Torquato Neto tem dois livros de poemas inéditos lançados com a produção literária da juventude

Multiartista fez parte da linha de frente da Tropicália e se suicidou aos 28 anos

por Ângela Faria 10/01/2013 08:47
Acervo Artistico Torquato Neto/divulgação
(foto: Acervo Artistico Torquato Neto/divulgação)
Torquato Neto (1944-1972) nem sequer publicou um livro. Quando se suicidou, o jovem letrista e poeta deixou três dúzias de canções gravadas por Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa, Edu Lobo, Nana Caymmi e Jards Macalé, entre outros nomes da MPB. Quarenta anos depois de sua morte, porém, esse piauiense bate ponto nos iPods da moçada do século 21. “Só quero saber/ do que pode dar certo/ Não tenho tempo a perder”, dizem os versos do poema “Go back”, que ganhou melodia de Sérgio Britto, em 1984, e faz sucesso nos shows dos Titãs.

Em seus 28 anos de vida, Torquato não desperdiçou tempo. Compositor, poeta, ator, roteirista, jornalista e agitador cultural, veio dele a ideia de lançar o disco-manifesto Tropicália ou Panis et circenses. Embora poucos se lembrem disso – sobretudo nestes tempos de revival tropicalista –, o multiartista piauiense nunca foi mero coadjuvante dos astros Caetano Veloso e Gilberto Gil. Ideólogo do movimento, escreveu as letras de canções emblemáticas: Geleia geral, Mamãe, coragem, Louvação e Marginália II.

Torquato Neto se destacou tanto na MPB tradicional (são dele os versos de Pra dizer adeus, parceria com Edu Lobo) quanto na vanguarda. Sua coluna “Geleia geral”, publicada no jornal Última Hora, instigava o leitor a se despir de preconceitos para compreender o arrojo estético setentista. Inquieto, juntou-se ao artista plástico Hélio Oiticica, ao cineasta Ivan Cardoso, ao multicriador Rogério Duarte e ao poeta Wally Salomão para gestar a revolução experimental das artes brasileiras.

Obra

“Como Buda, Confúcio , Sócrates ou Jesus, Torquato não deixou livros”, constatou o escritor paranaense Paulo Leminski. Há quem diga que dele não ficou uma obra propriamente dita. Há controvérsias: o multiartista de Teresina escreveu muito – e bem –, trabalhou na TV, protagonizou Nosferatu no Brasil, filme cult de Ivan Cardoso. Depois de sua morte, chegaram a público duas edições de Os últimos dias de Paupéria (com diários, poesias avulsas e textos jornalísticos), Navilouca (publicação-manifesto de poesia que ele coordenava quando morreu) e dois volumes de Torquatália, com textos e poemas. Tema de documentários, curtas-metragens e dissertações, Torquato ganhou a biografia Pra mim chega, de Toninho Vaz (2005). Em 2002, o compositor Ronaldo Bastos lançou o disco Todo dia é dia D (selo Dubas), com canções do velho amigo.

Mas faltava o livro “de” Torquato Neto. E ele surgiu no fim do ano passado, em Teresina, graças a um primo, o publicitário George Mendes, guardião de seu acervo. O fato e a coisa foi organizado pelo próprio autor, com índice e poemas inéditos escritos de 1962 a 1964. George lançou também Juvenílias, com poesias inéditas escritas dos 17 aos 19 anos. Modestas e bem-cuidadas, as edições da UPJ Produções contam com análises elucidativas dos jornalistas Paulo José Cunha e Aderval Borges.

O fato e a coisa é o único livro de poesias de Torquato concebido como tal”, ressalta Borges. Nele se anunciam características de sua produção futura, como a agressividade mordaz, a precisão vocabular, a utilização enfática, porém controlada, a ironia, a metalinguagem e o experimentalismo de vanguarda. “Já se encontra um autor na trilha radical da poesia de invenção, no sentido oswaldiano de raiz, de ir ao essencial”, registra o jornalista, referindo-se a Oswald de Andrade, mestre dos tropicalistas.

Juvenílias,
destaca Paulo José Cunha, traz pistas do raro DNA daquele culto rapazinho: “Fundamentalmente, um drummondiano com traços de Manuel Bandeira, Gonçalves Dias e de outro piauiense, o poeta Mário Faustino”. Se ali não está a genialidade do poeta radical e explosivo, já é possível encontrar a fumaça do vulcão que uma década depois iria entrar em violenta erupção, garante Cunha.

Paulo e Aderval rejeitam estereótipos associados a Torquato, frequentemente reduzido a artista atormentado, a anjo gauche que bebia e se drogava. “Ao correr sua obra com atenção, a imagem do tsunami existencial não corresponde ao que o poeta idealizou – com todo rigor das escolhas – e realizou. Ele foi um dos artistas inventores mais centrados no que se propôs”, assegura Borges.

