Em lugares distantes, nos ermos do estado, em regiões onde são escassas as informações e referências dos grandes centros, é que nasce a mais representativa arte popular de Minas Gerais. Pelas mãos dos mestres de ofícios, o barro se transforma em bonecas, tipos populares, seres antropomorfos, esculturas de bichos ou santos da liturgia católica. A madeira também ganha novas formas, cores e usos, assim como os mais diversos materiais que a natureza lhes oferece em abundância. Também é por causa do exemplo bem-sucedido destes artistas que as localidades no entorno são transformadas. A sabedoria popular e o gesto de desprendimento em ensinar o que sabem têm, ano após ano, inspirado gerações de seguidores.
A situação se repete em várias regiões do estado, mas em nenhum lugar, chama tanta atenção como no Vale do Jequitinhonha. Artistas como dona Isabel, Noemisa, dona Pretinha, Ulisses Mendes, Lira, Zefa, dona Geralda, mestre Antônio e dona Zizi, conseguiram o improvável. Sem sair da terra natal, sem circular nas grandes cidades, sem fazer concessões ao mercado e sem deixar de lado a pureza de alma simbolizada em sua arte, conquistaram admiradores entre críticos, galeristas, especialistas e colecionadores. A boa repercussão da trajetória dos mestres serve de espelho às novas gerações. Nas localidades onde vivem não é difícil encontrar seguidores que, pouco a pouco, depois de bastante trabalho, começam a se distanciar das referências para criar obras com identidade própria.
O povoado de Santana de Araçuaí, distrito de Ponte dos Volantes, a 600 quilômetros de Belo Horizonte, é emblemático. Ainda criança, Isabel Mendes da Cunha, filha de mãe paneleira e de pai lavrador, abandonou as pequenas panelinhas que fazia inspirada no ofício da mãe para inventar brinquedos. “Tinha muita vontade de ter bonecas, mas não tinha condições. Então resolvi, por imaginação e criatividade, tentar fazer as minhas. Comecei a amassar umas bolinhas de barro e criei da minha cabeça. Nunca tinha visto nenhuma. Invenção pura”, conta ela, que, na época, tinha 6 anos. Pelas suas mãos e usando a imaginação, as flores e os pedaços de tocos em volta começaram a ganhar forma de bonecas, que, com o passar dos anos, voltaram a ser moldadas no barro. A brincadeira ficou séria em 1978, quando criou noivas e noivos, mulheres amamentando, matronas e moças em grande formato. O trabalho a notabilizou.
Diante da crescente repercussão da criação, dona Isabel, como ficou conhecida no meio artístico, os vizinhos, amigos e os parentes próximos, parte deles sem maiores perspectivas de trabalho, começaram a tentar ganhar a vida com algo semelhante. Hoje, não é difícil encontrar seguidores na localidade, parte deles já com criações bem distintas da mestre de ofício que os inspirou. A artista se sente orgulhosa do legado. “O grande prazer que a gente tem é ensinar. Ensinei tanta gente... Foi um gesto importante que não ficou só para mim, mas acabou ficando também com os outros. Ensinei também meus filhos e, hoje, meu filho Amadeu está fazendo bem parecido com as minhas peças.” Foi por acaso que dona Isabel ganhou fama no meio artístico. Como o lugarejo onde vive fica distante da cidade mais próxima, para vender os primeiros presépios, os levava para a estrada de Araçuaí. O trabalho começou a chamar a atenção do povo que vinha de fora. “Levavam e depois voltavam para comprar mais. Assim foi”, lembra.
Generosidade
O exemplo de dona Isabel está cada vez mais raro de encontrar. “Os mestres de ofício estão em extinção, porque o fazer tradicional, de onde eles vêm, está acabando”, lamenta Terezinha Furiati, coordenadora do projeto Artesanato Cooperativo do Vale do Jequitinhonha, uma iniciativa da extensão da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Como geralmente os mestres são mais velhos, a especialista teme pelo futuro da arte popular no estado, mesmo com o interesse de alguns jovens das comunidades onde os artistas ainda vivem. Para ela, não é tão simples encontrar um mestre de ofício. “São pessoas que não guardam os saberes, passam adiante e, com o gesto, transformam a comunidade num lugar melhor. Assim forma-se um grupo. Mestre é aquele que, além de ter o dom, tem a disponibilidade de dividir com os outros.” O gesto solidário, em geral, nasce das pessoas mais simples.
Dona Pretinha vive na cidade de Itaobim, também no Vale do Jequitinhonha, e se confunde com a própria idade. “Nos meus documentos fala 83, mas eu tenho mesmo 106 anos”, fala ela, logo confirmada pela nora. A confusão é resultado da dificuldade em tirar documentos em algumas regiões, o que fazia com que as pessoas demorassem muito para se registrar. Ainda pequena, a artista, que continua “firme”, começou sua arte amarrando esteira, ofício realizado depois da longa jornada diária na roça. “Fui jogando a vida assim até que comecei a trançar taboa.” Foi assim que se tornou conhecida. Hoje, inventa de bonés, bonecas, caixas e tudo mais que a imaginação lhe permite. “Não estou fazendo tanto mais, estou mais devagar, mas continuo. Ultimamente tenho feito umas caixas e levo a vida satisfeita.” Os parentes e amigos que a têm como referência agradecem a disposição em passar adiante os segredos. “A vida inteira ensinei. Não tenho leitura, se não precisar de leitura, não ligo de ensinar. Hoje tem um tanto de gente aqui fazendo parecido comigo”, orgulha-se.
O ambiente mais simples das comunidades tradicionais ligadas a fazeres como a cerâmica, a música ou a cultivo de produtos como o algodão, e até mesmo às manifestações populares como as festas religiosas, tem sido propício ao surgimento dos mestres de ofício. As riquezas visuais, as tradições folclóricas e o talento de alguns artistas mais experientes têm sido o espelho de comunidades inteiras. A situação propícia para formação de novos artistas populares se repete em várias regiões de Minas. Em Cachoeira do Brumado, distrito de Mariana, o ex-pedreiro e lavrador Artur Pereira (1920-2003) passou a familiares e a comunidade no entorno, os segredos das esculturas inspiradas na liturgia, no homem do campo e nos animais. Hoje seu legado permanece vivo entre os seguidores.
Três gerações
O mesmo ocorreu em Divinópolis, na Região Centro-Oeste do estado, com GTO (1913-1990). Geraldo Teles de Oliveira se tornou um dos mais importantes artistas populares brasileiros ao criar esculturas autorreferentes, a partir de figuras humanas, que se amontoam de maneira esquemática e repetida, em geral formando o que apelidava como “a roda da vida”. Repassou os segredos ao filho, Mário Teles, que agora faz o mesmo com filho, Alex. “Ajudo a vazar as peças, como meu pai fazia para meu avô. Sou aprendiz. Ainda não comecei a realizar a própria obra, porque estou na fase de buscar o meu estilo. Meu avô fazia um trabalho rústico, meu pai é mais bem-acabado e acho que ficarei entre os dois. Em relação à temática, continuarei trabalhando os mesmos movimentos culturais, as danças de folia, as músicas, mas, é claro, sem copiá-los”, afirma Alex.