No primeiro capítulo de 'Divã de papel', como porta de entrada para o que vem em seguida, Maria de Jesus da Silva, a Zuza, dá voz à irmã, Veva, que, numa sinceridade desconcertante vai narrando, passo a passo e sem cair na lamúria, como se deu a traumática vinda da família para Belo Horizonte. No fim dos anos 1950, depois de amargar a miséria em Guanhães, no Vale do Rio Doce, a mãe, abandonada pelo marido, partiu de jardineira para tentar a vida na capital com seus oito filhos.
O espaço aberto para a irmã, que era a mais velha dos filhos de um casal de lavradores, é explicado pelo fato de que, à época da mudança, Zuza tinha apenas 11 meses. Daquela fase, a mulher de olhar determinado diz não se lembrar de nada. “Nunca mais voltei a Guanhães, nem tenho vontade. Foi sofrimento demais para a minha família”, diz.
Toda a história de vida de Zuza, com tantos e inacreditáveis desdobramentos, nos quais vai sendo mostrada uma trajetória de pobreza que o Brasil, desde sempre, faz questão de ignorar ou jogar para debaixo do tapete, está contada em Divã de papel, que a escritora lança terça-feira em Belo Horizonte. Sem forçar comparações, é uma saga parecida com a de dois outros brasileiros vindos da pobreza e que conseguiram documentar suas vidas em palavras: a escritora Carolina Maria de Jesus, autora de Quarto de despejo, e o contador de histórias Roberto Carlos Ramos.
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Qual não foi a sua surpresa quando, alguns meses depois, recebeu os cadernos recheados de textos escritos à mão e que, levados por ela para a universidade, logo chamaram a atenção de professores e alunos, a ponto de a professora Ivete Walty ter feito dos relatos de Zuza o tema do seu pós-doutorado. Apresentado na Universidade de Ottawa, no Canadá, com o título de Testemunha estomacal, fome e escrita, o texto vem em anexo no livro.
“As memórias de Zuza não são apenas suas confissões e reflexões pessoais, são o testemunho de alguém que resistiu à fome, com outra fome; não só a de ganhar dinheiro, como ela mesma diz, mas a fome de viver, ou mais do que isso, a de viver com o outro e para o outro”, escreveu. O livro foi também motivo de estudo feito pela professora Vera Felício Pereira e de dissertação de mestrado de Gislene Ferreira da Silva. O jornalista Rogério Zola Santiago auxiliou a escritora na montagem final do livro.
Cabeça de porco Reconhecimento acadêmico à parte, quem se lançar à inesquecível e triste aventura de ler o livro de Zuza – que se hoje não tem muita coisa além de casa própria, em Venda Nova, e uma disposição incrível para o trabalho – vai se encantar com a história de uma mulher rica em relação à realidade vivida na infância e adolescência. Algumas passagens são surpreendentes. Numa das mais terríveis de Divã de papel, que daria uma ótima minissérie ou documentário para TV, a autora volta ao Mercado Central de Belo Horizonte, no qual às vezes a família ia revirar lixo ou tentar encontrar algo para matar a fome.
É o seguinte o relato de Zuza: “Eu estava procurando algo para colocar na minha latinha, quando vi ou ouvi algo que me chamou a atenção. Sabe, estava acontecendo uma disputa entre minha mãe e outros pedintes. Nós todos corremos para ver de perto, estavam disputando uma cabeça de porco. Minha mãe puxava pra cá e a dona puxava pra lá, a disputa estava feia, minha mãe sozinha. Mas surgimos todos nós ao mesmo tempo e fomos ajudar a nossa mãe, a nossa turma era mais esperta e ganhamos a disputa. Ela guardou a cabeça do porco na sacola e saímos dali urgente, cada um por um caminho”.
Igualmente comoventes são as páginas que Veva, na abertura do livro, e Zuza, em outros capítulos, dedicam a uma de suas irmãs, Conceição. Alegre, despachada e líder da turma, também no primeiro momento internada no orfanato, no qual nunca conseguiu se adaptar, um dia ela simplesmente desapareceu, depois de ter ido à procura de um namorado. Nunca mais tiveram notícias dela, sendo esse, até hoje, um dos maiores traumas da família. No final do depoimento, Veva registra: “Conceição, eu não tenho mais o que falar, só tenho que chorar porque nada está ao meu alcance, pois só existe esperança enquanto há vida. Paro por aqui e deixo o resto para a minha irmã desabafar no seu divã”.
Além dos desabafos, que faz desse livro um documento impressionante, mas nem por isso amargurado, Zuza narra passagens alegres, como a sua ligação com a Escola de Samba Cidade Jardim e o seu amor pelo carnaval. Sem deixar de lado a política: ela foi candidata a vereadora de BH pelo Partido Verde, recebendo 300 votos. Em outros momentos, mesmo discretamente, fala ainda de alguns amores, afinal de contas ninguém é de ferro. Para concluir com as seguintes palavras: “Aqui não tem uma mentira, não tem ficção, é tudo realidade, pode botar fé em minha escrita terapêutica. Tenho 63 anos de janela e 106 de experiência”.
Divã de papel
• De Maria de Jesus da Silva, a Zuza
• Anome Livros, 418 páginas, R$ 40
• Lançamento terça-feira, a partir das 18h30, na Academia Mineira de Letras, Rua da Bahia, 1.466. Informações: (31) 3222-5764.
Maria de Jesus da Silva - Escritora
O que ficou para você de toda essa história de vida?
Disso tudo me ficou um aprendizado muito grande, mas não ficou revolta, porque consegui, graças à minha luta, transformar o limão em limonada e o sofrimento em graça.
Você chegou a estudar?
É claro que no orfanato aprendi alguma coisa, apesar da grande discriminação que eu e minhas irmãs sofremos, pelo fato de sermos negras. No mais, fui me virando por mim mesma. Na vida, a gente aprende a caminhar no amor ou no sofrimento. No meu caso, foi na dor e nos tropeços.
No livro você contou tudo?
Digamos que quase tudo. Só algumas coisinhas que não. Afinal de contas, todos nós temos segredos, que são inconfessáveis, e que devem ser levados para o túmulo.