Odisseia, de Homero, ganha novas traduções e inspira romance e poema épico contemporâneo

Saga de Ulisses é tema recorrente da cultura ocidental e está presente na literatura e no cinema

por João Paulo 14/01/2012 12:05

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Toda grande obra de literatura ou é a Ilíada ou é a Odisseia”. A afirmação de Raymond Queneau indica que os livros, compostos sete ou oito séculos antes de Cristo por um autor, Homero, que talvez não tenha existido – e que, se de fato existiu, seria banido da República de Platão –, se mantêm como o arquétipo da arte literária. A história da guerra de Tróia e da aventurosa viagem de regresso de Ulisses à casa é um dos maiores mitos da humanidade. E que não cessa de encantar e desafiar a inteligência.

Em muitas obras da cultura contemporânea é possível identificar a matriz do poema homérico. Epopeia em versos, pode ser lida como um romance; prenuncia gêneros modernos, como a ficção científica e as histórias de faroeste do cinema; e estaria na base de obras típicas da cultura pop, como as sagas de Tolkien e os filmes de Spielberg. Além disso, a Odisseia já gerou muitas obras que são desdobramentos obsessivos de suas possibilidades, como o mais célebre dos romances do século 20, Ulisses, de James Joyce, e os poemas contemporâneos do grego Kaváfis. É nesse sentido que se pode afirmar que se trata do mais moderno dos clássicos e que a modernidade se afirma no próprio jeito de contar a história, com elipses, mudanças de rumos, retomadas e digressões.

Tudo isso sem falar na ética que anima o personagem central, ao qual é fácil se irmanar em termos de angústia, perda de referências e vontade de ser feliz contra todas as circunstâncias. Na verdade, pode-se ver na saga de Homero a matriz identificada pelo peruano Mario Vargas Llosa: “Entre muitas coisas que Ulisses foi, há uma constante na literatura ocidental: o fascínio pelos seres humanos que rompem limites, aqueles quem, em vez de ceder à servidão do que é possível, se empenham, contra toda a lógica, na busca do impossível”. Caminhante do impossível, Ulisses é nosso antepassado mais próximo, mesmo quase 3 mil anos depois de suas batalhas e périplos em busca do lar, da pátria e do amor.

Oralidade
Recentemente, pelo menos quatro livros lançados no Brasil mostram como Homero e sua Odisseia, mais que estar vivos, são capazes de alimentar novas fantasias, análises e traduções. São duas novas edições de traduções diretas do grego (uma delas bilíngue), um romance imaginoso e inteligente, e uma obra inclassificável, misto de poema, narrativa épica e romance, que mergulha em temas antigos e atualiza questões postas por Homero e que ainda hoje repercutem na vida das pessoas.

As duas edições com traduções da Odisseia são caracterizadas pelo cuidado editorial, erudição e preocupação em dar ao leitor de hoje o prazer de acompanhar a história de Ulisses. Pela Editora Penguin-Companhia está sendo lançado o volume com tradução em versos de Frederico Lourenço, crítico literário e professor da Universidade de Coimbra, que já havia traduzido a Ilíada. A introdução é de Bernard Fox, diretor do Centro de Estudos Helênicos da Universidade de Harvard.

O estudo de Fox dá conta da tradição múltipla, e muitas vezes polêmica, acerca da origem da Odisseia  e de seu autor. Além de contextualizar a obra no âmbito da civilização grega, trata de questões como a língua de Homero (“uma língua artificial, poética”, criada para permitir versos épicos); a relação entre a Ilíada e a Odisseia, inclusive em termos de precedência literária; as viagens e a geografia da obra; a dimensão heroica do personagem; o papel dos deuses na narrativa; e as paixões humanas envolvidas nos episódios.

A tradução de Frederico Lourenço, sem perder a busca da fidelidade ao original, tenta se desvencilhar das armadilhas do tom mais arcaico, em favor da legibilidade. Como destaca o tradutor, a obra não foi feita para a leitura silenciosa, mas para a fala, para a história que se conta em busca da emoção do ouvinte. É texto oral, o que implica pausas, lugares para a respiração, momentos de preparo para uma nova informação. Tudo isso é contemplado no formato escolhido pelo tradutor, que indica as possíveis pausas e limpa o texto de notas desnecessárias à fruição da aventura humana. Há a preocupação com o ritmo, com a paridade dos versos (um verso em português para cada verso grego) e com a musicalidade, que não tira a espontaneidade da leitura.

