A vez dos pequenos

por Ângela Faria 14/01/2012 12:10

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Conhecido como romancista e contista da Geração 90, o mineiro João Batista Melo dá importante contribuição para o cinema brasileiro. Seu livro Lanterna mágica, dedicado à análise de filmes nacionais para o público infantil, aborda um tema raramente explorado. Muito se escreveu sobre o Cinema Novo; as chanchadas da Atlântida mereceram a atenção de vários pesquisadores; páginas e páginas foram dedicadas à “retomada” pós-Collor. Entretanto, no caso das fitas infantis, foi necessário compor o cenário quase do zero.

De 3.898 longas brasileiros produzidos entre 1908 e 2009, apenas 2% se destinaram às crianças – mais da metade graças a Xuxa, Renato Aragão e Os Trapalhões. O autor traçou amplo painel, com informações esclarecedoras sobre o panorama internacional do gênero, e apresenta interessantes recortes da produção nacional. Cinéfilos, pais, educadores, interessados em arte e especialistas encontram dicas preciosas em Lanterna mágica, fruto de dissertação de mestrado para a Universidade de Campinas (Unicamp).

Em cinco capítulos, João Batista aborda as mudanças do conceito de infância – da Idade Média à era da indústria do entretenimento –; a trajetória do cinema infantil na Europa, Estados Unidos e Brasil, mas sem se esquecer das contribuições do Irã; e o que está por trás dos filmes, da arte ao merchandising.

Tudo começou com o curta francês L’arroseur arrosé (1895/1897), dos irmãos Lumière, inventores do cinema. Desde então, sétima arte e literatura infantojuvenil firmaram prolífica parceria: Cinderela, Barba Azul e Chapeuzinho Vermelho (de Georges Meliès, a partir de 1899), Alice no País das Maravilhas (1903) e Pinóquio (1911), de Cesare Antamaro, são alguns antigos exemplos disso. A saga contemporânea Harry Potter apenas manteve a tradição.

O autor destaca um gênero importante: o filme familiar – destinado a adultos e crianças –, fundamental para o império montado em Hollywood. Diferentemente dele, o cinema infantil tem a criança como personagem principal e se desenvolve a partir do olhar dela sobre a realidade.

Brasil
A literatura brasileira destinada às crianças só se firmou no início do século 20, quando a sétima arte já engatinhava no Hemisfério Norte. Nosso país, aliás, só “descobriu” o filme para baixinhos quase meio século depois da invenção do cinema. Em 1946, surgiu o curta Jonjoca, o dragãozinho manso, projeto ao qual estava ligado Humberto Mauro. Trazia algumas características do gênero, mas o pioneiro – para valer – chegou em 1952: o longa de animação Sinfonia amazônica, de Anélio Latini Filho. A estética Disney está presente nessa fita, mas Latini teve a habilidade de transformá-la sob o prisma nacional, ressalta João Batista Melo.

Em 1953, surgiu O saci, adaptação de Rodolfo Nanni do livro de Monteiro Lobato. O cinema familiar, pouco depois, ganhou as produções de Amácio Mazzaropi. A jovem TV “emprestou” o sucesso O vigilante rodoviário para as telas. Na década de 1960, o mundo se deslumbrou com o Cinema Novo, mas a geração Glauber Rocha não deu a menor bola para as crianças. Quase raridade, Pluft, o fantasminha – de Maria Clara Machado, clássico dos palcos – chegou às telas, em 1962, em versão excessivamente teatral.

Nos anos 1970, duas produções especiais se destinavam aos baixinhos: A dança das bruxas (baseada em A bruxinha que era boa, também de Maria Clara) e Meu pé de laranja-lima, inspirado no romance de José Mauro de Vasconcelos, que já rendera telenovela de sucesso. O personagem principal, garoto pobre de uma família cheia de problemas, comoveu o país. Entretanto, de acordo com João Batista Melo, trata-se “mais de um filme sobre crianças que para crianças”.

