Escritor mineiro Luiz Vilela volta ao romance com Perdição

A partir da história de um jovem pescador que se torna pastor evangélico, o autor traça um retrato desencantado da sociedade contemporânea

por João Paulo 22/12/2011 09:40

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Arte de Alexandre sobre foto de Jair Amaral
(foto: Arte de Alexandre sobre foto de Jair Amaral)
Literatura é um negócio complicado, cheio de histórias e maneiras de contar essas histórias. Tem a forma e o conteúdo. E, para alguns poucos escritores, muito bons, a forma é o conteúdo. Em outras palavras, o jeito de narrar está tão ligado ao que é dito no enredo que o leitor se sente dentro das palavras. Luiz Vilela é um desses mestres e seu grande instrumento é o diálogo. Ele não sente falta de nada além de uma conversa, mesmo a mais banal, para apresentar sua visão de mundo. Não precisa de filosofia (embora seja formado em filosofia), de realismo jornalístico (mesmo tendo trabalhado muitos anos em jornais), de conhecimento cosmopolita (sua volta ao interior de Minas se seguiu à experiência de vida em São Paulo, EUA e Espanha) ou de psicologia (ainda que nada passe batido pela sua compulsão pelo detalhe significativo). Ele apenas põe as pessoas falando, ouvindo e se calando. As palavras e os silêncios dão conta do recado.

No ano que vem, Vilela completa 70 anos. Maduro, com uma obra que conta com seis volumes de contos, três novelas e quatro romances, ele está lançando Perdição (Editora Record), que começa a se destacar pelo tamanho. O romance, com 400 páginas, é o mais volumoso de seus livros até agora. Mas a ética e a técnica são as mesmas: o escritor se mantém ligado em gente comum e faz do diálogo seu bisturi para revelar a realidade social e psíquica. São poucos personagens, o enredo se resume em algumas linhas, as conversas são muitas vezes vazias, o humor em alguns momentos beira o mau gosto, mas a sensação de vida real captura o leitor na primeira página. Luiz Vilela produziu um épico da banalidade. Mas atenção: trata-se do nada de que somos feitos.

A história se passa na cidade imaginária de Flor do Campo. Que de flor só tem o nome (e mesmo ele é renegado em favor da pretensão de dar ao município um nome em inglês). A cidade é, como muitas do interior de Minas, habitada por gente simples, muitas pessoas vazias, políticos corruptos, traidores e místicos de toda a natureza. O que destaca Flor do Campo das demais é sua lagoa de águas escuras, que abriga segredos e possíveis monstros. E peixes. O romance, dividido em três partes, começa com “O rapaz dos peixes”, que apresenta os personagens centrais, os amigos Ramon, jornalista que estudou na capital e voltou à cidade natal, e o amigo de infância Leo, pescador que vende seu produto na feira.

O mapa moral da cidade vai sendo apresentado sempre de forma enviesada, por casos antigos e histórias implausíveis. Nesse ambiente, os amigos parecem viver um momento definidor. Se Ramon, mais cético, se basta na ocupação de redator de um jornal do interior, Leo parece alimentar alguma ambição existencial além da vida de pescador. As simbologias da busca, da pescaria, do mergulho, da revelação, tudo vai sendo desenhado à contraluz, por meio das conversas dos amigos, em meio à ironia quase rascante em relação ao provincianismo do meio. O diálogo carrega ainda componentes sociais de classe, mimetizando a fala e a visão de mundo de diferentes estratos sociais. 

O jovem Leo se torna o pastor Pedro. A identificação com o apóstolo, aparentemente imediata, na verdade é construída a partir da elisão de uma parte fundamental da narrativa. Perdição trata da primeira parte da vida do jovem – antes da “conversão” ao credo evangélico – e de seu retorno a Flor do Campo, depois de uma passagem acidentada pelo Rio de Janeiro, uma Babilônia que apenas deixa entrever seus sinais de dissipação na vida destruída que Leo traz na bagagem. Num romance onde tudo se desenrola à frente do leitor, a transformação de Leo em Pedro só é figurada pela voz dos outros e pelas especulações de todos. O rapaz dos peixes volta arrasado e não sabemos o que se passou em sua vida ou toma seu espírito marcado pela ausência de graça. 

As conversas de Ramon com Leo, com o singelo Mosquito (um divertido vendedor de pimentas), com Gislaine (mulher de Leo), com Nenzinha, a dona da pensão que hospeda o pastor em derrocada; todos esses diálogos vão compondo um painel negativo da comunidade: o racismo, a violência, o machismo, a traição, a maldade, a ignorância, o preconceito. Com humor corrosivo, que muitas vezes parece zombar do outro, Ramon desenha um cenário de hipocrisia que vai da política à religião, passando pelas convenções sociais. Ainda que sinceramente voltado para mitigar o sofrimento do amigo, o jornalista, em seu ceticismo, parece não alimentar outra certeza que a derrocada inevitável. Sem nada a oferecer, vira e mexe sua resposta ao interlocutor é um evasivo: “Hum…”. Não por acaso, a última parte do romance ganha o nome de “Ninguém”.

CONTRA A FÉ A religião, que parece concentrar em si grande parte dos pecados da sociedade – na verdade a acusação mais forte não é contra a instituição evangélica ou católica, mas, ainda mais fundo, contra a fé – não se revela apenas em sua institucionalização e exploração do outro. Ela se relaciona com crendices, com a mentira, com a incultura e com a hipocrisia em vários matizes. Erigida sobre falsidades, nada de melhor pode resultar da covardia da crença sem crítica. Ramon gasta suas baterias de sarcasmo em vão. Num território onde é minoria, é incapaz de ferir com a desconfiança que desfecha a certeza que gera tanto sofrimento. Resta o humor. Quase raiva.

