Refúgio dos infelizes

Lelis apresenta uma leitura pessoal das cenas, personagens e contexto histórico

por João Paulo 17/03/2012 08:51

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Marcelo Sant%u2019Anna/EM/D.A Press - 11/3/1o
(foto: Marcelo Sant%u2019Anna/EM/D.A Press - 11/3/1o)
Lima Barreto (1881-1922), até há bem pouco tempo, era um escritor mais conhecido do que lido. Sua literatura se submetia à biografia, com seus dramas singulares: a discriminação, o alcoolismo, a doença mental. Nos últimos anos seus livros passaram a ganhar edições feitas com cuidado na fixação do texto, pesquisa em fontes primárias e aparato crítico, que revelaram aos leitores, além das obras máximas do autor (Recordações do escrivão Isaías Caminha, Triste fim de Policarpo Quaresma e Vida e obra de M. J. Gonzaga de Sá) o trabalho de cronista nos dois volumes de Toda a crônica, a obra do contista no livro Contos completos de Lima Barreto, e o homem que se desnuda nos Diário do hospício e O cemitério dos vivos.

Há ainda o que ser republicado da obra do escritor, como Numa e ninfa, Os bruzundangas, Bagatelas e Feiras e mafuás, merecedores do mesmo empenho em dar a dimensão literária e histórica do trabalho de Lima Barreto. Desde a biografia escrita por Francisco de Assis Barbosa, este é o momento de maior atenção em torno da vida e obra do contista e romancista. E é nessa onda que merecem destaque dois lançamentos recentes, a edição de Clara dos Anjos, pela Penguim & Companhia das Letras, com importantes estudos e mais de 360 notas ao texto, e a adaptação para quadrinhos da mesma obra, a última de Lima Barreto, com roteiro de Wander Antunes e desenhos de Lelis.

Clara dos Anjos foi projeto acalentado com carinho e raiva por Lima Barreto. O escritor pretendia fazer da história seu “Germinal negro”, em alusão ao clássico de Émile Zola, uma saga de trabalhadores que atravessa gerações. Já em 1905, ele anota em seu diário: “Registro aqui uma ideia que vem me perseguindo. Pretendo fazer um romance em que se descrevam a vida e o trabalho dos negros numa fazenda. Será uma espécie de Germinal negro, com mais psicologia especial e maior sopro de epopéia”. O projeto não foi adiante e dele ficou a novela, que foi publicada em folhetim e só virou livro em 1948. O germe da história está presente no conto de mesmo título publicado em 1920.

A história de uma moça de origem simples, mulata, que mora no subúrbio do Rio de Janeiro e é seduzida por um tipo também suburbano, mas com ares de superior (porque é branco e arroga uma falsa ascendência inglesa), foi recebida com reservas. Houve os que acusaram o autor de “negrismo”, apontando mais questões pessoais que propriamente literárias. Além disso, saído no ano da Semana de Arte Moderna (cujo futurismo Lima Barreto rejeitou), tinha ainda estilo que se ligava mais ao naturalismo que à modernidade. 

Lima Barreto, ao mesmo tempo que rompia com o estilo beletrista de época e incorporava novidades, como o uso do linguajar popular e de temas urbanos até então intocados (como a vida nos subúrbios), não era visto com integrante de nenhum grupo. Na sociologia cruel das rodinhas literárias, era o mesmo que ser um pária. O escritor não apenas sabia disso como sentia na carne a rejeição. Daí muito de sua implicância, que vai traduzida no próprio romance, contra intelectuais coroados. Para completar, a obra saiu em folhetim, com tudo de bom e limitador que o meio indica: o interesse em fisgar o leitor, os comentários de época, a estrutura menos trabalhada de uma obra íntegra. Quando sai o romance em livro, não vem trabalhado pelo autor.

A edição da Penguin e Companhia das Letras traz apresentação de Beatriz Resende, que faz uma vindicação da obra e descreve seu processo de composição, a ligação com o ambiente literário da época, a filiação ao estilo folhetinesco, o debate em torno da questão racial e a importância do livro na criação de uma literatura dos subúrbios (tudo que ia além da linha de Central e aponta para outra sociabilidade e geografia física e moral). Na conclusão, a pesquisadora faz uma ligação sutil e inteligente entre a crônica do subúrbio de Lima Barreto e a tradição do samba carioca. A música é personagem de Clara dos Anjos.

Os outros estudos que integram o volume são a introdução escrita por Lúcia Miguel Pereira à primeira edição em livro do romance, em 1948, e o prefácio de Sergio Buarque de Hollanda à edição de 1956. Lúcia Miguel Pereira destaca a paixão impressa pelo romancista em seu livro que, mesmo com defeitos, é capaz de expressar seu ressentimento e sua generosidade, ao fazer da história (que de algum modo era a sua) uma plataforma de crítica social. Já Sérgio Buarque de Hollanda compara Lima a Machado de Assis para assinalar: “Enquanto os escritos de Lima Barreto foram, todos eles, uma confissão mal disfarçada (...), os de Machado foram antes uma evasão e um refúgio. O mesmo tem que para o primeiro representa obsessivo tormento, e tormento que não pode calar, este o dissimula por todos os meios ao seu alcance. E afinal triunfa na realização literária”.

