O assunto do momento na área de cultura são, sem dúvida, as biografias. A discussão, que já estava na ordem do dia há algum tempo, inflamou-se nos últimos dias, a partir da criação do Procure Saber, formado por artistas como Roberto Carlos, Caetano Veloso, Milton Nascimento e Chico Buarque. O grupo, liderado pela empresária Paula Lavigne, defende a manutenção dos artigos 20 e 21 do Código Civil, que proíbem a divulgação de informações pessoais de qualquer cidadão em casos que "atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se destinarem a fins comerciais”. Resumindo, querem a autorização prévia do biografado para que as publicações cheguem às lojas.
Referência em biografias no Brasil, o jornalista e escritor mineiro Fernando Morais, de 67 anos, revela que ficou surpreso com o posicionamento de gente como Chico Buarque e Milton Nascimento. “O Chico mesmo é um cara atilado para as coisas políticas, o Milton também, são pessoas que conheço. Não esperava isso deles. O Djavan escreveu um artigo afirmando que os biógrafos estavam acumulando fortunas, enquanto o biografado não recebe nenhum tostão. Queria que ele apontasse um biógrafo que se encaixa nesse perfil. Vou mandar a conta do
açougue para o Djavan”, afirma.
Casado com uma historiadora e autor de 10 livros, sendo quatro biografias – Olga, que narra a trajetória de Olga Benário, recrutada pelo governo soviético para dar proteção ao líder comunista brasileiro Luís Carlos Prestes, com quem viveria um romance; Chatô, o rei do Brasil, biografia de Assis Chateaubriand; Montenegro, as aventuras do marechal que fez uma revolução nos céus do Brasil; e O mago, biografia de Paulo Coelho –, Morais assegura que nunca teve problema nenhum com seus biografados. “O problema que tive foi com o deputado Ronaldo Caiado, que foi citado em um dos meus livros, mas com relação aos outros, e olhe que contei a história de gente polêmica como Assis Chateaubriand, que tem filho, neto, bisneto. A família dele, inclusive, me ajudou muito a escrever”, revela. Em entrevista ao Estado de Minas, o jornalista e escritor falar sobre a polêmica ‘‘lei das biografias’’ e de seus projetos atuais, como um livro sobre o ex-presidente Lula.
Não tem como não falar desse embate envolvendo as biografias. Qual é a sua posição sobre o tema?
Nossa briga é pelo direito da população a conhecer a própria história. Vamos supor que eu queira falar sobre o Getúlio. A história dele pertence à família Vargas ou ao Brasil? Vou ter que consultar netos, bisnetos, etc.? Essa polêmica toda não atinge só quem escreve biografia, mas todo mundo que escreve não ficção no país.
E você tem discutido isso com seus colegas, tem se mobilizado nesse sentido?
A gente fala sim, e espero que quando a ministra Cármen Lúcia convocar a audiência pública para discutir o assunto, haja mobilização dos autores para fazer política no melhor sentido da palavra. Não preciso de ninguém para defender meus interesses. Até porque o interesse não é só meu. Não preciso disso. Vivo há 40 anos da venda dos meus livros num país que não lê livros. Nunca usei um tostão de incentivo fiscal, de ajuda, de Lei Rouanet. Até poderia, porque fazer um livro como Chatô..., que demanda muito trabalho, é caro. Mas não usei. Se essa história progredir, será um atraso. Tenho esperanças de que não progrida.
Você chegou a ter problemas com um dos seu livros, mas não com as biografias.
Sim. Tenho um processo do deputado Ronaldo Caiado. Fui condenado em Goiás, em várias instâncias. Consegui reduzir a indenização e, agora, meus advogados estão esperando para recorrer. Enquanto puder ir a uma instância superior, a gente vai. (A Justiça condenou a Editora Planeta, Fernando Morais e o publicitário Gabriel Zellmeister, da agência W/Brasil, a indenizar o deputado federal Ronaldo Caiado em R$ 2,5 milhões. No livro Na toca dos leões, sobre a história da W/Brasil, Morais diz que o deputado teria sugerido aos diretores da agência, durante a campanha de 1989, que poderia esterilizar as nordestinas por meio de uma substância química na água).
Como anda o produção do livro sobre o Lula?
