O Baixo Centro da capital mineira retratado no longa de Samuel Marotta e Ewerton Belico já não é o mesmo. Pronto há quase três anos, o filme, que competiu na 21ª Mostra de Tiradentes e se tornou vencedor do troféu Aurora, em 2018, somente agora se torna disponível ao grande público, com seu lançamento em plataformas de streaming nesta sexta-feira (13).
Ewerton Belico explica que os diálogos e monólogos vistos em cena são “emaranhados de pequenas histórias fraturadas e interrompidas, deliberadamente descontextualizados”. Segunda ele, a ideia se associa a uma proposta de atuação “próxima ao transe, ao entorpecimento, ao sonho, ao estado de vigília, que remetesse a estados de consciência não diurnos e a outras formas de racionalidade”.
Samuel Marotta ressalta que “o filme começa povoado e vai se esvaziando em seu decorrer, até que, no fim das contas, só existem almas ali. Não há mais encontros, nem pessoas. Hoje, a cada vez que vejo o filme fico assustado com um clima que ronda ali de que algo está para acontecer. Ele carrega esses elementos, que não identificamos (no momento), mas agora talvez saibamos o que era”.
As transformações na paisagem urbana de Belo Horizonte – neste ano acentuadas pela pandemia do novo coronavírus – são em certa medida o próprio tema do filme, que retrata na cidade sua personagem principal, vista por uma perspectiva labiríntica.
Marotta conta que o roteiro começou a ser escrito em 2012. “Nessa época, muitas coisas existiam ali no Baixo Centro de BH, várias frentes culturais, movimentos como o Fora Lacerda, Duelo de MCs”, cita.
Nesse estágio inicial de escrita, “o filme partia do encontro de um jovem casal pertencente a realidades sociais diferentes que se conhece ali. Era isso que queria contar e começamos a escrever”, diz.
No entanto, “ao longo de quatro anos, ele acaba acompanhando um processo radical de mudança da cidade e do Brasil. O que era uma coisa festiva vira morte, esvaziamento, gentrificação. Isso que está no filme, que acompanha esse processo de mudança”, afirma o diretor.
Logo em umas das primeiras cenas de Baixo Centro, um casal se encontra num evento de hip-hop, debaixo do viaduto Santa Tereza. São eles Robert (Alexandre de Sena) e Teresa (Cris Moreira). Porém, suas histórias e diálogos a partir dali aparecem fragmentados ao longo de uma longa noite, na qual também participam Gu (Renan Rovida), Luisa (Barbara Colen) e Djamba (Marcelo Souza e Silva). Os personagens compartilham relatos, incertezas, traumas, pensamentos, sem necessariamente se conectar uns com os outros, mas sendo todos coadjuvantes diante de uma BH definida pelos realizadores como “protagonista” da história.
FRATURA
Ewerton Belico explica que os diálogos e monólogos vistos em cena são “emaranhados de pequenas histórias fraturadas e interrompidas, deliberadamente descontextualizados”. Segunda ele, a ideia se associa a uma proposta de atuação “próxima ao transe, ao entorpecimento, ao sonho, ao estado de vigília, que remetesse a estados de consciência não diurnos e a outras formas de racionalidade”.
Demarcando a proposta de seu filme, ele observa que não há nele “diálogos de laboratório de roteiro, onde há uma funcionalidade estrita para o diálogo”. E não há por que, segundo Belico, “não é esse o projeto do filme”. Em sua avaliação, Baixo Centro “retoma uma experiência rara no cinema brasileiro hoje, na qual os diálogos não só informam ou dão pistas sobre os acontecimentos, mas traduzem um estado subjetivo dos personagens”.
Embora o palco principal dos acontecimentos do filme seja a região que o nomeia, sobretudo as ruas da Bahia e Aarão Reis, ele se expande também por outros territórios da cidade, como o Aglomerado da Serra. Contudo, a cidade também aparece de forma fragmentada.
“Nunca foi nosso interesse filmar pontos conhecidos de BH, porque os elementos que nos interessam não se dão ali. Eles estão na parede descascada, nos labirintos, nos lugares inacessíveis, onde nem a câmera de vigilância filma”, diz.
Segundo Belico, “um dos signos mais evidentes desse empreendimento metropolitano é a produção contínua das ruínas, da destruição, e elas se espalham nessa cartografia que o filme realiza”. Mas a conexão mostrada entre a região central e outros bairros, em algumas idas e vindas dos personagens, guarda outro significado.
“O filme articula o conjunto de experiências que ligam espaços que são apartados: o das periferias com o do Centro de BH. Nesse sentido, a escolha da noite explicita a devolução das ruas do Centro para seus donos, para quem habita o Centro, que é a população mais pobre”, afirma o diretor. “A mudança de perspectiva política do filme é também uma mudança de perspectiva da nossa relação com a cidade”, completa.
Mesmo que o roteiro tenha sido escrito há nove anos, os diretores estabelecem uma relação da história com a pandemia. “É como se nossos personagens desde sempre estivessem em isolamento. A vida no Baixo Centro, como está retratada, configura o esgarçamento do espaço público no Brasil, cujo auge é esse isolamento social. No fim das contas, os corpos do Baixo Centro são os que continuam na rua, no espaço público”, avalia Belico.
ALMAS
Samuel Marotta ressalta que “o filme começa povoado e vai se esvaziando em seu decorrer, até que, no fim das contas, só existem almas ali. Não há mais encontros, nem pessoas. Hoje, a cada vez que vejo o filme fico assustado com um clima que ronda ali de que algo está para acontecer. Ele carrega esses elementos, que não identificamos (no momento), mas agora talvez saibamos o que era”.
No longo trajeto do filme até essa estreia nos serviços de vídeo sob demanda, o audiovisual brasileiro também sofreu mudanças, e isso também está entrelaçado com o percurso do filme, na opinião dos diretores.
“Nesse meio do caminho, as vicissitudes da história brasileira marcam a própria história do projeto, em mais de um sentido. O filme, de certo modo, é uma manifestação de um espanto diante de um processo de destruição da cidade e de sua experiência, de ver um sonho, uma imagem de cidade possível, sendo dilacerado, destruído”, afirma Belico.
Ele aponta que “Baixo Centro é fruto da última edição de um edital de cinema hoje extinto, o Filme em Minas, suprimido pelo governo Fernando Pimentel (2015-2018)”. A demora entre a conclusão do filme e seu encontro com o público “é sintoma do que vem acontecendo nos últimos tempos, da paralisação da Agência Nacional do Cinema (Ancine)”, diz Belico.
Mas ele avalia também que “com o fechamento das salas por causa da pandemia, as plataformas de streaming permitiram ao cinema brasileiro uma saída, uma solução possível diante de um bloqueio do fomento à distribuição do cinema nacional”. Em sua avaliação, “o fosso se ampliou, e o mercado, que já era concentrado, ficou mais ainda.”
Baixo Centro
Direção: Samuel Marotta e Ewerton Belico. Com: Alexandre de Sena, Cris Moreira, Renan Rovida, Barbara Colen e Marcelo Souza e Silva. Disponível a partir desta sexta-feira (13) nas plataformas Looke, Now, Vivo Play, iTunes, Microsoft e Google Play