Num dos últimos poemas dirigidos ao filho, Candido Portinari deixou registrada emocionante despedida. Ele dizia: “Em Paris a última vez/ despedimo-nos no pequeno restaurante/ Ias ficar/ Ao saíres senti qualquer coisa se desprendendo de mim”. Seis décadas depois, algo colorido e profundo se desprende da alma brasileira. É o adeus a BH e ao país dos painéis Guerra e Paz, a obra mais emblemática do artista plástico paulista.
Leia também: o primeiro contato de alunos do Morro das Pedras com a obra de Portinari
Depois de permanecer no Cine Theatro Brasil Vallourec por 45 dias e serem vistas por 82,5 mil pessoas, as duas colossais superfícies pintadas por Portinari começaram a ser desmontadas na segunda-feira, numa operação que mostra a arte que existe por trás da arte. Só por milagre elas serão apreciadas ao vivo outra vez pelo povo que teve sua dor e alegria tão bem retratadas pela mão do gênio.
Veja fotos de 'Guerra e Paz' em BH
saiba mais
-
João Cândido Portinari mantém vivo o legado do pai
-
Painel de Portinari é desmontado para ser restaurado e protegido dos cupins
-
Instituto Brasileiro de Museus adquire obras de Portinari e Meirelles
-
Jovem artista faz sucesso na internet desenhando dragões
-
Marcos Coelho Benjamim abre mostra de novos trabalhos em galeria, na Savassi
-
Adolescentes do Morro das Pedras se extasiam com obras de Candido Portinari
“João Portinari, na qualidade de diretor-geral do Projeto Portinari e filho do pintor, tem propriedade para levar à frente um desafio dessa natureza. Não sei a quem isso caberia no futuro. É realmente uma exposição histórica”, observa Maria Duarte, que há 12 anos assumiu a direção-executiva do Projeto Guerra e Paz.
Para ela, o fato de a jornada brasileira terminar em Minas Gerais, terra de JK, é significativo. João Portinari concorda: “O estado teve papel muito importante na vida de meu pai. Isso começa com Juscelino e continua com a ligação dele com grandes amigos mineiros, como Carlos Drummond de Andrade e Gustavo Capanema”.
No ano que vem, os painéis seguem para Paris e, em seguida, voltam para a sede da Organização das Nações Unidas, onde foram instalados em 1957. Só saíram de lá em 2010, para ser restaurados e exibidos no Brasil. A façanha de desmontar as peças foi obra da sorte e da paixão. A sorte: uma reforma obrigou a retirada dos painéis do prédio da ONU, em Nova York. A paixão: a incansável luta de João Cândido, iniciada três décadas antes com a criação do Projeto Portinari, para salvar do esquecimento a obra e a memória do pai no Brasil.
O esforço do filho único do pintor culminou na exposição dos painéis 'Guerra' e 'Paz' no Rio de Janeiro (Theatro Municipal, 2010), em São Paulo (Memorial da América Latina, 2011) e em Belo Horizonte (Cine-Theatro Brasil Vallourec, de outubro a novembro). Uma carta escrita em 1972 pela amiga e ajudante de Portinari Rosalina Leão ao jurista e diplomata Rubens Ricúpero explica o drama da remoção dos painéis, feitos de madeira compensada (cedro) à prova d’água e construídos por carpinteiros navais.
Cada painel, com 14m de altura e 10m de largura, é subdividido por 12 subpainéis de cerca de 2,20m por 5m, todos eles parafusados e tendo por trás ripões de peroba fixados a cada 10 centímetros. O problema sempre foi a dimensão da obra, revela Rosalina na correspondência enviada a Ricúpero. Por isso, a princípio, os painéis só poderiam ser vistos no edifício da ONU. Um movimento de artistas e intelectuais salvou o Brasil dessa perda. Depois de doada à instituição, a obra ficou guardada num porão por 18 meses até ser inaugurada. “Ninguém soube da chegada, nem quando eles seriam inaugurados. Nada”, denunciou Rosalina.
Pedaço por pedaço
Na tarde de segunda-feira, as partes superiores do painel 'Guerra' começaram a ser desmontadas. O Estado de Minas teve acesso à operação realizada no Cine-Theatro Brasil Vallourec. Primeiramente, foram retirados dois subpainéis menores, feitos em formato desigual para se encaixar no formato irregular da estrutura arquitetônica da sede da ONU. Em seguida, desceram, juntos, os dois grandes painéis superiores, com suas mulheres de olhos tapados, o cavaleiro do Apocalipse, a Pietá e o pedido de misericórdia expresso nos braços das mulheres erguidos em direção ao céu.
A operação meticulosa e delicada envolveu diretamente 100 pessoas e outras 200, indiretamente. Ninguém encosta as mãos nas pinturas de Portinari sem que as mãos estejam protegidas por luvas.
Em Belo Horizonte, os módulos maiores e mais altos balançaram mais do que deveriam, obrigando a equipe a mudar a estratégia para baixar os próximos. Eles desceram um a um, e não colados um no outro. “A etapa mais delicada é a descida, pois o movimento deve ser feito de forma alinhada. O perigo é uma chapa encostar na outra, danificando a pintura”, explica Stephanie Colin, integrante do grupo de exposição da Expomus e responsável pela desmontagem dos painéis.
Uma vez no chão, os módulos são meticulosamente manuseados e carregados por oito homens para a mesa de 6m de comprimento para ser avaliados e limpos por restauradores, que usam um aspirador de pó e um pincel.
A etapa seguinte é embalar cada painel com papéis especiais, que permitem à obra “respirar”, e posicioná-los nas caixas de madeira. Cada caixa carrega dois módulos e pesa 600kg. São necessários 12 homens para transportá-la, o que é feito numa coreografia cuidadosamente feliz, lembrando os trabalhadores do painel Paz.
A desmontagem de Paz começou na terça-feira e terminou ontem. Pedaço por pedaço, Guerra e Paz disseram adeus, lentamente, a BH e ao Brasil.
Veja a desmontagem da obra de Portinari:
Obrigado, Portinari
No penúltimo dia da exposição Guerra e Paz, de Cândido Portinari, o filho único do artista, João Cândido, foi literalmente embalado por uma homenagem surpresa: a apresentação do Coral Mater Ecclesiae, mais conhecido como Meninos Cantores de Santa Luzia.
Formado por 45 titulares de 8 a 18 anos, além de 15 novatinhos, o grupo cantou quatro músicas para o engenheiro e matemático criador do Projeto Portinari, que estuda piano desde os 14 anos. Se não fosse por ele, o Brasil não veria Guerra e Paz.
Diante dos pequenos cantores, um João boquiaberto e emocionado ouviu 'Cio da terra' (Milton Nascimento/Chico Buarque), Benedictus (peça sacra do compositor holandês Jacob Dehann), Sabiá (Tom Jobim/Chico Buarque) e a peça natalina Adeste Fidelis.
Em seguida, o grupo fez outra apresentação surpresa no balcão do teatro principal do Cine-Theatro Brasil. Foi o momento de o público virar as costas para a grandiosa obra de Portinari e se voltar para os artistas de Santa Luzia, meninos de diferentes origens sociais.
“O coral é da comunidade, não tem vínculo com escola. Nele, há um leque abrangente em termos de representação de classes sociais e econômicas. No mesmo grupo cantam meninos de classe média alta e outros paupérrimos, que vivem em situação miserável”, revela Otávio Bretas, coordenador de relações-públicas do Coral Mater Ecclesiae.
No fim da apresentação, Portinari, o filho, desabafou: “Nem sei o que aconteceria se meu pai estivesse aqui”.