Rede social dedicada ao cinema, Letterboxd 'viraliza' na pandemia

Em um ano, contas pulam de 1,7 milhão para mais de 3 milhões. Usuários podem publicar críticas aos filmes na plataforma, que aborda de estreias a clássicos

Pedro Galvão 07/02/2021 07:00
Reprodução/Internet
Detalhe do Letterboxd, criado há 11 anos por neozelandeses e que experimenta agora seu auge de popularidade mundial (foto: Reprodução/Internet )

Seja pelas discussões políticas que se arrastam há alguns anos, ou pelo recém-reiniciado BBB, as redes sociais tendem a ser dominadas (e conturbadas) por um único assunto, geralmente polêmico. O que nem sempre é útil para os usuários que buscam ali uma experiência mais leve e direcionada a outro interesse específico. Talvez antevendo isso, os neozelandeses Matthew Buchanan e Karl von Randow criaram, há 11 anos, o Letterboxd: uma rede social exclusivamente dedicada ao cinema, que vive seu auge de popularidade na pandemia.

Coincidência ou não, nos meses de quarentena, em que as timelines dos populares Twitter, Instagram e Facebook ficaram ainda mais recheadas de conteúdos não muito agradáveis, como a circulação de notícias falsas sobre a COVID-19, o Letterboxd (com versão só em inglês) quase dobrou seu total de usuários. O número de contas criadas na rede era de 1,7 milhão no início da pandemia e hoje já passa dos 3 milhões, conforme declararam seus criadores ao jornal norte-americano The New York Times.

A estrutura não difere das demais redes sociais. É possível baixar o aplicativo para celular ou acessar o site pelo computador. Para participar, basta oferecer um endereço de e-mail, escolher um nome de usuário, uma senha. Pronto. Sua conta está criada gratuitamente. De início é até sugerido se conectar automaticamente a amigos de outras redes sociais (Facebook e Twitter) que possam já estar cadastrados ali. Os anúncios publicitários e o oferecimento de uma versão premium, paga, também são pontos em comum. Mas o diferencial logo fica evidente. A interação no Letterboxd ocorre a partir da avaliação de filmes vistos pelos usuários.

Na página inicial aparecem listagens de filmes, como “novos no Letterboxd”, onde está, por exemplo, One night in Miami, recém-indicado ao Globo de Ouro de Melhor Direção, para Regina King. Outra sessão tem os “populares no Letterboxd”, e ali se encontram o sul-coreano Parasita e a recente animação da Disney Soul. É possível marcar cada filme como visto, ainda avaliá-los de 0 a 5 estrelas e escrever uma resenha pessoal a respeito. O texto publicado pode ser comentado por outros usuários e assim a rede social gira.

Em setembro de 2020, o crítico e roteirista norte-americano Scott Tobias publicou um artigo no portal The Ringer e profetizava: “O futuro das discussões sobre cinema está no Letterboxd”. Segundo ele, “à medida que a pandemia e a expansão do streaming mudam como e quando vemos um filme, um site de mídia social despretensioso se posiciona como um paraíso para a comunidade de críticos de cinema”. Tobias destaca que a plataforma proporciona um tipo de comunicação informal sobre filmes que justifica seu sucesso e relevância. “É um tipo de escrita que poderia ter um lar apenas no Letterboxd: uma abreviação casual e pessoal voltada diretamente para os conhecedores”.

Ele citou como exemplo a resenha feita por uma usuária sobre Clube da luta, cultuado longa de David Fincher, lançado em 1999. Ainda em 2018, a norte-americana Mia Vicino, que atende por ‘Brat Pitt’ no Letterboxd, escreveu: “Primeira vez: Clube da luta é o melhor filme já feito. Segundo vez: Clube da luta é um comentário profundo sobre os perigos do consumismo. Terceira vez: Clube da luta é uma fossa nojenta de masculinidade tóxica e não é tão profundo quanto seus fanboys pensam que é. Quarta vez: Clube da luta é uma crítica da masculinidade tóxica e é mais profundo do que seus fanboys pensam que é. Quinta vez: Clube da luta é a melhor comédia romântica satírica gay já feita”.

“Esta pepita de ouro de 183 palavras captura perfeitamente as duas décadas turbulentas do filme na cultura, onde foi celebrado como um barômetro da indignação masculina e vilipendiado como um instigador do mesmo”, avaliou Scott Tobias. A autora do review (termo em inglês usado para esse tipo de publicação) está desde 2016 no Letterboxd e goza de grande popularidade por isso. No Twitter ela se identifica como “A Brat Pitt do Letterboxd" e tem mais de 9 mil seguidores. Além disso, é colunista de um portal de entretenimento de Portland (EUA). Na rede social que a projetou o número de seguidores é bem maior, somando 75 mil. Desde que entrou no Letterboxd, ela já avaliou 2.132 filmes, sendo 34 só neste ano.

