Gilberto Gil revisita os momentos mais importantes de sua vida em livro

Aos 71 anos, cantor escreveu em parceria com a jornalista Regina Zappa. Arte, política e filosofia marcam as memórias do artista

por Ana Clara Brant 28/07/2013 10:39

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Valentin Flauraud/Reuters
Gilberto Gil diz que suas memórias pertencem ao coletivo social (foto: Valentin Flauraud/Reuters)
O cantor e compositor Gilberto Gil chegou a declarar: “de jeito nenhum” sua vida valeria um livro. Não só valeu, como ele tem 400 páginas e já está nas lojas. “Nunca tive a necessidade de contar minhas memórias. Nunca foi um anseio meu, mas do coletivo social. Entretanto, foi bacana repensar, reviver e revisitar tudo”, declarou o artista.

Durante quase um ano – o projeto, na verdade, começou em 2008, quando a editora Leila Name sugeriu a ideia para antecipar os 70 anos do baiano, celebrados em 2012 –, a jornalista e escritora carioca Regina Zappa, autora da biografia de Chico Buarque, colheu depoimentos do tropicalista. Os dois chegaram a conviver sob o mesmo teto durante quatro dias no apartamento do compositor, em Salvador.

 “Além das entrevistas no Rio de Janeiro, foi bem intenso na Bahia, porque a gente tomava café, passava o dia juntos e até assistia à novela. Eu, Gil e a Flora, mulher dele. Isso foi bem importante”, lembra Regina.

Tamanha proximidade resultou no título mais que apropriado: Gilberto bem perto. Ele remonta à canção gravada por Gil e Rita Lee no disco Refestança. A história começa, literalmente, pelo começo: com menos de um mês, o bebê Gilberto, chamado carinhosamente de Beto, foi viver em Ituaçu, no sertão baiano. Aos 2 anos, ele avisou categoricamente a Claudina, a dona Coló: “Quero ser ‘musgueiro’, mãe. Quero ser ‘musgueiro’ e pai de filho.” Musgueiro era a palavra inventada pelo menino para definir músico.

Desde cedo, Beto demonstrava inclinação para as artes. Dona Coló percebeu. Quando ele completou 10 anos, a mãe o colocou na escola de música, além de presenteá-lo com um acordeom. Ali já se manifestava outra paixão: Luiz Gonzaga, a maior influência da carreira de Gilberto Gil.

Uma das pessoas que mais emocionaram Regina Zappa durante a pesquisa foi dona Coló, que morreu aos 99 anos, em fevereiro. “A lucidez e a vivacidade dela impressionavam. Algumas vezes, lembrava-se muito mais das coisas que o próprio Gil. Ela sabia o nome das pessoas, contou histórias dos antepassados, chegou a cantar durante uma das entrevistas. Ela foi muito importante: além de gostar muito de música e ter bela voz, percebeu o talento e o interesse do filho. Desde cedo, a mãe o incentivou”, afirma a jornalista.

A mudança para Salvador foi marcante: lá ocorreu o encontro mágico de Gil com os “doces bárbaros” Caetano Veloso, Maria Bethânia e Gal Costa. O livro relembra os quatro casamentos do músico (com Belina Dias, Nana Caymmi, Sandra Gadelha e Flora Gil); a chegada a São Paulo nos anos 1960; os festivais e a Tropicália; a prisão e o exílio na Europa durante a ditadura militar; o nascimento dos filhos – e a trágica morte de um deles, Pedro, em acidente de carro em 1990; a carreira política (como vereador mais votado em Salvador, em 1988, e a marcante experiência como ministro da Cultura do governo Lula); o engajamento na luta ambiental. Além, claro, do processo de criação. Cada capítulo (são nove) tem como subtítulo um trecho de letra escrita por Gilberto Gil. O leitor encontra também currículo, discografia e até a árvore genealógica do cantor e compositor.