Queria terminar o trabalho de campo em setembro, não consegui. Ainda tenho muitas entrevistas para fazer e alguns arquivos para mexer. Tem um pacote de fitas que o frei Betto me deu de inéditas do Lula, que ainda tenho que mandar digitalizar. Aparece muita coisa nova a todo momento, muitas contribuições. Sai uma notícia no jornal de que estou fazendo um livro sobre tal pessoa e aí muita gente entra em contato. ‘‘Ah, eu fiz segurança pro Lula quando ele era sindicalista ou ele era candidato’’. E eu vou atrás de tudo. Se o cara disser que está em Manaus e que tem um depoimento pra dar, eu vou. Tem que ver o que é.
Mas não chega a ser uma biografia dele?
Não. É um período da vida do Lula; uma fatia. Que vai da cadeia, em 19 de abril de 1980, ao fim da presidência. Acho que conto com duas vantagens com relação aos demais candidatos a esse trabalho. Primeiro, pelo fato de não ser do PT, não tenho ligação de nenhuma natureza com o partido. Segundo é que conheci Lula em 1979, e convivi muito com ele até a presidência. O Itamar Franco dizia uma coisa bem curiosa: que as pessoas são divididas entre as que são e as que não são percevejos do palácio. E sou um antipercevejo do palácio. Então, Lula virou presidente e perdi o contato.
E como começa a história desse livro?
Começa na noite em que o sindicato de São Bernardo foi invadido. Estávamos na cidade (eu, que era deputado pelo MDB, Fernando Henrique Cardoso, que na época era suplente de senador, e um deputado do PT, o Geraldinho Siqueira). Eu estava sempre lá, porque tinha muita repressão e tudo. Naquela noite, FHC apareceu e fomos comer frango com polenta num restaurante. Na hora que terminou o jantar, Lula intuiu que o governo ia fazer alguma coisa contra o sindicato nas próximas horas. FHC discordou, achava que Figueiredo não estava com muita força. Depois do jantar, eu e Geraldinho Siqueira fomos para o sindicato. Começamos a jogar baralho e à 1h30 da manhã olhamos pela janela. A sala do Lula ficava no último andar do prédio. Ouvimos um barulho estranho e a Tropa de Choque já tinha cercado o sindicato. O interventor (Romeu Tuma) estava subindo com uma ordem para o Lula deixar a diretoria. Olhe a ironia do destino. Ele tinha me prendido uns anos antes, numa das minhas voltas de Cuba, se tornou meu carcereiro. Anos depois, permitiu que eu levasse frutas escondido para os presos, tanto o Lula quanto os outros diretores do sindicato.
E por que esse interesse em contar a história do presidente do Lula?
Estou cercando o Lula desde 2002, ele nunca topou. Em julho de 2011, eu estava passando férias na França e ele me ligou. Começamos a conversar e ele finalmente quis fazer. Muita gente acha que ele tomou essa decisão depois que descobriu o câncer. Mas ele decidiu antes. A doença só foi diagnosticada em outubro... A doença atrasou muito o livro. Mesmo depois de ele descobrir, gravamos. Tenho fotos com ele já sem barba, sem cabelo. Enquanto estava sendo submetido à quimioterapia, conseguimos fazer. Mas quando começou a radioterapia, não deu mais. Afetou muito a voz dele. Ficamos de dezembro de 2011 a julho de 2012 sem trabalhar. Então, fui entrevistar outras pessoas. Só voltamos quando o médico liberou. Mas ainda tem muita coisa a fazer.
Você se considera amigo do Lula?
Não. Não frequento a intimidade dele. Ele foi à minha casa umas quatro vezes. Uma para comer uma canjiquinha que o frei Betto cozinhou. Noutra, eles precisavam de uma casa que não fosse visada pela imprensa para uma conspiração dele, do Brizola, da Martha Suplicy e o do Quércia. Uma tentativa de fazer a aliança PMDB/PT/PDT para a eleição presidencial de 1998. O mais engraçado é que a casa do FHC era do outro lado da rua. Eu brincava que se ele subisse num caixote e olhasse para a minha casa, ia saber que estávamos conspirando contra ele (risos). Então, essa pequena convivência com o Lula, pra mim, muito rica, porque é de primeira mão. Não estou entrevistando ninguém para saber dessas histórias. São coisas que vi e vivi, que testemunhei. Isso acaba contribuindo para que eu faça o livro com certa vantagem sobre outras pessoas. Tem boa parte da história de que eu mesmo participei.
