Há 10 anos, Sabotage (1973 – 2003) foi executado à queima-roupa, em São Paulo, com quatro tiros. Negro, pobre e favelado, deixou apenas um disco solo, clássico do rap nacional.
Fez dois papéis no cinema – e arrasou. De certa forma, Sabotage mal teve tempo de estrear, mas, hoje, tem “mais futuro” que o escritor Mário de Andrade e o compositor Noel Rosa, ícones da cultura brasileira.
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Contrário à censura prévia, ele não aplaude a cruzada de astros da MPB, como Chico Buarque, Caetano Veloso e Roberto Carlos, para impedir biografias não autorizadas de chegarem a público.
'Um bom lugar', aliás, vem em boa hora: prova que biografia oficial não é sinônimo de livro chapa-branca. Aliás, a chapa sempre esquentou nos 29 anos de vida de Mauro Mateus dos Santos. Criado na Favela do Canão, na capital paulista, teve o primeiro emprego aos 8, como olheiro do tráfico. Um irmão morreu assassinado depois de fugir da cadeia. O outro, trabalhador, perdeu o juízo ao sucumbir à miséria e ao álcool. A mãe criou os três sozinha.
Foi mais uma vítima das eternas mazelas da saúde pública brasileira.
Desde pequeno, Maurinho dizia ter “síndrome de pensar”. No começo, era bom de estudos; depois caiu na vida e só completou a 5ª série adulto. Aos 15, via-se como o personagem de 'O meu guri', aquela canção edipiana de Chico Buarque sobre mães e filhos metidos com a polícia. Por muitos anos, ele se dividiu entre a rima e a contravenção. Querido em sua Favela do Canão, horrorizou na Vila da Paz, para onde a família foi removida pela administração Paulo Maluf. Ele próprio admitiu: era “terrorista”.
Toni C. não demoniza nem alivia seu biografado, que perdeu os dentes ao apanhar numa delegacia. Conta como vizinhos “da Paz” temiam o novo chefete das drogas. 'Um bom lugar' não é conclusivo a respeito do assassinato do rapper, atribuído a broncas antigas com traficantes. Preso em 2004, Sirlei Menezes da Silva foi condenado a 14 anos. Há quem diga que se trata de um laranja. Há quem veja o PCC envolvido.
A transição de Maurinho para Sabotage se deu – literalmente – pela porta dos fundos de clubes e casas de show. Graças aos rappers Rapin Hood e Sandrão (do Grupo RZO), o rimador banguela deixou o “negócio” para se dedicar ao palco – devidamente autorizado pelo “omi”.
A vida de artista não o tirou da favela. Frequentou hotéis cinco estrelas e festas chiques, mas morava no Boqueirão. Comemorou quando pôs chuveiro elétrico em sua casa. No fim de sua breve vida, cansou de avisar aos jovens em entrevistas e em seu rap: “vida loka” é caminho do cemitério.
Depois de muita ralação, a música 'O rap é compromisso' estourou, projetando Sabotage e suas tranças espetadas como antenas. O disco homônimo, de 2001, trazia versos certeiros – ele era bom de rima e de microfone. O rapper fez dois filmaços: O invasor, de Beto Brant (2002), com participação importante na trilha sonora, e 'Carandiru', de Hector Babenco (2003).
Sem ele, o cantor Paulo Miklos não construiria seu personagem com tanta propriedade. Sem ele, Babenco não levaria para as telas um presídio tão real. Sabotage trouxe verdade ao cinema brasileiro.
O “multissabotage” era poeta, pai de família amoroso, cronista sensível de sua quebrada e foi linha de frente do “movimento” em determinada fase da vida. Ouvia Barry White, rap americano e brasileiro, Pixinguinha, Tom Jobim, Chico Buarque, reggae, rock e Sepultura. Juntou tudo em impressionantes performances. O maestro do Canão misturou samba com rap muito antes dos cariocas.