Nada passou despercebido a Regina Zappa, que permeou o livro com entrevistas de Gilberto Gil a revistas, documentários e jornais, além de depoimentos de familiares, amigos e admiradores como Rita Lee, Jorge Mautner, Hermano Vianna, Fernanda Torres e José Miguel Wisnik.

Mar de ideias


Para Regina Zappa, o mais bacana foram as conversas com Gilberto Gil sobre as experiências que o marcaram em 71 anos, completados em 26 de junho. “Não dá para contar tudo. Era preciso optar pelo mais relevante, e essa seleção acabou sendo feita pelo próprio Gil. É ótimo você escrever uma biografia e ter a pessoa se abrindo, participando. Como ele sempre atuou em várias áreas, tem muito a dizer”, ressalta a jornalista.

Gil assina o livro em parceria com Regina justamente porque, ao abrir o coração, acabou ditando suas memórias. “Chamou muito a minha atenção essa parte emotiva dele. Gil vai bem no fundo e se emociona. Ele funciona mais do pescoço para baixo, mais emoção que razão. É como um rio, um mar. Gil tem vários braços, facetas e cores”, filosofa a jornalista.

Mesmo depois de compartilhar experiências e intimidades de Gilberto Gil, Regina Zappa considera praticamente impossível defini-lo. Afinal, trata-se de um ser único e diverso, argumenta a escritora. “Todos os perfis fazem parte dele. Gil é a mesma pessoa, tem a mesma integridade em todos os seus ‘papéis’, seja como cantor, político, compositor ou indivíduo que cuida da alimentação, medita e é ativista. Em todas essas múltiplas facetas, Gilberto Gil conserva a unidade e a integridade”, resume Regina Zappa.

ÁLBUM DE FAMÍLIA


Gilberto bem perto é ricamente ilustrado com fotos do arquivo pessoal do compositor. As imagens – incluindo a primeira foto do bebê Gilberto Passos Gil Moreira em 1942, ano de seu nascimento – oferecem um panorama visual da trajetória do artista. Lá estão momentos pessoais e familiares (com os pais, filhos, netos e amores), os dolorosos (passados no exílio europeu) e dias históricos no palco (como a apresentação da inovadora canção Domingo no parque no festival da Record, em 1967). Também merece destaque a performance de Gilberto Gil como vereador soteropolitano e ministro da Cultura. Arte e política se mesclaram em 2003, na Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), em Nova York, durante homenagem ao diplomata brasileiro Sérgio Vieira de Mello e às 21 pessoas que morreram em atentado terrorista à sede do órgão no Iraque. Gil cantou e tocou violão, enquanto o secretário-geral, Koffi Annan, encarregava-se do bongô. “São retratos de um homem que, hoje, é um homem velho”, brinca o biografado.

TRECHO

O ‘musgueiro’ de dona Coló

“Eu sou músico desde os dois anos de idade, desde que eu pude dizer, desde que eu pude perceber que eu era um indivíduo junto àquela comunidade, à família, à cidade, nas viagens, quando eu saí de Ituaçu pela primeira vez para ir a Salvador. Quando eu pude dizer qual era o meu lugar naqueles mundos todos que se apresentavam a mim em camadas cada vez mais numerosas, eu disse à minha mãe, no primeiro momento que eu pude, e a história famosa que ela repete até hoje: ‘Eu quero ser musgueiro!’. Eu tinha dois anos e pouco. ‘Eu quero ser musgueiro, mãe. Eu quero ser musgueiro e pai de filho.’ Ela ouviu e registrou, nunca se esqueceu, tanto que, aos 10 anos, ela disse: ‘Você ainda quer ser musgueiro?’ E eu falei: ‘Quero, mãe!’. E ela disse: ‘Então você vai para a escola, você vai estudar. O que você quer? Você quer uma sanfona? Você gosta de Luiz Gonzaga, quer um acordeão?’ Ela estava atenta, muito atenta.”

GILBERTO GIL BEM PERTO


. De Regina Zappa e Gilberto Gil
. Editora Nova Fronteira, 400 páginas, R$ 59,90

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