O projeto do livro do José Dirceu foi interrompido. Você vai retomá-lo?
Não sei. Até porque estou me inclinando cada vez mais a pendurar as chuteiras. Já estou meio de saco cheio de escrever livro. É muito cansativo. Mesmo para a pessoa que tem a sorte de vender muito, como eu, não compensa. Tenho 67 anos e não tenho nada. Nem a casa onde moro; a metade é da minha mulher. Se ficar três meses sem trabalhar, não tenho como pagar o supermercado, o condomínio. É um trabalho infernal. Já escrever, nem tanto, eu gosto. É trabalho de campo, porque sou minucioso, detalhista, do tempo em que a arte do jornalismo era a arte de sujar o sapato. Esse negócio de fazer entrevista pelo telefone, pela internet, não dá. Vou entrevistar você e quero saber se você é careca, gordo, se tem dentes, se está com um sapato furado. Você pode até dizer que isso não tem a menor importância para a história. Mas tem para o leitor. Contar para as pessoas que estou fumando um charuto e tomando uma cachaça não vai mudar nada do que vou dizer. Mas é mais saboroso. Você dá um presentinho a mais ao leitor. E acho que o leitor tem que ser bem tratado sempre.
Mesmo falando em pendurar as chuteiras, quais as histórias você ainda gostaria de escrever?
Nossa, um monte. A história da luta armada no Brasil, a do Partido Comunista Brasileiro. Tem personagens interessantes. E tem muita coisa que gostaria de ter feito e não consegui por estar metido em outros projetos. Por exemplo, ia fazer a história de Salvatore Cacciola. Alguém fez uma ponte entre nós. Cacciola ia dar a versão dele, dando nome aos bois. Fui para Roma, jantamos, a história parecia saborosa jornalisticamente. Mas eu precisava de prazo. Ele queria pra já. Como eu estava envolvido com outro livro, a editora já estava esperando, não foi pra frente.
Apesar de ter escrito tantos livros de reportagens, você se destacou mesmo pelas biografias. Por que esse interesse do leitor pelo gênero?
Tem uma série de ingredientes. Primeiro, há enorme curiosidade das pessoas, mesmo as mais velhas, porque houve o período da ditadura em que não se podia falar de nada. E os mais jovens também têm interesse pela história recente do Brasil, e por outras histórias. Em segundo lugar, acho que tem uma preocupação com o texto. O escritor tem que ter essa preocupação com um texto elegante, saboroso, com minúcia. No Olga, por exemplo, conto, respeitosamente, que o Prestes era virgem aos 37 anos, e foi para a cama com a Olga pela primeira vez, e ela já tinha vasta experiência com homens. Foi o próprio Luiz Carlos Prestes que me contou isso. Não foi uma coisa que descobri. Usei isso respeitosamente, para não transformar numa bisbilhotice.
Você nunca escreveu nada ficcional. Tem vontade?
Nem pensar, com uma realidade tão boa igual a esta. Nunca escrevi um parágrafo ficcional. Não tenho vontade. Fiz uma experiência de roteiro semificcional para uma minissérie da TV Globo chamada Sociedade secreta, sobre a Revolução de 1930, em São Paulo. E teve a série Cinco dias que abalaram o Brasil, no GNT, sobre o Getúlio Vargas. Mas ali tudo eram fatos. A parte de ficção, que eram os jornalistas narrando a história, era só uma fachada.
O que você acha das adaptações dos seus livros para o cinema?
Teve o Olga, do Jayme Monjardim, e Corações sujos, do Vicente Amorim. Gosto dos dois. São duas adaptações completamente diferentes. O Jayme fez uma escolha, foi fazer um filme popular e acertou, porque deu 5 milhões de espectadores. Os chamados intelectuais não gostam, mas eu gosto. Até porque foi um filme que popularizou uma história que era privilégio de meia dúzia de pessoas. O Corações sujos já é um filme mais cabeça. Mas ambos me agradam.