Na década de 1970, Flávio Migliaccio lançou a série As aventuras com Tio Maneco: desta vez, as crianças resolviam as confusões, restando aos adultos o papel de meros coadjuvantes. Em 1985, veio de Minas um filme infantil emblemático: A dança dos bonecos, de Helvécio Ratton, contando a história da menina que transformou bonecos em seres vivos. Ritinha é a personagem central e o longa se pauta na linguagem cinematográfica, sem resquícios do teatro. Em 2000, outra heroína: a indiazinha de Tainá, filme de Tânia Lamarca e Sérgio Bloch.

João Batista Melo chama a atenção para a dissociação entre o cinema infantil e a literatura infantojuvenil produzidos no país. No Brasil, lê-se pouco, ressalta ele, e a influência da TV sobre a telona é imensa. Exceção a isso veio de Minas: em 1995, Helvécio Ratton levou para as telas o best-seller O menino maluquinho, de Ziraldo. Rodado em BH, o longa foi sucesso de bilheteria. O cineasta explorou o mundo da magia e das brincadeiras e da rua – na contramão dos enlatados da TV –, sem medo de temas delicados, como a separação dos pais do protagonista.

Distante da literatura e “filhote” da TV, nosso cinema infantil tem dois arrasa-quarteirões: Xuxa e Renato Aragão, ligados à Rede Globo. Aragão e Os Trapalhões beberam na fonte da arte popular e de Mazzaropi, mas reproduzem o filtro pelo qual a televisão enxerga o mundo, observa Melo. O merchandising e o prisma pasteurizador da TV marcam essa obra. Apesar de ter atraído 120 milhões de espectadores às salas de exibição, Renato Aragão já não encontra ressonância na criança atual, registra Lanterna mágica.

Cliente
Ao analisar os blockbusters de Xuxa, João Batista Melo observa: “A criança não faz mais sequer parte de um público que será o receptor de uma produção de cultura. Ela foi convertida em cliente, em alguém que vai comprar o produto filme, bem como os demais componentes do mix, e que deverá ser fidelizado como em qualquer relacionamento comercial”. Resumindo: o cinema infantil se transformou em grife.

Em uma das produções de Xuxa, personagens trocam impressões sobre determinada marca de biscoito, com seus recheios coloridos. Se Tainá, Ritinha, os sobrinhos de Maneco e Menino Maluquinho resolvem as próprias paradas, nos blockbusters da estrela esse papel cabe a ela, sob a pele de princesa, duende, jornalista ou da eterna amiga das crianças.

João Batista Melo lembra que outros longas oriundos da telinha – como Castelo Rá-Tim-Bum, o filme, baseado em série da TV Cultura – adotaram caminho diametralmente oposto. Crianças comandam a trama, a imaginação delas é o centro da história, a produção remete ao universo da cinema – e não à TV.

Lanterna mágica não “demoniza” Xuxa e Os Trapalhões, lembrando que essas produções ajudaram a construir e a formar o espectador de cinema. Entretanto, ressalta que a maioria delas não faz da criança “o agente ativo que se defronta com a vida, havendo quase sempre um adulto a tutelar e dirigir suas descobertas”. Esses trabalhos correm o risco de passar longe do olhar infantil sobre a realidade.

O livro do escritor mineiro – diretor dos curtas Tampinha e As fadas da areia –, que chegou às prateleiras no fim do ano passado, está cheio de pistas para quem quiser descobrir o que se passa dentro daquelas cabecinhas.

Leonardo Lara/divulgação - 25/1/01
Criança em oficina de cinema na Mostra de Tiradentes (foto: Leonardo Lara/divulgação - 25/1/01)
LANTERNA MÁGICA – INFÂNCIA E CINEMA INFANTIL

l De João Batista Melo
l Civilização Brasileira,
210 páginas, R$ 44,90

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