Era o palco do Teatro Francisco Nunes. Ainda que não se lembre exatamente do que estava em cena, a primeira experiência dentro daquela sala foi inesquecível para a menina Grace Anne Paes de Souza, hoje com 32 anos. Detalhe: além dela e da irmã, só havia duas pessoas na plateia. “Não fiz julgamento de valor. Lembro-me de ter achado muito bom ser só a gente lá”, conta. O encantamento marcou aquela criança. “Chamou-me a atenção o fato de ser tudo ao vivo. Era criativo”, completa a caçula da família de sete irmãos.
Grace Anne – ou melhor, Grace Passô – provavelmente nem se deu conta de que o teatro faz parte de sua vida há 21 anos. E não apenas como espectadora. Hipnotizada por suas experiências na plateia, ela não teve dúvida quando a família lhe sugeriu um curso livre. Foi assim que o palco entrou para valer na história daquela pré-adolescente. “Tudo fez sentido para mim. Sempre fui de criar as coisas. Meu universo era abstrato, percebi que a linguagem me permitiria experimentar. O teatro sempre me pareceu muito gentil, aberto”, diz.
A sensibilidade para as artes já era evidente na época do colégio. Como qualquer garota dos anos 1990, Grace fez da agenda a primeira obra. “Ela tinha pequenas pílulas, algumas poesias e eu escrevia coisas curtas: poemas, parábolas e haikais. Passei anos juntando aqueles textos para mandá-los para gente que poderia publicá-los”, recorda. Nunca os enviou, mas não deixou de escrever. Melhor: permitiu que sua relação com as palavras fosse se transformando ao longo do tempo.
Às vésperas de estrear O líquido tátil, a quinta montagem do grupo Espanca!, a atriz, diretora e dramaturga Grace Passô vive momento especial dentro e fora da companhia que ajudou a fundar. O veterano Lume, de Campinas, e o colega mineiro Teatro Invertido também decidiram confiar a ela os novos trabalhos. “É um momento muito fértil. São projetos tão importantes para mim que estou bancando fazê-los. Todos têm especificidade muito grande”, diz.
Aliás, especificidade sempre foi algo perseguido por ela. “Gostava de ficar dando ideia, não via por que estar em cena”, lembra Grace. No fim do primeiro curso, a estudante achou que não tinha necessariamente de apresentar algo. Quando recebeu a notícia da obrigatoriedade, pôs-se diante do espelho: em dois dias, estava pronto o trabalho autoral, devidamente escrito e decorado. Chamava-se A Ladineide e a lâmpada mágica.
“Era um texto mesmo, com rubrica e tudo. Com noção mais convencional do que é um texto teatral. Ainda tenho essa convicção. Leio clássicos maravilhosos e obras-primas, mas nada se compara à sensação de escrever algo próprio, que usa a sua referência de imagem, a sua história”, afirma.
Logo depois do curso amador, Grace foi aprovada no Centro de Formação Artística (Cefar) do Palácio das Artes. Aos 16 anos, iniciou ali sua trajetória profissional. Já naquela época, intuía que o teatro de grupo era algo sedutor. Por um ano, participou do Grupo Armatrux, antes de ajudar a criar a Cia. Clara a convite de Anderson Aníbal. Sob a direção dele, Grace Passô despontou como atriz nos espetáculos Todas as belezas do mundo (2002) e Coisas invisíveis (2003).
Desafio Mas a vocação dela extrapola a atuação. “Sou uma artista de teatro que fica tentando desafiar e ao mesmo tempo aprender essa linguagem. Se o teatro não estiver em transformação, é porque há algum problema. Isso explica a minha migração entre as funções, fico experimentando. Meu desejo é de transformar, de mudar perspectivas. Quero novos espaços para o pensamento, concretizá-los de maneira diferente”, resume.
Com esse desejo quase insaciável pelo novo, Grace Passô encontrou, em 2004, os parceiros artísticos Gustavo Bones, Marcelo Castro, Paulo Azevedo e Samira Ávila. O quinteto criou o grupo Espanca!. A princípio, o projeto era despretensioso: mandar algo para o Festival de Cenas Curtas do Galpão Cine Horto. Mas houve um detalhe: Grace tinha na gaveta o rascunho do que viria a se tornar o premiado texto da peça Por Elise (2005).
“Houve ali a convergência de vários fatores: proposta dramatúrgica interessante, um festival que te obriga a exercitar a síntese e um coletivo extremamente potente de artistas, não apenas atores”, analisa. Dali em diante, veio a maturidade. “A experiência no Espanca! foi um processo de conhecimento e de amadurecimento de um pensamento dramatúrgico. Consegui estudar dramaturgia e experimentar. Uma coisa está colada na outra”, garante.
Com Por Elise, Grace Passô ganhou os prêmios Shell e APCA. O grupo foi apontado como uma das promessas das artes cênicas brasileiras. Amores surdos, o espetáculo seguinte, também foi escrito por ela, com direção de Rita Clemente.
“Tive ligação pessoal muito forte com essa peça. É impossível escrever sobre família sem referendar a sua. Trabalhamos com uma diretora, e, como a direção é muito determinante em uma obra, foi outro exercício. Aprendi muito. Amadureci mesmo”, reconhece.
A dança das cadeiras continuou em Congresso internacional do medo (2008), com texto e direção de Grace, e Marcha para Zenturo (2009), criado em colaboração com o paulistano Grupo XIX de Teatro.
Consciência Em 1º de setembro, o Espanca!, atualmente formado por Grace Passô, Gustavo Bones e Marcelo Castro, estreia outra experiência diferente. O texto de O líquido tátil foi escrito em 1997 pelo dramaturgo e diretor argentino Daniel Veronese. “É um grande exercício entender o universo do Veronese. Adoro a oportunidade de trabalhar como atriz com esse cara, de quem sou fã há muito tempo. Foi legal ter passado pelas outras funções, porque isso me fez uma artista muito mais consciente”, diz.
Se a menina Grace Anne se encantou com a magia do palco, a lógica da atriz, dramaturga e diretora Grace Passô é a mesma. “O que me atrai é o fato de o teatro ser vivo, ser uma experiência. Enquanto ele for vinculado a lugar aonde se vai para ver alguém desfilar, ser bom ou ruim, ele não vai para a frente, não será relevante para a cultura. É preciso que teatro seja experiência e desperte nas pessoas o desejo de leitura, de viver aquilo”, conclui.
• RAIO X
Atriz
• Todas as belezas do mundo (2002) – Cia. Clara
• Coisas invisíveis (2003) – Cia. Clara
Atriz e dramaturga
• Por Elise (2005) – Espanca! (foto)
• Amores surdos (2006) – Espanca!
• Marcha para Zenturo (2009) – Espanca! e Grupo XIX
Diretora
• Por Elise (2005) – Espanca!
• Congresso Internacional do Medo (2008) – Espanca!
• Os bem-intencionados (2012) – Lume
Prêmios
• Shell de Teatro – Melhor dramaturga, em 2006
• Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA) –Melhor dramaturga, em 2005