Estreia 'Querência', filme que revela o Brasil invisível

Rodado no sertão mineiro por Helvécio Marins Jr., longa protagonizado pelo vaqueiro Marcelo Di Souza mostra o dia a dia do trabalhador rural

Pedro Galvão 17/12/2020 04:00
Fotos: Sabrina Manisalco/divulgação
Querência mostra o dia a dia de trabalhadores rurais no Vale do Urucuia, na Região Noroeste de Minas Gerais (foto: Fotos: Sabrina Manisalco/divulgação)
Criado no campo e com raízes fincadas na zona rural de Unaí, no Noroeste de Minas, Marcelo Di Souza sempre teve inclinação artística paralela à lida com o gado, que lhe garante o sustento. Seu cotidiano e suas percepções particulares sobre a sociedade já apareciam nos versos usados por ele em locuções de rodeio, antes de ganhar o mundo nas cenas de Querência, filme dirigido pelo amigo Helvécio Marins Jr. Em uma delas, anuncia: “Minas Gerais do leite/ Minas Gerais do café/ Terra de peão bruto/ Lugar de muita mulher/ Lugar de gente simples e sem preconceito/ Porque é de branco, de preto e de índio/ Que o nosso Brasil é feito!”.

Depois de ser exibido no Festival de Berlim e em outras cultuadas janelas europeias, o longa estreia nesta quinta-feira (17/12), em BH e outras salas brasileiras. Uma oportunidade para mais gente ainda conhecer a história de Marcelo, escolhido por Helvécio não só como ator, mas como personagem da trama.

O cineasta mineiro, que já havia filmado o sertão e sua gente em Girimunho (2011), explica que o filme nasceu depois de um assalto ocorrido na fazenda onde o protagonista trabalhava. “Marcelo nasceu e se criou ali. Foi andar de carro aos 17 anos, foi ver uma escada rolante aos 20. Ele tem uma coisa intrínseca à terra, tem os pés na terra. É como se ali fosse tudo dele”, conta o diretor mineiro.

Pessoa tranquila e comunicativa, Marcelo viu sua vida mudar depois do assalto. “Aquilo mexeu muito com ele, deixando-o muito traumatizado. A gente se encontrou na noite seguinte, chovia muito e até o barulho dos trovões o apavorava. Foi um grande trauma, mas o filme nasce justamente da tentativa dele de reconstruir a vida depois disso”, diz Helvécio Marins.
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A arte sempre fez parte da vida dos personagens de Querência


ROSA 

Rodado no Vale do Urucuia, com direito a cenas do rio citado por Guimarães Rosa em seus romances, o filme tem a proposta quase documental de registrar o cotidiano de Marcelo e seus amigos. Entre eles, Kaik Lima. Planos mais abertos mostram os dois tangendo gado no pasto, enquanto quadros mais fechados revelam cenas do cotidiano rural – como negociatas de frangos, cuidados com as criações e momentos de confraternização, boa prosa e troca de saberes –, nas quais os diálogos ganham destaque.

É neste contexto que um Marcelo atordoado tenta seguir a vida depois de ser rendido por assaltantes, que levaram 120 cabeças de gado em caminhões.

O trabalho com atores que jamais haviam pisado num set foi facilitado pela amizade de longa data entre Helvécio e o elenco. “Marcelo já tinha um lado artístico, assim como Kaik. Eles escrevem versos, fazem locução. Então, foi um trabalho de preparação. Investi muito tempo do projeto nisso. Tecnicamente, é a preparação de elenco, mas quem faz sou eu mesmo, é algo de que gosto”, revela o diretor. Na Europa, ele dá curso de preparação de atores não profissionais.

Além das estratégias usadas por Marins para atingir seus objetivos cênicos, o roteiro, totalmente ligado ao cotidiano dos artistas, facilitou o processo. “Tudo foi discutido de acordo com a vida deles. Não gosto de me impor muito. Se colocasse coisas minhas na boca deles, soaria estranho. Então, tudo é de acordo com a vivência deles. Claro que tem o link dramatúrgico, uma curva dramática do roteiro, mas quase tudo ali é real”, explica o diretor.

Atualmente, Marins se divide entre Portugal e Minas Gerais. Ele conta que costuma passar mais tempo na região onde Querência foi rodado do que em Belo Horizonte.

ORGULHO 

Marcelo di Souza revela que nunca imaginou participar de um longa-metragem. Para ele, Querência é motivo de orgulho, sobretudo porque pode compartilhar sua vida com o mundo. “Esse filme é a minha vida. Qualquer pessoa que quiser me conhecer vai ver que é a pura realidade. Andar no campo, andar a cavalo, tirar leite, os rodeios, tudo isso está na minha vida real. Tem um significado muito grande o Brasil inteiro e o mundo ver esta minha história”, diz Marcelo.

O protagonista de Querência conta que sua ligação com o cinema, até então, se dava por meio de filmes “culturais, da vida real” ou de “bangue-bangues e faroestes com cavalo e caubói”.
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Momento descontraído do filme com vaqueiros artistas

Helvécio Marins mostra a vida rural sem glamour. Há um episódio central de violência, mas também trabalho, amizade, poesia, sonhos, família e solidão. Marcelo Di Souza aprova esse olhar. “É muito importante para o pessoal da cidade conhecer o meio rural. Quantas pessoas nasceram na cidade grande e não conhecem? Assistindo, podem até pensar que é ficção, mas tudo é vida real mesmo. É bom as pessoas do meio urbano valorizarem mais o meio rural, tão importante para o país”, diz.

“Tenho prazer imenso em ser um agricultor, um pecuarista, um trabalhador rural. Assim como conheci o meio urbano através da TV e do rádio, da mesma forma o pessoal da cidade pode conhecer o meio rural através de um filme”, argumenta.

PRECONCEITO 

Marins concorda. “Hoje em dia, muita gente que antes não tinha voz, muitos grupos pelos quais tenho enorme carinho e quero que tenham ainda mais voz, são temas da realidade brasileira. A população preta, que sofre enorme preconceito com o racismo estrutural, e também os LGBTs e os indígenas, têm voz. Mas as pessoas que são a base da pirâmide no campo, nisso pouca gente fala”, adverte o cineasta. 

“No campo, só quem tem voz são os grandes fazendeiros, a bancada ruralista. Então, me interessa muito dar voz a essa população. Além de que, gosto muito daquilo, tenho até vaca e égua com o Kaik e com o Marcelo, é uma coisa que está na veia, é um 'encarno'.”, comenta Marins.

Querência foi exibido no New Horizonts Festival, na Polônia, Festival de Cinema Latino-americano de Toulouse, na França, IndieLisboa, em Portugal, e no Festival Internacional de Cinema Jeonju, na Coreia do Sul, onganhou o troféu de Melhor filme.

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