A capa de A República das abelhas, de Rodrigo Lacerda, pode gerar confusão, já que o nome de Carlos Lacerda aparece com o mesmo destaque que o do autor. Rodrigo, o romancista, é neto de Carlos. Carlos, no entanto, é o narrador do livro. A mescla de vozes e personalidades é um elemento a mais nesse jogo de sobreposições e transparências. Afinal, mesmo definido como romance, a história está presente como fio condutor. Ou seja: A República das abelhas é um romance baseado em fatos reais, narrados por um personagem que já morreu, assinado pelo neto, que é romancista e historiador.
Assim, A República das Abelhas se configura como um belo exemplo de romance histórico, que percorre fatos que vão do Segundo Império os anos 1970, com a morte de Lacerda. Neste interregno, tudo está presente pelo olhar de Carlos e seus ancestrais: a abolição, a proclamação da República, os jogos miúdos da política, a Primeira República, a era Vargas, as ditaduras do Estado Novo e do regime militar de 1964, os momentos de distensão e conflito.
Republicanos, abolicionistas, liberais, comunistas, golpistas, socialistas utópicos, getulistas e uma gama de outros grupos e movimentos habitam o cenário descrito por Carlos Lacerda. Além dos fatos de natureza pública, que são a substância do livro, o romance também se abre para o aprofundamento moral e psicológico dos personagens centrais. Há amores e traições, inteligência e loucura, ambição e muito som e fúria no destino dos Lacerdas.
Rodrigo Lacerda equilibra o romance com grande domínio da estrutura, com avanços no tempo que são intercalados com momentos de pura ficção, simbolismos e anacronismos de toda espécie. É impressionante, por exemplo, a sensação de repetição que atravessa a história brasileira, com suas denúncias de corrupção, incapacidade de compreender revoltas populares, entre outros juízos recorrentes.
Mas o autor tem suas astúcias. A começar pela narração dos primeiros momentos que se sucedem à morte de Carlos Lacerda, com a invenção de uma sensibilidade própria para sons, fantasias e memórias (que lembra mais uma vez Machado e o delírio do começo de Memórias póstumas de Brás Cubas). Um retrato do Brasil que é também o registro de uma família rica em caracteres e contradições. Completa o painel humano do romancista, além dos Lacerdas, muitos personagens reais, sobretudo os políticos, de Luiz Carlos Prestes a Kubitschek, passando por presidentes, senadores, deputados e conspiradores do período. Não são retratos realistas, é bom frisar, mas debuxos às vezes idiossincráticos feitos por Carlos Lacerda.
Aventuras reais Há outro elemento de destaque em A República das abelhas: o ritmo. Rodrigo Lacerda, autor de romance para jovens (o excelente O fazedor de velhos) e de livros como O mistério do leão rampante, parece gostar de conduzir o leitor por aventuras. O fato de seu material ser histórico não tira nem o mistério nem a capacidade de surpreender. A possibilidade de ligar a trajetória familiar com os destinos do país garantiu a Rodrigo todos os elementos aventurescos que ele trata sempre com eficiência. Não há nada mais dramático e rocambolesco que o suicídio de Vargas e a confusão que se segue, inclusive a perseguição ao próprio Carlos Lacerda, que de herói de uma burguesia moralista se torna traidor da pátria. O mesmo se dá com as revoltas comunistas, quarteladas e outros movimentos típicos da política brasileira.
O romancista Rodrigo Lacerda é bem diferente de seus pares de geração. Mesmo o que parece ser experimentalismo em sua prosa se resolve sempre com um sentido quase clássico. Seu estilo é claro, sofisticado, com uso da ironia que se torna quase uma visão de mundo. Ele parece sempre a ponto de rir de si mesmo. Talvez venha daí sua sempre confessa admiração por Eça de Queirós. Mas é também autor extremamente nacional, como outra de suas influências literárias, João Antônio.
Cada livro do autor é único, como se inaugurasse um modo expressivo próprio para cada assunto. Nesse caminho, A República das abelhas é o mais radical de todos os seus projetos, pela gama de recursos de que lança mão para dar conta de um universo ambicioso, rico e cheio de nuances políticas e humanas. Num tempo em que as biografias são questionadas pelo risco de deslizar além da verdade, o romance de Rodrigo Lacerda é um elogio à invenção. Talvez por isso seja tão verossímil e divertido. Poucas vezes a vida real é assim o tempo todo.