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Qualquer usuário pode postar sua crítica a filmes: a de Clube da luta ajudou a projetar a norte-americana Mia Vicino (foto: DIVULGAÇÃO )


OLHAR PLURAL


 Em sua análise, Tobias ressalta outro ponto importante favorável à rede social do momento. “As datas de lançamento não importam no Letterboxd. As conversas podem acontecer sobre qualquer filme de qualquer momento, o que dá uma vantagem sobre as publicações formais, que vinculam sua cobertura em torno de datas de embargo, muitas vezes antes que o público em geral tenha acesso a um filme, e rapidamente passando para o próximo assunto”, observa.

O argumento vai ao encontro da declaração de Gemma Gracewood, a editora-chefe do Letterboxd, ao The New York Times, em janeiro. “Amamos conversar sobre cinema e recentemente estamos conversando muito mais sobre aquilo que amamos, porque estamos todos trancados em casa”, pontua ela, confirmando o bom momento vivido pela empresa durante a pandemia.

De estreias aos clássicos, há espaço para tudo

GLOBOVIDEO/DIVULGAÇÃO
O brasileiro Cabra marcado para morrer, de Eduardo Coutinho, integra lista de documentários 'top 100' (foto: GLOBOVIDEO/DIVULGAÇÃO )


O caráter atemporal da rede garante que lançamentos e clássicos rendam diversos tipos de interação. São registrados desde comentários de uma única frase, outros em tom de ironia e deboche, até análises mais fundamentadas por especialistas. Mike D’Angelo, crítico de longa data das revistas Entertainment weekly e Esquire, usou o Letterboxd para fazer uma retrospectiva, por data, de todos os filmes a que assistiu desde janeiro de 1992. Além das resenhas antigas, ainda usou o site como diário para considerações ocasionais.

“Se estou escrevendo uma resenha profissional, meu público é a audiência geral. No Letterboxd, não me preocupo com informações obrigatórias no jornalismo, como um resumo da trama. Faço piadas e referências que, para entender, um leitor precisaria de conhecimento bastante aprofundado sobre cinema. É uma forma de escrever muito mais libertadora”, disse também ao jornal nova-iorquino.

A finalidade de diário é um trunfo da rede, por permitir a cada usuário falar aleatoriamente sobre qualquer filme e compartilhar aquilo com seus seguidores. Semelhante ao que ocorre com conteúdos genéricos nas redes sociais mais conhecidas. Outra funcionalidade adorada pelos usuários é a criação de listas temáticas de filmes. É possível fazer seleções por assunto, diretor, atriz, ator, época, estilo ou qualquer outra razão, além de conferir as elaboradas por outros usuários. Uma forma prática e divertida de encontrar boas dicas do que ver, sobretudo com tanta oferta disponível nos serviços de streaming.

Em um rápido acesso, encontra-se, por exemplo, uma lista chamada ‘Eat the rich’, expressão tradicionalmente usada no inglês contra a desigualdade social. Ela inclui filmes em que essa temática social é marcante. Lá estão Nós (Jordan Peele, 2019), Parasita (Bong Joon-ho, 2019), Bacurau (Kleber Mendonça Filho, 2019) e o clássico Metropolis (Fritz Lang, 1927). Algumas listas são desenvolvidas pela própria equipe do Letterboxd, como a ‘Official Top 100 Documentários’. O primeiro nessa coletânea é Cabra marcado para morrer (1984), do brasileiro Eduardo Coutinho.

DETALHES TÉCNICOS 


É possível ainda ver a nota média que cada filme tem na avaliação dos usuários, algo que o site Rotten Tomatoes também faz. Vale destacar que, além dessa interação social, o site oferece informações técnicas sobre os filmes e direciona para bases de dados cinematográficas conhecidas, como o IMDB.

Contudo, apesar dos atrativos, o Letterboxd também compartilha aspectos negativos de outras redes. Com tantos usuários escrevendo, conteúdos problemáticos acabam aparecendo, envolvendo discursos de ódio e coisas do tipo. Em 2019, o fundador da empresa, Matthew Buchanan, teve de esclarecer uma polêmica envolvendo um comentário sobre o filme Bastardos inglórios, de Quentin Tarantino. Na ocasião, um usuário escreveu que gostaria que os personagens do filme, implacáveis contra os nazistas na Segunda Guerra, voltassem à vida para exterminar também “os nazistas que habitam atualmente os EUA”.

A postagem foi excluída pela administração da rede, o que motivou críticas de outros usuários, que acusaram a Letterboxd de “defender o Nazismo”. A empresa usou o princípio de neutralidade para se posicionar: “Não queremos promover qualquer forma de ódio violento em nossa plataforma, não importa de que lado você esteja”, mas foi preciso Buchanan vir a público reforçar sua posição contra as ideologias de extrema-direita, conforme consta na “política de uso da empresa”, sempre aceita com um clique, mas nem sempre lida pelos usuários de redes sociais. Quem tiver interesse em explorar mais essa rede pode acessar www.letterboxd.com.

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