O destaque principal da nova edição de Clara dos Anjos são as notas preparadas por Lilia Moritz Schwarcz e Pedro Galdino, que somam 363, que permitem uma leitura bastante informada do romance. Os pesquisadores esclarecem desde o significado de palavras hoje em desuso até eventos históricos do período, chegando a detalhes analíticos e biográficos, como o pendor anarquista de Lima Barreto. Logo ao inicio, duas notas históricas permitem compreender o papel das modinhas na vida social do Rio de Janeiro e, particularmente, dos subúrbios, que têm reflexo em outros livros do escritor. Há ainda esclarecimentos legais (sobre o crime de defloramento, com suas repercussões jurídicas e morais) e antropológicos, ligados à questão racial, entre outras anotações sempre úteis.

Nada na vida A adaptação do romance de Lima Barreto para a linguagem dos quadrinhos, com roteiro de Wander Antunes e desenhos de Lelis, é um trabalho que merece atenção. A versão da história não apenas preserva os elementos essenciais da trama como cria uma dinâmica interna que dá fluidez à narrativa. Como o romance, publicado em folhetins, foi organizado com vários momentos de tensão (que correspondiam ao fim dos capítulos, sempre deixando o interesse aceso para o próximo folhetim), a estrutura dos quadrinhos usa com astúcia esse elemento.

Como a trama é conhecida, o roteirista parece ter definido o ritmo da narrativa por blocos, que apresentam os personagens, criam a ambientação social e vão encadeando a história. Já que o estilo de Lima Barreto, mesmo buscando a dicção popular, tem sabor de começo do século, a saída foi dar o máximo de coloquialidade aos diálogos e de empatia com a situação dos personagens. Assim, o entrecho do romance Clara dos Anjos, sem perder o sabor de época, se coaduna com a linguagem mais moderna dos quadrinhos.

Os desenhos de Lelis são ao mesmo tempo belos, integrados ao álbum e capazes de apresentar uma leitura pessoal das cenas, personagens e contexto histórico. A técnica do artista, aquarela sobre nanquim, além da limpeza e lirismo, permite dar acabamento aos paineis (cenas de cidades e ruas) e detalhes aos retratos. Nesse caso, particularmente, Lelis tem a sensibilidade para o desenho dos caracteres, propondo traços que marcam disposições de temperamento e moral. Seu Cassi Jones é arrogante, mas se mostra indefeso frente às pessoas da cidade; sua Clara é tão sedutora como ingênua; a megera Salustiana tem feições que denotam seu caráter e falsidade.

Nos tipos populares, Lelis calibra o traço com simpatia, dando aos personagens mais simples do subúrbio uma feição que denuncia a miséria, mas salva a altivez. Os personagens derrotados, como Meneses e Leonardo, carregam uma infelicidade que escorre de suas figuras. O mais expressivo do trabalho de Lelis está no enquadramento social das paisagens, seja nas ruas e quintais de subúrbio, nas avenidas do Centro do Rio de Janeiro e no interior das casas, que são fruto de pesquisa cuidadosa do artista.

Lelis tem ainda um acurado senso cinematográfico, que dá movimentação à cena, puxa closes sobre rostos e detalhes e, por vezes, desvia o olhar para fora da cena de modo a dar mais eficácia ao subtexto, como na cena da sedução de Clara por Cassi Jones e no assassinato de Marramaque. Há, no traço do artista, um senso de marginalidade que parece preparar toda a trama para a conclusão melancólica do último quadro: “Nós não somos nada nessa vida”. 

Tudo que é político em Lima Barreto parece se esvair em fracasso em Clara dos Anjos. A denúncia de racismo, a opressão de classe, a injustiça social, a marginalidade dos trabalhadores sem ofício, a situação desprestigiada da mulher, tudo isso não conduz a qualquer perspectiva de redenção ou mobilização popular. No mundo além da Central do Brasil a situação era ainda menos promissora. A ambiguidade do romance, que decalca a vida do autor, parece nutrir ao mesmo tempo a compaixão e a descrença com as mudanças sociais. Lima Barreto não acreditava no homem. Pelo que viveu, estava coberto de razão. 
 
Clara dos Anjos
- De Lima Barreto
- Penguin & Companhia das Letras, 300 páginas, R$ 26 
 
Clara dos Anjos de Lima Barreto em quadrinhos
- Por Lelis e Wander Antunes
- Quadrinhos na Cia, 112 páginas, R$ 42 



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