“Torquato não estabelecia diferença entre vida e estética. Provou isso com a morte, questão transversal em toda a sua obra. O suicídio foi um projeto em processo, não um ‘momento de desequilíbrio’, nem o resultado do desespero em função do sufoco político causado pela ditadura militar. Nada mais falso. A morte sempre esteve na raiz de tudo: anunciada, premeditada, consumada”, defende Paulo José Cunha.

George Mendes tem muitos planos para o precioso acervo que recebeu da viúva do poeta, Ana Duarte, há dois anos. O projeto de torná-lo público já chegou ao Ministério da Cultura. “Espero que aprovem, mas tenho lá minhas dúvidas...”, preocupa-se o publicitário. Ele quer lançar dois CDs com letras inéditas, um documentário e a revista Almanaque Torquatália – Segredos Dantes, Secretos Dentes. Outro sonho: montar um espaço dedicado ao poeta em Teresina. “Nada de museu. Será um espaço vivo”, avisa Mendes.


Três perguntas para...
George Mendes
publicitário

O que há no baú do poeta Torquato Neto?
Letras de música, projeto de um disco autoral, poemas da juventude, uma pequena biblioteca, pôsteres, fotografias, fotolitos, roteiros de shows e de um livro sobre a bossa nova, cartões-postais, cadernos de anotações, desenhos, originais de próprio punho ou datilografados. Meu primeiro susto é que a obra musical de Torquato, muito restrita, de 30 e poucas canções que fizeram sua fama, poderia ser ampliada para quase 100. Encontrei letras em que ele dividia parceria com Caetano, Gil, João Bosco, Luís Melodia, Toquinho, Luís Carlos Sá, Geraldo Azevedo, Carlos Pinto, Carlos Galvão. Há outras sem destinação, mas de grande beleza, com Torquato falando de amor, romântico, bem diferente do ícone da Tropicália.

Poetas costumam rejeitar os primeiros versos. Não seria “traição” trazê-los à tona?
Realmente, pensei e repensei a questão com muitas pessoas e resolvi correr o risco. O poeta que se apresenta nos dois livros não é o da Tropicália, do cinema marginal nem dos concretistas de Sampa. Aceito o rótulo sem dor: pode-se chamá-lo de poeta ainda da província, que ousou colocar no papel emoções e sentimentos partindo de Teresina para Salvador, chegando ao Rio. Por que não se pode revelar esse Torquato? Sendo pragmático, diria que nem tempo de vida ele teve para decidir o que deveria ou não ser publicado. O que fizemos foi uma homenagem ao Torquato e à sua memória.

Os dois livros recém-lançados trazem o Torquato pré-tropicalista. O que chama a atenção nos versos desse poeta quase adolescente?

O vigor e a abrangência de suas criações e de suas preocupações. Ao ler esses textos, é fácil concluir que antes até da Tropicália ele já era tropicalista. Um poeta. Pronto, acabado, definitivo. E com a mesma fixação entre o fim e o começo. A vida e a morte. Como diria o Waly Salomão, um poeta no seu voo rasante de pássaro de fogo.

O FATO E A COISA
106 páginas

JUVENÍLIAS
162 páginas

UPJ Produções. Informações: (86) 3232-0432 e contato@upjproducoes.com


Poemas de Torquato Neto

Hai-kaisinho

Caminho no escuro
O que é
Que eu procuro?

23/12/61


À parte

tenho andado um bocado
                  abobalhado,
                  alucinado,
 à procura não sei o quê.
                por que não acho?    

amigos,
amores,
alegrias
amanhãs,
e o pior:
            ontens.
cadê o presente?

31/10/61

TEMA

 

"... E agora, José?"

Perguntou o Carlos Drummond.

E agora, José,

Responde depressa ao Carlos Drummond.

Responde, José; responde se és homem:

"... e agora?"

 

Anda:

Ele é teu mestre,

José;

Ele é teu amo,

José;

José;

Ele é teu pai.

Responde-lhe: "... e agora?

 

Pelo menos José do Carlos Drummond de Andrade

Informa, depois de pensar:

Quem é o culpado de eu não ser poeta?

 

O Carlos Drummond?

Meu pai?

Minha mãe?

Tu, José?

 

Será que tiraste toda a poesia

Que antes brotava,

Jorrava de mim?

Por que José?

Por quê?

 

José do Carlos Drummond:

Tu és um ladrão.

Roubaste a minha poesia.

Deixaste-me só.

Abandonado, nu.

Sem poesia, sem nada.

