Dora tem 13 anos e passou toda a sua vida na Alemanha. Pois é enviada pela mãe para Salvador, onde vive sua avó, Maria, que ela mal conhece. A contragosto, a garota não demora a descobrir que as férias no Brasil, na verdade, são uma mudança definitiva. É sobre as diferenças – de geração, de país, de cultura – que nos separam e que podem nos unir que trata Guerra de algodão.
O terceiro longa-metragem do casal de realizadores Marília Hughes Guerreiro e Cláudio Marques teve a estreia nos cinemas em dezembro passado, implodida em decorrência da pandemia do novo coronavírus – em Salvador, por exemplo, ficou uma semana em cartaz, já que os cinemas da capital baiana foram fechados logo depois. Agora, com sua chegada à Netflix, o filme tem a chance de ter a devida visibilidade.
“Eu as vejo muito próximas”, diz Marques. “Ainda que tenha sido criada muito longe da avó, a reconexão entre elas vai mostrar que as duas são da mesma fornada. Mulheres fortes, determinadas, dispostas a fazer muita coisa para valer sua vontade. Como estão em um meio extremamente machista, isso faz com que a jornada delas seja árdua.”
SILÊNCIO
A jornada de que fala o diretor é contada de forma quase silenciosa. A mulher mais jovem e a mais velha pouco se falam. Disposta a fazer de tudo para voltar para a Alemanha, Dora descobre, no meio do caminho, a razão pela qual a avó abandonou o marido e a filha. Foi uma atriz feminista e abriu mão da família por causa da carreira. Mesmo que viva em outro tempo, a neta se dá conta dos traços do machismo, que ela também enfrentará.“Por tudo o que vivenciou, a avó tem medo de se aproximar da neta”, acrescenta o diretor. Estreante em cinema, Dora Goritzki foi selecionada em um casting feito com outras 300 adolescentes. A experiência de ter vivido na Alemanha, assim como a personagem, foi decisiva para sua escolha para o papel.
Dora é a personagem que está o tempo todo em cena, em uma Salvador que foge do clichê. “Normalmente, os filmes mostram pessoas daqui que vão embora. Nossa ideia era justamente o contrário.”
Guerra de algodão é um filme de locação, que explora tanto a esfera pública quanto a privada da cidade. “Salvador é encantadora, maravilhosa, mas terrível também. Desafia muito a gente, como todas as grandes capitais. A gente filmou a Salvador em que vive. A casa de Maria é no bairro Santo Antônio, onde moramos. Elementos dos afrodescendentes, como a capoeira e o candomblé (presentes no filme), são importantes para nós”, comenta Marques.
Antes de chegar a este filme, os cineastas fizeram sete curtas e os longas Depois da chuva (2013) e A cidade do futuro (2016). “A Marília é muito da imagem e eu, da palavra. Os dois universos foram se conectando, e eu fui aprendendo com ela (e vice-versa)”, diz Marques.
Previsto para chegar aos cinemas no primeiro semestre de 2020, Guerra de algodão teve um lançamento nas salas muito restrito em dezembro. “Eu, que sou uma pessoa ligada em sala de exibição (é coordenador do Espaço Itaú de Cinema – Glauber Rocha), fiquei bem triste. Para mim, ainda hoje o cinema é o principal local para um filme ser apreciado.”
A chegada à Netflix, no entanto, é comemorada. “É contraditório, mas, por um lado, estou muito feliz em saber que o filme vai ser visto por muito mais gente. A gente, que vem do cinema independente, tinha como primeira meta (quando começaram a fazer filmes) reconquistar o lugar nos festivais internacionais. E acho que isso foi muito bem feito pela minha geração. Hoje, os filmes brasileiros vão para muitos festivais. Então, agora o que a gente quer é ser visto cada vez mais pelo público.”
GUERRA DE ALGODÃO
• O filme de Marília Hughes Guerreiro e Cláudio Marques está disponível na Netflix