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CINEMA

Filmes da Mostra de São Paulo revelam a distopia contemporânea

Com quase 200 filmes que refletem a diversidade do cinema brasileiro e mundial, a 44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo espelha o estado do mundo. Ai Wei-wei, em seu documentário Coronation, traz as imagens de Wu-han, onde se iniciou a pandemia. Quase um ano depois que tudo começou, ele se indaga sobre a origem do horror. Um filho, consumido pela culpa, lamenta que tenha enviado o pai de volta à cidade de arquitetura futurista – para a morte dele.



Nessa mostra remota, entre um filme e outro para se ver em casa, o noticiário da TV está longe de ser tranquilizador. A Europa voltou a ser o centro da pandemia e há neste momento uma segunda onda devastadora. Tal cenário de hecatombe – de distopia – tem eco nas narrativas de um punhado de filmes que colocam outro tipo de problema, ou de crise. É o caso dos longas Aranha, do chileno Andrés Wood, Feels good man, de Arthur Jones, e Soros, de Jesse Dylan, ambos norte-americanos.


Em 30 anos, desde a derrocada da União Soviética, o mundo tem vivido um processo de direitização. Cada um defende a “sua” democracia. Esses filmes viajam no tempo para tentar compreender o que ocorreu.


CHILE

Andrés Wood volta ao Chile de Salvador Allende para mostrar um movimento ultranacionalista e paramilitar chileno, Patria y Libertad, que luta para desestabilizar o governo de esquerda. O título Aranha refere-se ao símbolo meio nazista que os militantes utilizam.



Começa na atualidade: uma mulher tem a bolsa roubada e um homem persegue o ladrão de carro. Imprensa-o contra a parede. Ganha apoio em certa mídia – mais um justiceiro, um miliciano para defender as pessoas de bem. A história real é diferente. O homem integrou o grupo de direita. Era apaixonado por uma militante socialite. Foi traído por ela. A velha Inés (Mercedes Morán) tem toda a arrogância da direita triunfante. Pergunta ao filho: “Você já pensou o que seria de seus filhos, meus netos, se os marxistas tivessem triunfado em 1973?”.

Soros, de Jesse Dylan, é sobre o bilionário de origem húngara Ge- orge Soros, um dos homens mais ricos do mundo. Odiado pela direita, ele é acusado de financiar movimentos por direitos humanos (de esquerda) e de ser financiador do Partido Democrata, dos EUA, tudo isso enquanto sua fortuna aumenta cada vez mais. Quem é esse homem, como se tornou bilionário no mercado de valores?

Uma rápida pesquisa na internet mostra que Soros talvez seja o inimigo mundial número um dos apoiadores do presidente Jair Bolsonaro. De Donald Trump, nem se fala. Soros foi muito ativo na condenação do apartheid na África do Sul – Nelson Mandela é personagem importante no filme –, mas boa parte da crítica diz que o diretor toma atalhos demais e termina por afastar-se do tema central, que é Soros.

Talvez não seja bem isso. Dylan é, obviamente, fascinado por seu personagem. Não quer nem de longe desacreditá-lo. Tenta decifrar o enigma – por que tanta gente chama Soros de maligno, como se fosse o próprio diabo, e diz que ele, com todo seu filantropismo, é uma força antidemocrática?.



Nos debates do Festival de Telluride, Jesse Dylan não deixou por menos: definiu Soros como super-herói. Seria ele o criador, no mundo real, de uma Liga da Justiça?

SAPO

Também documentário, Feels good man está centrado no artista gráfico Matt Furie. Logo na abertura, ele desenha sua mais famosa criação. Um olho, uma boca imensa. Um sapo, Pepe.

Como Pepe the Frog virou meme de ódio na internet? Supremacistas brancos o adoram. Arthur Jones filma Furie tentando resgatar Pepe dessa área sombria. Animação, live action, Feels good man foi premiado em Sundance no começo do ano.

Os três filmes citados têm em comum um importante fenômeno contemporâneo: o discurso de ódio. Por que o ódio tem tanta ressonância nas pessoas? A mostra sedia essa reflexão importante.