Como todo mito de redenção, a tentativa de recuperar a inocência – ou ao menos a dignidade – vem cercada pelo castigo definitivo. Para reviver é preciso morrer. As estações da paixão de Leo vão da traição ao crime, passando pela doença e outras perdas. Os símbolos da consumação estão presentes o tempo todo e o final do romance parece cumprir o desígnio do mito. O rapaz dos peixes radicaliza seu destino.

O grande fascínio da narrativa de Luiz Vilela, um extraordinário exercício de estilo, é dar conta da complexidade humana e política com o recurso fugidio da oralidade. Uma fala tão perfeita que não abre mão de nada que possa sustentar sua credibilidade e verossimilhança, nem mesmo da imperfeição. As pessoas falam como só é possível na literatura. Há uma recriação estética da palavra falada, numa dicção e musicalidade que respeita todos os condicionamentos da cena. O mais impressionante, acima do virtuosismo técnico, é a o fato de diálogos chãos, comezinhos, quase diminutos, realizarem o que há de mais insondável no mistério do homem no mundo. São as pequenezas que nos limitam e definem. Fora do humano, nada mais interessa.

Em seu romance de maturidade, Luiz Vilela está ainda mais cético. Mas não deixa de carregar os mesmos temas que habitaram sua literatura desde sempre: o homem em situação, a falência dos projetos coletivos pela insondável âncora da individualidade, a força irracional do sexo, a recusa a todas as formas de mistificação, a busca desencantada por uma verdade de antemão condenada ao fracasso. O escritor nunca gostou de família, de religião e de convencionalismo. Agora, parece gostar menos. O que faz de sua literatura, além de realizada com extrema destreza, objeto de necessidade ética.
 
Cinco perguntas para... 
Luiz Vilela
escritor
 
Conhecido pela narrativa curta, você trabalha em Perdição um texto longo, de dimensões épicas. Como foi a experiência de escrever com um fôlego mais ampliado? Foi exigência da narrativa? 
Sim, foi exigência da narrativa. Perdição começou como um conto, foi crescendo e se transformou numa novela, continuou a crescer e se transformou num romance. Nesse processo, da primeira frase escrita até o ponto final no livro, mais de 10 anos se passaram. Lembro, porém, aqui, que, além dos meus seis livros de contos e das minhas três novelas, já escrevi quatro romances. Portanto, narrativas mais longas não são para mim novidade. E, se tudo sair como espero, o meu próximo romance, já em fase adiantada, deverá ter mais de 500 páginas. Mas, enfim, curtas como os contos, médias como as novelas, ou longas como os romances, o que importa é que as narrativas sejam boas.

Seus diálogos, pela naturalidade e música, parecem feitos para o cinema e a dramaturgia. No entanto, o clima é absolutamente literário. O que você pensa da natureza de cada uma dessas formas de expressão?
Por mais que pareçam, os diálogos da literatura, do cinema e do teatro não são a mesma coisa. Já tive mais de uma dúzia de adaptações de meus contos para o cinema, o teatro e a televisão, e frequentemente alguém diz, me elogiando, que os meus diálogos são muito cinematográficos. É um elogio simpático, mas os meus diálogos são mesmo é literários, pois é literatura o que eu faço, e não cinema ou teatro.
 
Em Perdição, o humor tem um papel fundamental. A ironia, marca na literatura brasileira desde Machado de Assis, anda em baixa, em nome de uma certa pompa. Para você, o humor é uma forma de crítica?
Sim, o humor é para mim uma forma de crítica, e, a meu ver, a mais poderosa forma de crítica que existe. “Castigat ridendo mores” (“rindo, fustiga os costumes”), conforme à locução latina. Mas não é só isso. Acho o humor fundamental não só na literatura, mas também na vida. Sem o humor não dá. Aproveito aqui para mandar um recadinho aos politicamente corretos: que tal botar um pouco de humor em sua vida? Comecem por rir de si próprios. E aí, então, sintam-se à vontade para rir dos outros. Rir faz bem ao corpo e ao espírito. 
 
Qual é, para você, o papel da literatura na sociedade da informação, cada vez menos capaz de reflexão? 
Pela sua liberdade, pela sua complexidade e pela sua profundidade, diria que a literatura é hoje, no mundo moderno, o último reduto da inteligência humana. Sem ela, mergulharíamos nas trevas da ignorância, seja esta a ignorância iletrada ou a ignorância eletrônica ou, pior, a reunião das duas, que é o que mais se vê atualmente.

Religião é um problema político no Brasil ou uma manifestação da psicologia do povo?
Num país em que, segundo as pesquisas mais recentes, a quase totalidade das pessoas acredita em Deus e em que, como vimos recentemente pela imprensa, há gente que diz conversar com Nossa Senhora e lota com isso uma igreja, qualquer crítica à religião me parece não apenas inútil, mas, às vezes, temerária. No meu livro, embora ele seja um romance, com histórias e personagens, e não um panfleto contra qualquer coisa, aparecem vários aspectos negativos das religiões. Espero não ser, por isso, linchado. Mas, se for, já aviso que dispenso a missa de sétimo dia. Vão, com o dinheiro, a um boteco e tomem lá, em meu nome, uma cerveja. Combinado?...  


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