O cinema negro foi tema de uma das mesas da programação de atividades paralelas do 53º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, iniciado na última terça-feira (15/12). Sob comando do cineasta Joelzito Araújo, o painel, que ocorreu na tarde desta quarta (16) pelo YouTube da Secretaria de Cultura e Economia Criativa, contou com a presença dos diretores e roteiristas Lázaro Ramos (Medida provisória), Camila de Moraes (O caso do homem errado) e Renata Martins (Sem asas). Cada um deles, aproveitou a oportunidade para falar das mais recentes obras que trazem uma nova perspectiva em relação aos temas raciais.
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"O filme tem um exercício de linguagem. Eu não queria fazer um filme que fosse uma denúncia ou uma reprodução do que se tinha no teatro (a história é inspirada na peça Namíbia não, de 2011). Porque os nossos assuntos têm uma urgência e muitas vezes pensamos que não podemos experimentar. Aí começou o desafio. Começa como uma comédia para estabelecer essa empatia com o público, depois vira um thriller e termina como um drama. Eu intui que tinha um jeito. Tem sim um tema relevante, mas é um filme que entretém e propõe uma nova linguagem para o nosso sistema", define Lázaro Ramos.
O longa-metragem é protagonizado por Taís Araújo, Alfred Enoch e Seu Jorge, que dão vida a uma médica, um advogado e um jornalista, respectivamente, sendo parte de uma família que se vê em meio às questões raciais, numa narrativa que se passa em um futuro distópico. O roteiro tem como inspiração a peça Namíbia não, de Aldri Anunciação que foi dirigido nos palcos por Lázaro.
Inicialmente, o ator convidou Joelzito Araújo, que declinou do convite e instigou Lázaro a estrear na direção. "Eu nunca tive a intenção de ser diretor. A primeira pessoa que procurei quando quis transformar para o cinema foi você (Joelzito). Você disse que ia dar trabalho, que não era muito o tipo de cinema que fazia e que nem sabia se dava um filme. Quando insisti, você disse: "Lazinho, você já sabe o que você quer, por que não dirige?', lembra o ator em conversa com o mediador da mesa.
Medida provisória tinha previsão de chegar aos cinemas este ano. Porém, com a pandemia, acabou passando apenas em festivais. Apesar da possibilidade de poder estrear no streaming, Lázaro diz que optou por aguardar a vacina para levar as salas de cinema e justifica: "Eu entendo que ele tem uma relação que pode ser popular na sala de cinema. Acho que se for para o streaming tem uma parcela importante do público que não vai ver o filme. A gente tá sonhando ainda com sessões lindas para o grande público". Depois da passagem pelas salas tradicionais, a produção já tem contrato para lançamento em streaming e um ano e meio depois na televisão.
Linguagem diferenciada
Uma abordagem estética e de linguagem diferente também foi a aposta de Renata Martins no curta-metragem Sem asas, lançado em 2019. A produção acompanha Zu, um garoto negro de 12 anos que passa por uma abordagem policial ao ir até a mercearia comprar uma farinha para a mãe. "Tenho esse interesse antigo pelo realismo fantástico. Me inspiro nos surrealistas. Construo essa narrativa de um menino negro que deixa de ser uma criança e se torna num homem negro a partir do olhar do outro. Quando você não enxerga uma criança negra é um processo de desumanização. O filme convida o público a compartilhar da angústia do negro de ser abordado de dia. Flerta também com alguns gêneros de tensão a partir do horror que isso causa", define.
Mais do que abordar o genocídio do corpo negro, Renata buscou traduzir na produção o que essa interrupção causa em uma família negra. "É sobre uma família negra, um menino negro, racismo estrutural e como tudo isso atravessa essas famílias", explica. A obra passou por um circuito de festivais até ser coroada neste ano com o Grande Prêmio do Cinema Brasileiro. No elenco, a estrela Grace Passô, que também integra a seleção deste ano do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro.
Atualmente, Renata trabalha na construção de uma série autoral para a Globo, também em parceria com Grace, além de um longa-metragem que abordará o que é terror para a mulher negra. "Estou na expectativa de 2021", afirma. Mais conhecida por trabalhos de curta-metragem e roteiro, Renata diz que a vontade agora é fazer longas-metragens. "Gosto de cinema que é popular. Quero fazer "cinemão" e ajudar a repensar nossa imagem em tela", define.
Extermínio negro
A diretora Camila de Moraes ganhou destaque a partir de 2017 com o lançamento do filme O caso do homem errado. O documentário, pensado inicialmente como um curta-metragem, aborda a história de Júlio César, executado pela Polícia Militar do Rio Grande do Sul em 1987, sob a alegação de ter sido confundido com um assaltante. "Essa mesma história continua se repetindo. Sabendo que a cada 23 minutos uma pessoa negra é executada no país, a gente resolveu falar desse tema dentro do audiovisual", lembra a cineasta.
O filme foi lançado no circuito comercial, o que transformou a gaúcha na segunda mulher negra a ter um longa-metragem sendo exibido nas salas tradicionais de cinema. Antes, apenas Adélia Sampaio, com Amor maldito, de 1984. Atualmente, o doc integra o catálogo dos streamings.
Em 2018, a obra chegou a figurar a lista de 22 longas-metragens escolhidos para disputar a vaga de representação brasileira no Oscar de 2019. O que foi considerado um grande feito, já que a produção demorou oito anos para ser concluída e foi feita toda de forma independente. "Tentamos editais, fizemos financiamento coletivo, várias estratégias. Até que uma produtora de cinema independente nos ajudou a contar essa história", comenta.
Confira a mesa sobre "Cinema negro" no Festival de Brasília do Cinema Brasileiro