 

 

Bahia, 10/10/61

 

+++++++

 

O MOMENTO NA CALÇADA

  

Em riste – o corpo aponta o homem

que passa dentro do paletó. E nada mais

se fala

do homem que segue o seu caminho

conversando com os botões da sua roupa

e calado – passando sem ligar ao copo em riste

que o aponta e fica ainda cheio sobre a mesa.

 

Rio de Janeiro, janeiro de 1963

 

++++

 

LEMBRANÇA DO TEMPO QUE NÃO HOUVE


A minha juventude já não é. Foi

coisa que passou tão de repente que em nada me

marcou

nem fez nascer de mim lembranças e saudades.

Não lhe vi o nascimento. Talvez que num enterro

que há dias me cruzou no meu caminho

sem que eu soubesse do defunto ou dos parentes

ela também passasse, não sei. Minha juventude,

não a tive.

Apodreci depressa e faltam-me o relógio e o braço

e os olhos.

 

As coisas andam más, não sei, prossigo em diante

sem poder fazer voltar atrás o tempo

sem vontade de esperar o tempo

completamente sem coragem de cortar o fio.

 

Nas minhas mãos suporto a vida

a que desci. Chamaram-me Torquato, aceitei.

Fizeram-me criança, homem, coisa: nada fiz.

O meu pavor é como se não fosse

a solidão do próprio homem acrescentada nessa

angústia que é só

minha.

 

Talvez mentira deste tempo tresloucado

ou mais uma visão sem pé nem rumo: no desespero

em si

eu divisei finalidade para este novo sentimento

obliquamente repousado em mim. Não sei de

nada,

nada sou – que posso ser? Uma agonia a mais a

debater-se

nas paredes do mundo? Mais uma frustração

nessa batalha?

Apenas sei que nada mais devolvo

à vida. Nem mais peço do que a hora

em que definitivamente poderei viver do meu

vazio.

Não mereci do bom, rejeito o meio termo.

Apodreço sem sentir,

nada mais sinto, estou em pedra. Não me consome

o fogo,

não me derrota a água, não existo. Não me faz em

sombra o sol.

EU NÃO EXISTO. Não penso coisa alguma.

– Je ne pense pas, donc, je ne suis pas.

 

A minha juventude não foi. Foi álcool evaporado de

repente

que subiu aos infernos e ficou por lá

acocorado à frente do pai diabo – e eu nada sei.

 

Rio de Janeiro, janeiro de 1963

 

++++

 

A CHAVE DO COFRE

  

Ser andorinha

chacal

jiboia

 

Crescer com ares

águas

terreno

 

Ver alvoradas

lutos

desastres

 

Trancar-se em livros

jornais

papéis

 

Nunca pensar

parar

ou sorrir

 

Jamais ficar

abrir

nem ser lido.

 

Rio de Janeiro, 8 de agosto de 1962

 

++++

 

POEMA DO AVISO FINAL


É preciso que haja alguma coisa

alimentando o meu povo:

uma vontade

uma certeza

uma qualquer esperança.

 

É preciso que alguma coisa atraia

a vida ou a morte:

ou tudo será posto de lado

e na procura da vida

a morte virá na frente

e abrirá caminhos.

 

É preciso que haja algum respeito,

ao menos um esboço:

ou a dignidade humana se afirmará

a machadadas.

 

+++

 

POEMA CONFORMISTA

 

Nunca escorreu pelo meu corpo a aurora,

nunca senti na minha boca o traspassar de noites,

nunca dormi ao lado das estrelas – que isto

são coisas absolutamente sem importância

que, de resto, outros sonhadores

já tiveram o cuidado de sonhar.

Eu em mim

incrivelmente existo e me basto.

 

O temer e o esperar passaram por completo.

E a vontade de ver o invisível

e tocar o intocável

e calcular o necessariamente incalculável

também passaram e não prossigo nisto.

Sou exatamente o que me basto para continuar

sendo.

E nisto me basto.

 

Quando não pude alcançar o lado oposto

e me perdi e não voltei atrás,

eu prossegui pelo caminho e não parei.

Quando na volta preferi vir só

eu me bastei com meus distensos músculos

e não cortei demais a minha carne

em pedaços inúteis.

 

Minha incerteza quando doi a afasto

e não me engano em pensar o que não posso

nem me abandono a construir filosofias que a

encharquem.

Se não componho as sinfonias que escuto

ninguém o sabe: eu não sou músico.

Quando não sei se devo ou se não devo prosseguir

em escrever poemas e asneiras,

eu nada faço e me recolho: o poeta que não sou

pode nascer ainda.

 

Como o dedo apagaria o sol

congelaria a aurora no meu corpo

e afastaria estrelas – mas não quero,

outros sonhadores já sonharam isso.

Como eu disse, sou exatamente o que me basto

para prosseguir,

e não quero mais.

 





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