes das festas populares, dos carnavais, bumbas meu boi e procissões. O universo popular se transforma em fantasia, imaginação e arte através da poiésis, do fazer artístico de Noviello.

DÉCIO NOVIELLO POP E BARROCO
Pinturas e serigrafias. Galeria Berenice Arvani. Rua Oscar Freire, 450, São Paulo. Abertura amanhã, às 20h. De segunda a sexta-feira, das 10h às 19h30. Até 25 de abril.

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