De quebra, continua vivo nos iPods da garotada e na voz de gente como Criolo, que o chama de mestre. Volta e meia, o autor de 'Não existe amor em SP' sobe ao palco com uma camiseta preta. Nela está escrito Sabotage – em letras garrafais.
Toni C.
Levei 10 anos para publicar o livro do Sabotage. Nove deles apenas lendo reportagens, pesquisando, acompanhando a distância os acontecimentos por uma única razão: não tinha contato com seus familiares e não me interessava em produzir uma biografia “não oficial”.
Escrever é compromisso e eu desejava oferecer contrapartida, inclusive econômica, para seus herdeiros. Afinal, rapper ainda não tem direito a 13º, não goza férias e aposentadoria nem deixa herança além de suas rimas e histórias de superação.
Para minha satisfação, a proposta foi prontamente aceita. O acordo foi rápido e logo suas histórias transbordavam pelas páginas de 'Um bom lugar'. Infelizmente, essa não é a regra, mas a exceção. “Lançar biografia não autorizada no Brasil é suicídio”, ameaça a viúva de Raul Seixas. De um lado do ringue, a Constituição garante a “liberdade de expressão”, do outro o Código Civil reza pelo “direito à privacidade”, cada vez mais fora de moda.
Está estabelecida a guerra entre famosos e escritores.
Não defendo todo o poder aos biógrafos, o que faria das editoras detentoras do “Big Brother” literário, nem podemos nos contentar em ter a Wikipédia como única referência biográfica dos notáveis. Mas também não é admissível, nem mesmo ao Rei, o poder de jogar histórias públicas na privada. Tenho a biografia proibida de Roberto Carlos, acompanhei o drible dos detentores dos direitos de Mané Garrincha e lamento a recente postura desafinada do cantor Djavan.
Pessoas públicas têm deveres e responsabilidades, estão submetidas a críticas, são alvo de reportagens e podem ter suas vidas contadas em biografias. O que elas podem fazer: criar suas próprias autobiografias, legar a alguém a confecção de uma biografia oficial, ou ainda processar, ser indenizado e ter direito de resposta caso se sintam caluniadas ou difamadas.
Todo o restante é censura prévia.
Tem Sabotage na pista
Autor da biografia de Sabotage, o escritor Toni C. se impressiona com seu legado. “Jovens de 15 anos, que tinham 5 quando ele morreu, conhecem seus raps. Sabotage está vivo no imaginário brasileiro”, diz. Em São Paulo, o cineasta Ivan Vale Ferreira, conhecido como Ivan 13P, está concluindo a edição do documentário 'Sabotage: o maestro do Canão'.
O longa terá depoimentos de Beto Brant e Hector Babenco, que dirigiram filmes com o rapper, e participação dos músicos Paulo Miklos, Andreas Kisser e B. Negão, além de familiares e amigos.
“Carismático, Sabotage era superquerido. Dez anos depois de sua morte, ele continua sendo um dos caras mais influentes do underground”, diz Ivan. Agora, ele batalha por salas para exibir seu longa. Aliás, seria muito bacana se esse filme passasse na próxima edição da Mostra de Cinema de Tiradentes.
Em 2003, quando o mestre do Canão morreu, uma oficina do evento – comandada pelo diretor Luiz Carlos Lacerda – prestou homenagem a ele. Jovens alunos do Bigode fizeram dois vídeos sobre o rapper.
Em BH, o Cineclube Sabotage, criado há quatro anos e meio no Bairro Taquaril, funciona dentro da Escola Municipal Professora Alcida Torres. Coordenador do projeto, o arte-educador Marcos Donizete diz que a forte simbologia das letras do rapper inspira jovens da comunidade. “Elas mostram que hip-hop é, além de cultura, ideologia e proposta de vida”, conclui.
Assista ao teaser do documentário 'Sabotage: O maestro do canão':