Alfenas – Como diria Chico Buarque, todo dia ele faz tudo sempre igual. Acorda às sete da manhã, toma café, reza e depois parte para seu cantinho predileto no casarão de oito cômodos na praça principal de Alfenas, no Sul de Minas. Em um pequeno escritório, logo na entrada da residência, o teatrólogo mineiro Waldir de Luna Carneiro viaja sem sair do lugar.
Só que Chico não tem vez ali. O negócio de Waldir é ópera e teatro: “Ah, não tem nada melhor!”, garante. Já são 92 anos bem vividos. O rosto, sempre sorridente, de certa forma entrega o segredo. Desde que se entende por gente, seu Waldir se diverte com o que é humano. “Para mim, tudo é engraçado”, diz. Eis aí a matéria-prima daquilo que ele escreveu nas 60 peças de teatro, nos livros e nas colunas semanais publicadas no periódico de sua cidade.
Se há alguma frustração, é o fato de não ter sido tão lido quanto gostaria e ser pouco conhecido nos palcos do Brasil. “Nós, da roça, não temos caminho. Qorpo Santo, por exemplo, foi descoberto 50 anos depois. Estou esperando a minha vez”, desabafa Luna Carneiro. Mesmo com a brincadeira de que a morte será o caminho para o estrelato, o homem, obviamente, não cruzou os braços. A peça 'Revolução em Campina Brava', escrita em 1964, está prestes a ganhar nova edição – e sem lei de incentivo. O autor tira dinheiro da aposentadoria para ter o gosto de espalhar suas ideias.
No entanto, seu Waldir ainda não sabe que as coisas podem melhorar. Até o fim do ano, todos os atores que desejarem ingressar na carreira profissional em Minas Gerais terão de encenar um texto dele na prova de capacitação. “Nos próximos exames, Luna será o único autor indicado no Programa Dramaturgos de Minas, que pretende trazer nossas pérolas ao conhecimento dos jovens”, informa Magdalena Rodrigues, presidente do Sindicato dos Artistas e Técnicos em Espetáculos de Diversões de Minas Gerais (Sated/MG).
“Waldir de Luna Carneiro é dramaturgo de grande inteligência descritiva, talvez por ter sido desenhista. Criado em Alfenas, foi trazido para a convivência daqueles que se submetem à banca de capacitação profissional por nosso saudoso Ítalo Mudado, que durante 18 anos palestrou para novos artistas”, afirma Magdalena.
Fósforo Para esse sujeito apaixonado pela fala, nascido em Santa Rita de Sapucaí em março de 1921, tudo começou com a mania de contar histórias. Primeiro para as empregadas da família; depois para os amigos. Rapidamente, eles passaram de ouvintes a personagens das tramas arquitetadas por Luna Carneiro. “O teatro entrou no porão da minha casa. Fazia para as crianças e o ingresso era um palito de fósforo”, conta o autor.
A carreira profissional começou em 1942, em Alfenas, com um grupo local. A encenação de 'Dr. Complicação' – cujo protagonista era o próprio autor, com ingressos a dois mil réis e várias sessões diárias – deu início à longa trajetória. “Foi uma peça atrás da outra, porque a turma não me dava sossego”, conta Luna, referindo-se a seu trabalho com os grupos amadores da cidade.
A comédia é o gênero predileto de Luna Carneiro, mas o “Shakespeare de Alfenas”, como é chamado, visitou também o drama e o teatro de protesto. “Faço crônica, teatro-reportagem, uma história da nossa região no palco”, resume. Ao longo da carreira, recebeu 10 prêmios. Os que se traduziram em dinheiro foram reinvestidos em discos e óperas. Waldir tem tudo o que foi publicado sobre ele guardado numa pasta. Com carinho, arquiva de reportagens a cartas de leitores ilustres. De Carlos Drummond de Andrade, por exemplo, recebeu estas palavras: “Li com grande prazer e interesse a paróquia que habitamos. Na dedicatória diz que seria apenas goiabada caseira; delícia de goiabada, digo eu”.
Criar peças de teatro, contos e crônicas é algo natural para Luna Carneiro. “Uns nascem para compor música, outros para escrever, uns para contar mentira, que é o mais comum hoje em dia”, diz. Ao comentar seu ofício, lembra um poeta português: “A gente nasce escritor como nasce com a corcunda. É uma fatalidade”.