Trata-se, entre as versões existentes no vernáculo, da mais fluida, simples e compreensível, com uma profunda leitura do texto sem perder a comunicação e o interesse do leitor em nenhuma passagem. Não se trata de simplificar ou interpretar o texto homérico, mas de traduzi-lo com o vocabulário e o ambiente intelectual dos nossos dias. Um verdadeiro prodígio de esforço que é tão mais impressionante exatamente por parecer fácil à primeira leitura. A tradução de Frederico Lourenço recebeu o prêmio D. Diniz da Casa de Mateus, o grande prêmio de tradução do PEN Clube Português e da Associação Portuguesa de Tradutores.

Neologismos
A outra tradução da Odisseia lançada recentemente, pela Editora 34, é trabalho de Trajano Vieira, que também assina o posfácio e as notas. Professor e tradutor experiente, esteve envolvido no projeto da tradução da Ilíada por Haroldo de Campos e já publicou versões de clássicos de Sófocles, Eurípides e Ésquilo – entre os antigos – e do poeta grego moderno Konstantinos Kaváfis.

Em sua versão da Odisseia, o tradutor mescla soluções eruditas de sabor arcaico com neologismos criativos, fusões de palavras, anacronismos, que dão ao mesmo tempo certo estranhamento e seduzem pela força do jogo de palavras. É tradução de poeta, menos narrativa e mais disposta a seduzir pela linguagem. Em seu trabalho, Trajano lembra as “transcriações” dos irmãos Campos, com sua sofisticada imbricação de idiomas, referências culturais e musicalidade.

Cada verso de Homero parece conter, além de suas palavras, toda a história que se seguiu, como um texto vivo que reage com as potencialidades da língua e do conhecimento. A cada página surgem palavras como multiversátil, circungirar, bronzigume, dedirrósea, panjornada, multiastuto etc. Não há o mesmo prazer escorreito da leitura do enredo, mas não deixa de encantar pelo lirismo. Para quem conhece o grego clássico, é ainda oportunidade de comparar as soluções de Trajano com o original.

A edição é bilíngue (texto em grego na página à esquerda e tradução em português à direita) e tem um considerável aparato que ajuda na leitura. Há um índice de nomes minucioso, de personagens e lugares, com a referência ao verso correspondente; mapa do mundo homérico e itinerário de Odisseu (e não o mais habitual Ulisses, como o chamavam os romanos); planta do palácio de Ítaca; nota sobre métrica; alguns trechos de críticas históricas e até um texto que explica por que é impossível compor uma biografia confiável de Homero. Ao fim, um ensaio de Ítalo Calvino, em busca da atualidade do texto, tenta responder a pergunta: “Quantas odisseias contém a Odisseia?”. Uma história sem fim.


Odisseia, canto I
“Fala-me, Musa, do homem astuto que tanto vagueou,
depois que de Troia destruiu a cidadela sagrada.
Muitos foram os povos cujas cidades observou,
cujos espíritos conheceu; e foram muitos no mar
os sofrimentos por que passou para salvar a vida,
para conseguir o retorno dos companheiros
a suas casas.
Mas a eles, embora o quisesse, não logrou salvar.”

Tradução de Frederico Lourenço

“O homem multiversátil, Musa, canta, as muitas
errâncias, destruída Troia, pólis sacra,
as muitas urbes que mirou e mentes dos homens
que escrutinou, as muitas dores amargadas
no mar a fim de preservar o próprio alento
e a volta dos sócios. Mas seu empenho
não os preservou.”

Tradução de Trajano Vieira


Odisseia, canto XXIII
‘‘Rindo de satisfação, a anciã subiu até o alto aposento,
para dizer à rainha que o marido estava em casa.
Os joelhos mexiam-se bem, embora os pés tropeçassem.
Postou-se junto à cabeceira e assim falou à senhora:
‘Acorda, Penélope, querida filha, para veres com teus
próprios olhos aquilo que esperaste todos os dias’.”

Tradução de Frederico Lourenço

“A velha exulta na subida aos quartos súperos,
para comunicar o torna-lar do esposo
à dama. Rótulas se apressam, pés pressuram.
Cabeça acima, estática, lhe disse: ‘Acorda,
querida filha, e mira com teus próprios olhos
o que teu sonho acalentava em pleno dia’.”

