Em mesa de debates, atores repensam a imagem do negro no cinema

Em debate no 53º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, Lázaro Ramos, Camila de Moraes e Renata Martins falaram sobre obras recentes

Adriana Izel - Correio Braziliense 17/12/2020 08:10
YouTube/Reprodução
Lázaro Ramos, Camila de Moraes, Renata Martins e Joelzito Araújo na mesa sobre cinema negro (foto: YouTube/Reprodução)
O cinema negro foi tema de uma das mesas da programação de atividades paralelas do 53º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, iniciado na última terça-feira (15/12). Sob comando do cineasta Joelzito Araújo, o painel, que ocorreu na tarde desta quarta (16) pelo YouTube da Secretaria de Cultura e Economia Criativa, contou com a presença dos diretores e roteiristas Lázaro Ramos (Medida provisória), Camila de Moraes (O caso do homem errado) e Renata Martins (Sem asas). Cada um deles, aproveitou a oportunidade para falar das mais recentes obras que trazem uma nova perspectiva em relação aos temas raciais.

Com passagem por festivais, Medida provisória é o segundo trabalho da carreira de Lázaro Ramos na direção. Anteriormente o ator atuou como diretor em documentário sobre o grupo de teatro baiano O Bando. A obra reflete a necessidade de quebrar paradigmas no cinema negro. Mesmo que o filme tenha um contexto do racismo, ele coloca a narrativa em três gêneros: comédia, thriller e drama, uma fuga ao que chegou a ser sugerido para ele de ser um "favela movies".

"O filme tem um exercício de linguagem. Eu não queria fazer um filme que fosse uma denúncia ou uma reprodução do que se tinha no teatro (a história é inspirada na peça Namíbia não, de 2011). Porque os nossos assuntos têm uma urgência e muitas vezes pensamos que não podemos experimentar. Aí começou o desafio. Começa como uma comédia para estabelecer essa empatia com o público, depois vira um thriller e termina como um drama. Eu intui que tinha um jeito. Tem sim um tema relevante, mas é um filme que entretém e propõe uma nova linguagem para o nosso sistema", define Lázaro Ramos.

O longa-metragem é protagonizado por Taís Araújo, Alfred Enoch e Seu Jorge, que dão vida a uma médica, um advogado e um jornalista, respectivamente, sendo parte de uma família que se vê em meio às questões raciais, numa narrativa que se passa em um futuro distópico. O roteiro tem como inspiração a peça Namíbia não, de Aldri Anunciação que foi dirigido nos palcos por Lázaro.

Inicialmente, o ator convidou Joelzito Araújo, que declinou do convite e instigou Lázaro a estrear na direção. "Eu nunca tive a intenção de ser diretor. A primeira pessoa que procurei quando quis transformar para o cinema foi você (Joelzito). Você disse que ia dar trabalho, que não era muito o tipo de cinema que fazia e que nem sabia se dava um filme. Quando insisti, você disse: "Lazinho, você já sabe o que você quer, por que não dirige?', lembra o ator em conversa com o mediador da mesa.

Medida provisória tinha previsão de chegar aos cinemas este ano. Porém, com a pandemia, acabou passando apenas em festivais. Apesar da possibilidade de poder estrear no streaming, Lázaro diz que optou por aguardar a vacina para levar as salas de cinema e justifica: "Eu entendo que ele tem uma relação que pode ser popular na sala de cinema. Acho que se for para o streaming tem uma parcela importante do público que não vai ver o filme. A gente tá sonhando ainda com sessões lindas para o grande público". Depois da passagem pelas salas tradicionais, a produção já tem contrato para lançamento em streaming e um ano e meio depois na televisão.

Linguagem diferenciada

Uma abordagem estética e de linguagem diferente também foi a aposta de Renata Martins no curta-metragem Sem asas, lançado em 2019. A produção acompanha Zu, um garoto negro de 12 anos que passa por uma abordagem policial ao ir até a mercearia comprar uma farinha para a mãe. "Tenho esse interesse antigo pelo realismo fantástico. Me inspiro nos surrealistas. Construo essa narrativa de um menino negro que deixa de ser uma criança e se torna num homem negro a partir do olhar do outro. Quando você não enxerga uma criança negra é um processo de desumanização. O filme convida o público a compartilhar da angústia do negro de ser abordado de dia. Flerta também com alguns gêneros de tensão a partir do horror que isso causa", define.

Mais do que abordar o genocídio do corpo negro, Renata buscou traduzir na produção o que essa interrupção causa em uma família negra. "É sobre uma família negra, um menino negro, racismo estrutural e como tudo isso atravessa essas famílias", explica. A obra passou por um circuito de festivais até ser coroada neste ano com o Grande Prêmio do Cinema Brasileiro. No elenco, a estrela Grace Passô, que também integra a seleção deste ano do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro.

Atualmente, Renata trabalha na construção de uma série autoral para a Globo, também em parceria com Grace, além de um longa-metragem que abordará o que é terror para a mulher negra. "Estou na expectativa de 2021", afirma. Mais conhecida por trabalhos de curta-metragem e roteiro, Renata diz que a vontade agora é fazer longas-metragens. "Gosto de cinema que é popular. Quero fazer "cinemão" e ajudar a repensar nossa imagem em tela", define.

Extermínio negro

A diretora Camila de Moraes ganhou destaque a partir de 2017 com o lançamento do filme O caso do homem errado. O documentário, pensado inicialmente como um curta-metragem, aborda a história de Júlio César, executado pela Polícia Militar do Rio Grande do Sul em 1987, sob a alegação de ter sido confundido com um assaltante. "Essa mesma história continua se repetindo. Sabendo que a cada 23 minutos uma pessoa negra é executada no país, a gente resolveu falar desse tema dentro do audiovisual", lembra a cineasta.

O filme foi lançado no circuito comercial, o que transformou a gaúcha na segunda mulher negra a ter um longa-metragem sendo exibido nas salas tradicionais de cinema. Antes, apenas Adélia Sampaio, com Amor maldito, de 1984. Atualmente, o doc integra o catálogo dos streamings.

Em 2018, a obra chegou a figurar a lista de 22 longas-metragens escolhidos para disputar a vaga de representação brasileira no Oscar de 2019. O que foi considerado um grande feito, já que a produção demorou oito anos para ser concluída e foi feita toda de forma independente. "Tentamos editais, fizemos financiamento coletivo, várias estratégias. Até que uma produtora de cinema independente nos ajudou a contar essa história", comenta.

Confira a mesa sobre "Cinema negro" no Festival de Brasília do Cinema Brasileiro

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