

Nas últimas décadas, Samico costumava produzir apenas uma xilogravura por ano. Até alcançar o resultado definitivo, fazia dezenas de versões e estudos, geralmente desenhados sobre folhas de papel de tamanhos variados, mas sempre respeitando as proporções finais. “Ele chegou a criar 100 esboços para uma única gravura”, revela Marcelo Peregrino, filho do artista.
Ele desenhou cerca de 10 esboços para a sua última xilogravura. Eles poderiam ser apenas o início de uma ideia, mas trazem personagens e orientações geométricas recorrentes em sua obra. Assim, surgem jacarés, lobos, tamanduás, cobras, peixes e pavões. Algumas versões mostram todos esses animais; outras omitem alguns deles. A figura feminina é onipresente na área central. Embaixo, veem-se grupos de homens, de um lado, e de mulheres, do outro.
“Minha mãe, Célida, acha que essas pessoas representam a nossa família. Ela estaria ao centro e embaixo estão Samico com filhos, filhas, netos e netas”, revela Peregrino. Uma grande forma circular rege a parte superior dos esboços. Chapéus e barbas dos homens indicam referências rurais, mas a roupa da protagonista remete a culturas indígenas latino-americanas. “Para os últimos quadros, meu pai gostava de pesquisar antigas lendas descritas no livro Memória do fogo, de Eduardo Galeano”, explica Peregrino.
Incomum
Poeta e crítico de arte, Weydson de Barros Leal é autor do livro Samico (Editora Bem Te Vi). Ele conta que deparou com o artista plástico em dois momentos da criação dessa última gravura. O primeiro, na época dos esboços; depois, quando a pintura estava pronta e os estudos quase definidos. “Inicialmente, trata-se de trabalho de dimensões incomuns, muito reduzidas para o padrão usual adotado por ele. Isso se deve, claro, às limitações de saúde, que impediam sua ampla mobilidade”, explica, referindo-se ao câncer na bexiga que matou Samico.
O gravurista manteve a inquietação até o fim da vida, buscando o equilíbrio e a perfeição. “Samico quis realizar esse trabalho em óleo, pois a pintura sempre foi sua paixão secreta”, revela Leal. Para o crítico, ali está “um resumo inteligentíssimo” da obra do pernambucano, além da declaração de amor à família. “Há variações ao longo das versões do desenho, mas também elementos que permanecem, como a mulher central com dois ramos e as seis figuras do plano inferior”, detalha o crítico.
Abaixo dos familiares do artista ficam os peixes – símbolos da reprodução. “Em algumas versões, no plano central há jacarés, lobos e cobras em torno da grande figura feminina. Mas eles não se aproximam, respeitando a autoridade e a força dessa mulher. Claro que se trata de Célida, a esposa, que sempre foi o eixo de equilíbrio da vida e da criação de Samico”, explica Weydson de Barros Leal. Ele cita também arcos, estrelas e o pavão, “a representar a arte com todas as suas cores e majestade”. Para o crítico, trata-se da versão final da última gravura do artista.
Matrizes protegidas
O acervo de Samico está reunido em sua casa na Rua de São Bento, em Olinda. Marcelo Peregrino informa que a família pretende criar uma instituição para preservar e divulgar o trabalho de seu pai. “Pouca gente conhece as matrizes de madeira usadas para imprimir gravuras. Todas estão guardadas conosco”, afirma, revelando que Samico costumava aplicar tinta preta de um lado e as cores do outro lado da placa.
“A conservação aqui é boa”, garante Peregrino. Ele conta que o pai gostava de construir máquinas de metal ou madeira. O acervo da família reúne peças raras como carimbos, pinturas, desenhos e esboços, além de gravuras com matrizes de metal (iluminogravura) e pedra (litogravura). “As gavetas dele guardam tesouros”, revela Peregrino.
Imaginário universal
Em março, a exposição Linhas, trançados e cores: no reino de Gilvan Samico será aberta na Caixa Cultural, em Brasília. Em junho, a mostra chega ao Recife. A curadora Renata Pimentel diz que o público não verá uma abordagem óbvia da obra do pernambucano.
“A ideia é valorizar o imaginário riquíssimo e a universalidade de um artista consagrado por construir outras vias e dimensões estéticas na linguagem em que se expressou”, explica ela. “Samico elegeu a madeira e a xilo, material e técnica que lhe proporcionavam desafio e conforto. Para culminar na gravura, ele desenhava, usava lápis, papel, nanquim ou caneta. Samico lia e refletia, ele conversava”, lembra a curadora. O poeta de imagens era obcecado por reinventar limites e possibilidades expressivas da impressão em madeira, ressalta Renata.
O conjunto foge de estereótipos e generalizações recorrentes. “É simplista e redutor tachar Lívio Abramo e Goeldi como os professores de Samico. Sim, eles o foram. Samico aprendeu algo com cada um deles, bem como aprendeu nas convivências, conversas e experiências no Ateliê Coletivo, na Oficina Guaianases e durante as temporadas na Europa, sempre olhando, lendo e experimentando”, conclui.
Faltou coragem
Algumas gravuras de Samico estão esgotadas. É impossível fazer novas tiragens desses trabalhos. Geralmente, o artista deve estar presente no momento da impressão, seja para realizar o trabalho, para supervisioná-lo ou assiná-lo. “Gravadores chegam a riscar matrizes para evitar reimpressões, mas meu pai nunca teve coragem de agir assim”, conta Marcelo Peregrino. Samico costumava prensar até 100 exemplares de cada obra, mas algumas, como A chave de ouro do reino do vai não volta, ganharam apenas 40 cópias – todas vendidas.