Tradução de Trajano Vieira


Eloy Alonso/Reuters
O escritor Derek Walcott trouxe para a estrutura épica de seu poema temas candentes do nosso tempo (foto: Eloy Alonso/Reuters)
Sete Mares das Antilhas

Um clássico de verdade, como a Odisseia de Homero, está sempre vivo e é capaz de inspirar novas leituras, incorporando questões postas pelo homem e pelo tempo. É o caso de Omeros, de Derek Walcott, publicado em 1990. Em 1992, o autor ganhou o Nobel de literatura. Foi o primeiro escritor caribenho a receber o prêmio. Poeta, dramaturgo e ensaísta, Derek Walcott nasceu em Casties, na ilha de Santa Lucia (ex-colônia britânica do arquipélago das Pequenas Antilhas), formou-se na Jamaica e estudou teatro nos Estados Unidos, onde viveu, dividindo seu tempo ainda entre a Inglaterra e Santa Lucia. Omeros é sua obra mais conhecida e ganha reedição (já havia sido publicada no Brasil em 1994), na tradução de Paulo Vizioli.

Trata-se de um imenso poema, com mais de 400 páginas, que opera o milagre lírico e histórico de aproximar Grécia, África e Caribe, Ocidente e Oriente, centro e periferia, Novo e Velho Mundo. Os personagens arquetípicos das epopeias homéricas são mesclados com pescadores de Santa Lucia, e o próprio Homero aparece como o pescador cego Sete Mares. Derek faz com seu poema um profundo mergulho nos temas, obsessões e problemas do nosso tempo, como a destruição da natureza, a questão da difícil integração de culturas e a busca das raízes num mundo marcado por muros de toda espécie.

Há vários elementos interessantes em Omeros, da escolha da forma – um poema épico, embora marcado mais pela dimensão humana da política que por sua tradução bélica e maravilhosa – ao tema central da narrativa, que é o desenraizamento. No decorrer do poema são apresentados vários episódios que atualizam o tema homérico das disputas e errâncias em torno de questões como a escravidão negra, o imperialismo, a espoliação das riquezas naturais, o aniquilamento dos mais fracos. A volta ao lar do autor (que também é personagem que sofre pela divisão interna, como mulato pertencente a dois mundos, e que se exprime na língua do colonizador) é um reencontro com Santa Lucia, com a gente simples que exalta em seu grande poema e, sobretudo, com a natureza. A terra é sua Penélope.

Outros cantos
O romance Os cantos perdidos da Odisseia, de Zachary Mason, é um sofisticado engenho literário. Seu Odisseu não é o que conhecemos – que guerreou na Ilíada e que passou pela aventurosa viagem de regresso que lhe tomou 10 anos –, não é um mito, mas um homem de carne e osso que interage com os deuses de igual para igual. Odisseu quer ouvir novamente o canto das sereias (e gozar de sua verdade), precisa se afirmar como homem nas mesmas situações narradas no épico de Homero; e quer até mesmo mudar seu destino e, em vez de tornar a Ítaca, cantar a maravilha das errâncias e o fragor dos feitos. Precisa deixar de ser personagem e assumir seu próprio destino.

Por trás da narrativa fragmentária e múltipla – nem sempre narrada por Odisseu – está uma constatação: antes de Homero codificar a saga do herói, muitas histórias davam conta dos fatos narrados na Ilíada  e na Odisseia, contadas por poetas dos quais nada conhecemos. O que Mason faz é “recolher” 44 cantos perdidos dessa tradição e enfeixá-los como quem edita um romance feito de retalhos de outras fontes. Odisseu pode estar casado com Helena, encontrar Penélope envelhecida ou morta, e mesmo desistir de retornar a Ítaca para se tornar cantor de feitos memoráveis. Há algo de borgeano nesse empenho de anular o narrador para fazer sobressair a invenção, que se liga diretamente a uma memória que não nos habita.

O fragmento do canto 45, sugerido por Mason, talvez seja a chave de tudo: “Um único fragmento é tudo o que sobrevive do canto quarenta e cinco da Odisseia: Odisseu, entendendo que sua reputação para astúcias o precedia, começou a inventar histórias para si mesmo e a disseminá-las onde quer que estivesse. Isso produziu o efeito desejado de toldar a percepção e distorcer as expectativas, tornando mais fácil para ele agir da maneira que estava habituado, mas também produziu o efeito inesperado de que uma de suas mentiras, com variações de menor monta, acabou se tornando a Odisseia de Homero.”

Zachary Mason é um escritor imaginativo, embora tenha formação e carreira na área da computação e seja especializado em inteligência artificial. Talvez venha dessa mescla de razão e fantasia o efeito mágico de sua recriação, ou melhor, ampliação da narrativa homérica com episódios que humanizam o mito. Inteligência artificial, nessa medida, é quase uma metáfora para poesia. Afinal, nada é mais artificial que a invenção, sobretudo quando torna o sonho possível, mesmo com toda a carga da tradição nas costas. (João Paulo)

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