Desde muito novo, Luna Carneiro foi obrigado a lidar com sua vocação. Convocado para servir nas Forças Armadas durante a 2ª Guerra Mundial, ele não apenas escrevia no quartel. Também desenhava. Dispensado depois do fim do conflito, pensou em se mudar para o Rio de Janeiro com o propósito de fazer carreira nas letras. Entretanto, ouviu de um conhecido: “Arranja um emprego de qualquer tipo, porque isso não dá dinheiro”. Tornou-se funcionário da Caixa Econômica Federal, criou sete filhos, tem 13 netos e agora se diverte com as três bisnetas.
Site A rotina de Waldir de Luna Carneiro se resume às leituras, à ópera e à internet. Diariamente, passa horas navegando por sites de notícias e livrarias em busca de raridades para complementar sua extensa biblioteca. De dramaturgia, conhece tudo. Entre os prediletos está o italiano Giovanni Papini (1874 –1936). “Ele era um vulcão. Tenho todos os livros dele”, conta.
Bom de papo, quando conversa com colegas da nova geração se surpreende com a preguiça dos jovens. Luna cuidou de construir dramaturgia focada no poder da palavra para contar a história de seu povo. E confessa: chega a desanimar ao ouvir certos comentários. “Tem gente que chega e fala: ‘Ô, seu Waldir, gosto muito de teatro, mas o que me encabula são os diálogos’. Olha pra você ver: se for assim mesmo, acabou”, reclama. Mas nosso Shakespeare não desanima. “Sou um teimoso. Mais nada”, conclui.
DOIS VOLUMES
Há cinco anos, a Prefeitura de Alfenas publicou boa parte da obra teatral de Waldir de Luna Carneiro na coleção Teatro completo, com dois volumes. Eles somam 600 páginas e reúnem 50 peças. Cerca de 1 mil exemplares foram distribuídos gratuitamente para bibliotecas da região.
ALGUMAS PEÇAS
» Dr. Complicação
» Revolução em Campina Brava
» O agiota
» O zebuzeiro
» A mandinga
» O mensageiro da fé
» O maluco do Morro do Esqueleto
» A represa
A CARREIRA
1942
Estreia da primeira peça profissional de Luna Carneiro
60
Peças de teatro
400
Crônicas e minicontos
Só que Chico não tem vez ali. O negócio de Waldir é ópera e teatro: “Ah, não tem nada melhor!”, garante. Já são 92 anos bem vividos. O rosto, sempre sorridente, de certa forma entrega o segredo. Desde que se entende por gente, seu Waldir se diverte com o que é humano. “Para mim, tudo é engraçado”, diz. Eis aí a matéria-prima daquilo que ele escreveu nas 60 peças de teatro, nos livros e nas colunas semanais publicadas no periódico de sua cidade.
Se há alguma frustração, é o fato de não ter sido tão lido quanto gostaria e ser pouco conhecido nos palcos do Brasil. “Nós, da roça, não temos caminho. Qorpo Santo, por exemplo, foi descoberto 50 anos depois. Estou esperando a minha vez”, desabafa Luna Carneiro. Mesmo com a brincadeira de que a morte será o caminho para o estrelato, o homem, obviamente, não cruzou os braços. A peça 'Revolução em Campina Brava', escrita em 1964, está prestes a ganhar nova edição – e sem lei de incentivo. O autor tira dinheiro da aposentadoria para ter o gosto de espalhar suas ideias.
No entanto, seu Waldir ainda não sabe que as coisas podem melhorar. Até o fim do ano, todos os atores que desejarem ingressar na carreira profissional em Minas Gerais terão de encenar um texto dele na prova de capacitação. “Nos próximos exames, Luna será o único autor indicado no Programa Dramaturgos de Minas, que pretende trazer nossas pérolas ao conhecimento dos jovens”, informa Magdalena Rodrigues, presidente do Sindicato dos Artistas e Técnicos em Espetáculos de Diversões de Minas Gerais (Sated/MG).
“Waldir de Luna Carneiro é dramaturgo de grande inteligência descritiva, talvez por ter sido desenhista. Criado em Alfenas, foi trazido para a convivência daqueles que se submetem à banca de capacitação profissional por nosso saudoso Ítalo Mudado, que durante 18 anos palestrou para novos artistas”, afirma Magdalena.
