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Confira algumas tirinhas de Henfil
Com seus personagens, Henfil brincava com os estereótipos. Graúna, o Cangaceiro e o bode, por exemplo, apareciam sempre em trio. O cangaceiro Zeferino era um clichê do nordestino machista e violento. Graúna era analfabeta, mas de inteligência viva. Ela poderia encarnar aquilo que Ariano Suassuna definiu em seu Auto da Compadecida: “a esperteza é a coragem do pobre”. O bode Orellana ironizava o intelectual livresco (a comida preferida do bode eram os livros), com muita cultura, porém com profunda ignorância das condições reais em que vivia o povo e como ele pensava.
Com essa trinca, Henfil comentava a situação do País, que vivia sob uma férrea ditadura. No caso, captava a situação do interior nordestino, a caatinga, a indústria da seca, o coronelismo e o mandonismo da região, com seus próceres sempre alinhados com o governo. Afinal, lucravam muito à custa da miséria alheia. Continuam lucrando, aliás.
O traço rápido e irreverente de Henfil era sua forma de pensar um Brasil cuja luz no fim do túnel podia ser a de um trem vindo em direção contrária, como dizia outro mestre do humor, Millôr. Corajoso e ácido, fustigava a ditadura através das brechas deixadas pela censura, mas não poupava quem a combatia de forma romântica e idealizada. Daí a implicância com a oposição livresca, que caracterizou no bode Orellana, com seu apetite por celulose e o chapeuzinho coco na cabeça.
O medo generalizado de viver sob um regime autoritário era expresso através de outro dos seus personagens, Ubaldo, o Paranoico, que, como o nome diz, tinha medo de tudo, até do que não precisava ter. Mas, como lembrava seu autor, mesmo os paranoicos às vezes têm seus perseguidores reais. O medo existia e, embora paralisante, tinha raízes no mundo real, na sociedade que não oferecia garantias individuais contra a prepotência, em especial depois da decretação do Ato Institucional n.º 5 em dezembro de 1968.
Essas frestas da ditadura, Henfil ocupava alegremente, por assim dizer. São antológicos alguns dos seus desenhos no Pasquim, o famoso “hebdô”, que marcou a renovação da linguagem jornalística do País. O Pasca tirou a gravata do texto e do desenho com um time brilhante e afiado: Millôr, Ziraldo, Jaguar, Paulo Francis, Ivan Lessa, Sérgio Augusto e, claro, Henfil. O espírito da coisa era oralidade nos textos, desenvoltura nos desenhos e senso crítico sem complacência. Era o lugar ideal para cada um, e, em especial, para o mineirinho Henfil, que chegou ao Rio para bagunçar o coreto.
Alguns dos seus desenhos no Pasquim são antológicos. Criou uma série que era dinamite pura, intitulada O Sobrevivente. Tinha desenhos como um assaltante esfaqueando uma velhinha para roubar-lhe a bolsa, um empresário da construção civil dirigindo-se a um operário caído do andaime, um urubu comendo o fígado de um condenado, um avião americano lançando bombas sobre vietnamitas. A fala dos protagonistas de cada cartum era sempre a mesma: “Tenho de sobreviver, entende?”. No caos gerado pela ditadura, sobrevivência era a palavra de ordem. E os patifes a invocavam para justificar seus atos.
NÃO POUPAVA NINGUÉM
Criou, também no Pasquim, um “cemitério dos mortos-vivos”, a Casa do Caboco Mamadô, no qual enterrava os dedos-duros. Gente do meio artístico que supostamente teria se passado para o lado da ditadura e denunciado colegas. Na época, havia uma definição muito clara entre o “lado bom” e o outro, que ficava a favor de um governo ilegítimo, que perseguia, prendia, torturava e matava. Esse, digamos assim, maniqueísmo, tinha sua justificativa histórica numa época em que a maior parte da sociedade civil vivia farta da ditadura e ansiava pela volta da democracia.
Se os militares eram os vilões no campo interno, os Estados Unidos eram o alvo, no externo. Henfil, como toda a esquerda, via com péssimos olhos o intervencionismo americano em vários países do mundo, e exultou quando o Vietnã venceu a guerra. A mais improvável das vitórias, um povo corajoso de um país minúsculo botando para fora do seu território a maior potência do mundo. Henfil saúda o fato com um desenho em que Henry Kissinger conversa com um vietcongue e lhe diz: “Vamos sair, mas é uma retirada honrosa, viu? Não precisa empurrar!”.
Enquanto fala, o exército americano bate em retirada, com o rabo entre as pernas.
Esse era o espírito da época. Mas Henfil também gozava a própria formação religiosa, travada e autoritária, que trazia como herança de Minas Gerais. Daí a dupla de frades, um o oposto do outro. Um baixinho, outro comprido. Um sádico e safado, o outro querendo dar uma de santarrão. Por isso, o frade Cumprido era sempre vítima do Baixim. O Cumprido diz que devemos amar a todos como irmãos. O baixinho reaparece com um mendigo sujo e malcheiroso e dá a ordem: “Abraça o irmão!”. Os Fradinhos tinham de ser dois. O alto representava as boas maneiras e os bons princípios, um verniz de civilidade que não aguentava grandes contrariedades da vida real. Já o baixinho era o instinto puro. Sádico, sensual e debochado. A tal ponto que, ao vê-lo feliz, o Cumprido já imagina com medo o que ele teria aprontado: “Internei a minha mãe no pronto-socorro público”.
Enfim, a crítica, sempre ligada nos problemas do País. Fossem os problemas macro, como a ditadura e a economia voltada para as classes ricas, ou suas consequências, como o mau atendimento nos hospitais, a carestia ou o desemprego, Henfil estava sempre de olho. Foi desses artistas ligados em seu tempo e com aguda consciência política do seu trabalho. É dele o slogan Diretas-Já para a campanha para as eleições presidenciais pelo voto popular em 1984. Como se sabe, a emenda das diretas não passou e o primeiro presidente civil após o golpe, Tancredo Neves, foi eleito pelo Colégio Eleitoral. Henfil morreria de aids em 1988, aos 43 anos, contaminado por uma das inúmeras transfusões de sangue tomadas para combater a hemofilia. De que lado estaria hoje? Difícil dizer e nunca é prudente falar em nome dos mortos. Mas por certo estaria espicaçando algum poderoso.