A REPÚBLICA DAS ABELHAS
De Rodrigo Lacerda
Editora Companhia das Letras,
520 páginas, R$ 49
Independentemente de tudo isso, o livro de Rodrigo Lacerda se destaca no panorama da literatura brasileira contemporânea. Espécie de memórias póstumas (mesmo o autor tendo mais afinidade com Eça de Queirós do que com Machado de Assis), o romance passa em revista a história do Brasil do século 19 ao fim do século 20, tendo como personagens os membros da família Lacerda, uma fauna política que ocupou o espectro ideológico da extrema- direita ao comunismo radical – às vezes pela mesma pessoa em diferentes momentos da vida, como foi o caso de Carlos Lacerda, comunista na juventude e conservador moralista na maturidade.
Assim, A República das Abelhas se configura como um belo exemplo de romance histórico, que percorre fatos que vão do Segundo Império os anos 1970, com a morte de Lacerda. Neste interregno, tudo está presente pelo olhar de Carlos e seus ancestrais: a abolição, a proclamação da República, os jogos miúdos da política, a Primeira República, a era Vargas, as ditaduras do Estado Novo e do regime militar de 1964, os momentos de distensão e conflito.
Republicanos, abolicionistas, liberais, comunistas, golpistas, socialistas utópicos, getulistas e uma gama de outros grupos e movimentos habitam o cenário descrito por Carlos Lacerda. Além dos fatos de natureza pública, que são a substância do livro, o romance também se abre para o aprofundamento moral e psicológico dos personagens centrais. Há amores e traições, inteligência e loucura, ambição e muito som e fúria no destino dos Lacerdas.
Rodrigo Lacerda equilibra o romance com grande domínio da estrutura, com avanços no tempo que são intercalados com momentos de pura ficção, simbolismos e anacronismos de toda espécie. É impressionante, por exemplo, a sensação de repetição que atravessa a história brasileira, com suas denúncias de corrupção, incapacidade de compreender revoltas populares, entre outros juízos recorrentes.
Mas o autor tem suas astúcias. A começar pela narração dos primeiros momentos que se sucedem à morte de Carlos Lacerda, com a invenção de uma sensibilidade própria para sons, fantasias e memórias (que lembra mais uma vez Machado e o delírio do começo de Memórias póstumas de Brás Cubas). Um retrato do Brasil que é também o registro de uma família rica em caracteres e contradições. Completa o painel humano do romancista, além dos Lacerdas, muitos personagens reais, sobretudo os políticos, de Luiz Carlos Prestes a Kubitschek, passando por presidentes, senadores, deputados e conspiradores do período. Não são retratos realistas, é bom frisar, mas debuxos às vezes idiossincráticos feitos por Carlos Lacerda.
Aventuras reais Há outro elemento de destaque em A República das abelhas: o ritmo. Rodrigo Lacerda, autor de romance para jovens (o excelente O fazedor de velhos) e de livros como O mistério do leão rampante, parece gostar de conduzir o leitor por aventuras. O fato de seu material ser histórico não tira nem o mistério nem a capacidade de surpreender. A possibilidade de ligar a trajetória familiar com os destinos do país garantiu a Rodrigo todos os elementos aventurescos que ele trata sempre com eficiência. Não há nada mais dramático e rocambolesco que o suicídio de Vargas e a confusão que se segue, inclusive a perseguição ao próprio Carlos Lacerda, que de herói de uma burguesia moralista se torna traidor da pátria. O mesmo se dá com as revoltas comunistas, quarteladas e outros movimentos típicos da política brasileira.
O romancista Rodrigo Lacerda é bem diferente de seus pares de geração. Mesmo o que parece ser experimentalismo em sua prosa se resolve sempre com um sentido quase clássico. Seu estilo é claro, sofisticado, com uso da ironia que se torna quase uma visão de mundo. Ele parece sempre a ponto de rir de si mesmo. Talvez venha daí sua sempre confessa admiração por Eça de Queirós. Mas é também autor extremamente nacional, como outra de suas influências literárias, João Antônio.
Cada livro do autor é único, como se inaugurasse um modo expressivo próprio para cada assunto. Nesse caminho, A República das abelhas é o mais radical de todos os seus projetos, pela gama de recursos de que lança mão para dar conta de um universo ambicioso, rico e cheio de nuances políticas e humanas. Num tempo em que as biografias são questionadas pelo risco de deslizar além da verdade, o romance de Rodrigo Lacerda é um elogio à invenção. Talvez por isso seja tão verossímil e divertido. Poucas vezes a vida real é assim o tempo todo.
A REPÚBLICA DAS ABELHAS
De Rodrigo Lacerda
Editora Companhia das Letras,
520 páginas, R$ 49