Vinte anos se passaram desde a estreia de “Veneza”, peça do argentino Jorge Accame dirigida por Miguel Falabella. Mas a cena do barco, sob a luz da Lua, nunca foi tão atual para nos lembrar da importância do sonho. Especialmente em dias tão amargos.
Em 2001, no Grande Teatro do Palácio das Artes lotado, o público não despregou os olhos de Gringa, a cafetina cega obcecada por ir à Itália reencontrar o grande amor de sua vida. E ela foi mesmo, com a ajuda das prostitutas de um bordel miserável. Quando surgiu o barco com Gringa e os amigos, a encenação de Falabella revelou a mágica do teatro em transformar sonho em realidade.
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PERCALÇOS
Miguel Falabella sempre percebeu que a história de Gringa renderia um belo filme. O ator e diretor só não contava com os percalços que enfrentaria até a estreia de seu longa-metragem, que chegou esta semana a cinemas que já reabriram as portas – em BH, as salas permanecem fechadas.A pandemia atrasou em quase um ano a chegada de “Veneza” à tela. Na última hora, com as locações no Rio de Janeiro já totalmente definidas, a produção foi transferida para o Uruguai. Musa de filmes importantes de Pedro Almodóvar, a atriz espanhola Carmen Maura, que faria Gringa na versão cinematográfica de “Veneza”, não pôde embarcar para o Brasil. Havia contraindicação para que ela, de 75 anos, tomasse a vacina contra a febre amarela. Foi aquele corre-corre.
Em Montevidéu, uma tempestade elétrica, no meio das filmagens, destruiu a lona do circo de família uruguaia que servia de cenário essencial para a história. Levantar dinheiro para bancar a produção foi outra luta. Quando Miguel Falabella explicava a possíveis investidores que não se tratava de comédia, não lhe davam atenção.
“Nunca me coloquei em uma prateleira, mas as pessoas têm tendência a isso”, comentou o ator e diretor em entrevista coletiva concedida esta semana, via YouTube.
O orçamento apertado permitiu apenas 28 dias de filmagens – três deles em Veneza, na Itália. Mas deu certo. Lá se reuniram Gringa, Rita e Tonho. “Sabia que faríamos bacana. Tive grandes parceiros”, afirmou o ator e cineasta. O segundo longa de Falabella estreia 13 anos depois de “Polaroides urbanas”, adaptação de “Como encher um biquíni selvagem”, peça escrita por ele.
Além de Carmen Maura, o elenco de “Veneza” conta com Dira Paes (Rita), Du Moscovis (Tonho), Danielle Winits (Jerusa), Caio Manhete (Júlio), Roney Villela (pai de Júlio) e André Mattos (Mestre). Na edição de 2019 do Festival de Cinema de Gramado, Carol Castro recebeu o Kikito de melhor atriz coadjuvante por sua atuação como Madalena.
Trabalhar com Carmen Maura foi a realização de um sonho para o elenco brasileiro. Dira Paes ficou admirada com a disponibilidade e a disposição da atriz espanhola. Mas, sobretudo, chamou a atenção dela a paixão à primeira vista entre Carmen e Miguel. “A primeira leitura foi mágica. Era como se já estivéssemos juntos há um mês”, comentou Dira.
Para conseguir o tom exato do portunhol falado pela personagem, Carmen não fez por menos. Foi aluna extremamente dedicada. “O português era difícil para ela, que ficava treinando, treinado, treinando no camarim”, revelou Miguel.
Único ator do filme que assistiu à peça “Veneza”, Du Moscovis se lembra até hoje daquela sessão nos anos 2000, no Shopping da Gávea, no Rio de Janeiro. “Uma montagem linda com dona Laura (Cardoso)”, contou.
Falando direto de Montevidéu, onde grava novo trabalho três anos depois das filmagens de “Veneza”, Du não escondeu a saudade da trupe. Revelou que na convivência com colegas argentinos de várias gerações percebeu a importância que eles dão ao texto.
Moscovis considera a adaptação de Miguel Falabella o ponto alto do longa-metragem. Levar textos do teatro para a tela sempre traz o receio de que o universo teatral não atinja o mesmo lugar no cinema, pondera. “Os códigos artísticos são outros e a disponibilidade do público também é outra. Mas quando recebi a adaptação, fiquei encantado”, elogiou.
CHORO
Durante a entrevista, Du se emocionou ao comentar a luta do artista brasileiro para chegar ao público. Não conteve as lágrimas ao se referir aos ataques direcionados à categoria, que vê os meios de sobrevivência minguarem, situação agravada pela pandemia.“A gente está sendo tão massacrado, é tão doído. A briga em que a gente está agora de resistência é dolorosa. A gente que é artista tem compreensão da dificuldade para sobreviver, para concretizar nossas obras e crenças artísticas”, desabafou.
Dira Paes afirmou que o momento é ainda mais difícil por causa da impossibilidade de sonhar. “Parece que agora nossa consciência está voltada para defender direitos básicos. O sonho parece que fica longe. Este filme vem banhar esse lugar. Trazer a unidade para a gente se permitir novamente. Não para sermos a Rita, mas Gringa”, disse. Dessa forma, Dira comparou sua personagem, que não sabe sonhar, à cafetina cega que a miséria não impediu de chegar a Veneza.
“Não temos dinheiro sobrando, não roubamos dinheiro de ninguém. Somos honrados”, emendou Moscovis, referindo-se aos sucessivos ataques de autoridades federais aos artistas e às leis de patrocínio cultural. “Fazemos (arte) para a gente e para o público, para levar o sonho de possibilidade, da esperança de beleza. O sonho e o desejo da Gringa são os mesmos nossos”, afirmou o ator
Buscando tranquilizar os colegas, Falabella garantiu: “Isso também passará”. Aos 64 anos, ele era o único dos integrantes da trupe reunidos na coletiva que vivenciou a barra-pesada da ditadura militar. “Nos ensaios para a censura, os espetáculos eram cortados, mutilados, levávamos duras nos hotéis. Sobrevivemos a isso tudo.”
ÓDIO
Miguel Falabella disse aos colegas que aprendeu a não receber ódio. “O presente que é dado e você não aceita fica com a pessoa. A gente continuará fazendo. A nossa missão é trazer sonhos para as pessoas. Como já dizia o grande poeta (Mário) Quintana, eles passarão, nós passarinhos.”Em vídeo gravado no set de “Veneza”, Carmen Maura deixou seu recado: “Todas as vezes que venho para a América Latina acontecem coisas diferentes. É, de fato, um filme muito especial. Não posso obrigar ninguém a ir ao cinema, mas se eu fosse você, iria”. Em meados dos anos 1990, a estrela espanhola esteve em Belo Horizonte, onde assistiu à peça “Pérola”, de Mauro Rasi.