Fósforo Para esse sujeito apaixonado pela fala, nascido em Santa Rita de Sapucaí em março de 1921, tudo começou com a mania de contar histórias. Primeiro para as empregadas da família; depois para os amigos. Rapidamente, eles passaram de ouvintes a personagens das tramas arquitetadas por Luna Carneiro. “O teatro entrou no porão da minha casa. Fazia para as crianças e o ingresso era um palito de fósforo”, conta o autor.
A carreira profissional começou em 1942, em Alfenas, com um grupo local. A encenação de 'Dr. Complicação' – cujo protagonista era o próprio autor, com ingressos a dois mil réis e várias sessões diárias – deu início à longa trajetória. “Foi uma peça atrás da outra, porque a turma não me dava sossego”, conta Luna, referindo-se a seu trabalho com os grupos amadores da cidade.
A comédia é o gênero predileto de Luna Carneiro, mas o “Shakespeare de Alfenas”, como é chamado, visitou também o drama e o teatro de protesto. “Faço crônica, teatro-reportagem, uma história da nossa região no palco”, resume. Ao longo da carreira, recebeu 10 prêmios. Os que se traduziram em dinheiro foram reinvestidos em discos e óperas. Waldir tem tudo o que foi publicado sobre ele guardado numa pasta. Com carinho, arquiva de reportagens a cartas de leitores ilustres. De Carlos Drummond de Andrade, por exemplo, recebeu estas palavras: “Li com grande prazer e interesse a paróquia que habitamos. Na dedicatória diz que seria apenas goiabada caseira; delícia de goiabada, digo eu”.
Criar peças de teatro, contos e crônicas é algo natural para Luna Carneiro. “Uns nascem para compor música, outros para escrever, uns para contar mentira, que é o mais comum hoje em dia”, diz. Ao comentar seu ofício, lembra um poeta português: “A gente nasce escritor como nasce com a corcunda. É uma fatalidade”.
Desde muito novo, Luna Carneiro foi obrigado a lidar com sua vocação. Convocado para servir nas Forças Armadas durante a 2ª Guerra Mundial, ele não apenas escrevia no quartel. Também desenhava. Dispensado depois do fim do conflito, pensou em se mudar para o Rio de Janeiro com o propósito de fazer carreira nas letras. Entretanto, ouviu de um conhecido: “Arranja um emprego de qualquer tipo, porque isso não dá dinheiro”. Tornou-se funcionário da Caixa Econômica Federal, criou sete filhos, tem 13 netos e agora se diverte com as três bisnetas.
Site A rotina de Waldir de Luna Carneiro se resume às leituras, à ópera e à internet. Diariamente, passa horas navegando por sites de notícias e livrarias em busca de raridades para complementar sua extensa biblioteca. De dramaturgia, conhece tudo. Entre os prediletos está o italiano Giovanni Papini (1874 –1936). “Ele era um vulcão. Tenho todos os livros dele”, conta.
Bom de papo, quando conversa com colegas da nova geração se surpreende com a preguiça dos jovens. Luna cuidou de construir dramaturgia focada no poder da palavra para contar a história de seu povo. E confessa: chega a desanimar ao ouvir certos comentários. “Tem gente que chega e fala: ‘Ô, seu Waldir, gosto muito de teatro, mas o que me encabula são os diálogos’. Olha pra você ver: se for assim mesmo, acabou”, reclama. Mas nosso Shakespeare não desanima. “Sou um teimoso. Mais nada”, conclui.
DOIS VOLUMES
Há cinco anos, a Prefeitura de Alfenas publicou boa parte da obra teatral de Waldir de Luna Carneiro na coleção Teatro completo, com dois volumes. Eles somam 600 páginas e reúnem 50 peças. Cerca de 1 mil exemplares foram distribuídos gratuitamente para bibliotecas da região.
ALGUMAS PEÇAS
» Dr. Complicação
» Revolução em Campina Brava
» O agiota
» O zebuzeiro
» A mandinga
» O mensageiro da fé
» O maluco do Morro do Esqueleto
» A represa
A CARREIRA
1942
Estreia da primeira peça profissional de Luna Carneiro
60
Peças de teatro
400
Crônicas e minicontos