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CINEMA

'Aos olhos de Ernesto' é filme divertido e comovente sobre a velhice

A diretora Ana Luiza Azevedo - Foto: Marcos Ramos/Divulgação
A vida solitária de um viúvo uruguaio, de idade tão avançada quanto a perda da visão, em um apartamento lotado de livros, discos, cartas e lembranças. Um filme com essa sinopse pode parecer monótono ou depressivo, mas Aos olhos de Ernesto não é uma coisa nem outra. 



Afetuoso, divertido e ocasionalmente melancólico, o longa-metragem dirigido por Ana Luiza Azevedo comove e surpreende. Ou você assistiu recentemente a alguma produção audiovisual com uma partida de xadrez entre dois velhos amigos que inclui uma disputa de plaquetas, leucócitos e outros resultados contidos em um hemograma?

Produção da Casa de Cinema de Porto Alegre, formada por um grupo de cineastas gaúchos ainda nos anos 1980, Aos olhos de Ernesto ganhou o prêmio da crítica na 43ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo e do público no 23º Festival Internacional de Cine de Punta del Este. A estreia nacional foi anunciada para o início de abril, mas a pandemia do coronavírus fechou as salas de cinema em todo o Brasil e mudou os planos da produtora e da distribuidora.


“Tivemos que fazer o luto de não ter as sessões nas salas de cinema, junto com diversos outros lutos que a pandemia nos impôs”, destaca a diretora. O filme, então, ganhou lançamento nas plataformas Net Now, Vivo Play e Oi Play, pelo Canal Brasil. 

Inspirado na vida, na capital gaúcha, do fotógrafo italiano Luigi Del Re, o roteiro foi escrito por Ana Luiza e Jorge Furtado, que trabalharam juntos em curtas (Dona Cristina perdeu a memória), longas (Antes que o mundo acabe) e séries de tevê, como Doce de mãe, com Fernanda Montenegro. 



É uma das preciosidades do longa-metragem, bem como a atuação sutil do protagonista, o experiente ator uruguaio Jorge Bolani (o mesmo de Whisky). Ele interpreta Ernesto, surpreendido por uma série de fatos e sentimentos desencadeados por Bia (Gabriela Poester), uma jovem cuidadora de cães. 

Com citações de poemas de Mario Benedetti e diálogos que misturam português e espanhol, Aos olhos de Ernesto reflete a proximidade cultural do Rio Grande do Sul com os países vizinhos.  “Estamos mais próximos da Argentina e do Uruguai do que do centro do país. Hablamos portuñol com muita facilidade”, lembra Ana Luiza. 

Uma das sócias-fundadoras da Casa de Cinema de Porto Alegre, ela respondeu às seguintes perguntas do Estado de Minas, algumas delas elaboradas a partir de diálogos do filme.

O uruguaio Jorge Bolani e o brasileiro Júlio Andrade: pai e filho no filme de Ana Luiza Azevedo - Foto: Fábio Rebelo/Divulgação
Em Antes que o mundo acabe, o foco estava nos adolescentes. Em Aos olhos de Ernesto, são as emoções dos que estão próximos do fim da vida. O que há em comum entre os conflitos e impulsos dos protagonistas dos dois filmes?
São dois momentos da vida em que as escolhas e as perdas são muito difíceis, apesar de as razões serem opostas. Na adolescência, tudo “é para sempre” e o mundo parece que vai acabar pelo mínimo sofrimento. Já na velhice, a proximidade da finitude é real, e as limitações nos são impostas, mas a escolha de como lidar com essas limitações e de como viver este tempo finito é nossa. São dois momentos bastante ricos para a dramaturgia, não à toa que tantas obras-primas da literatura e do cinema os exploraram.



A Dona Cristina, do seu curta-metragem, perdia a memória. Ernesto está perdendo a visão. Mostrar que a velhice pode ser mais do que apenas perda foi um de seus objetivos com os dois filmes, como já havia ocorrido também em Doce de mãe?
Acho que sim. Não gosto de quem trata a velhice com demagogia, não gosto dos eufemismos para falar da velhice como “melhor idade”. A velhice não é a melhor idade. Pode até ser para algumas pessoas, mas não é para a maioria. Mas gosto de acreditar que se pode viver intensamente a velhice, com todas as limitações que ela nos impõe. Às vezes é viver intensamente através do outro, através do olhar do outro, por exemplo.

Por que a decisão de ter como protagonista um uruguaio que mora em Porto Alegre com um vizinho argentino, e não dois gaúchos? 
Sempre quis tratar deste sentimento de ser estrangeiro: uma vez estrangeiro, sempre estrangeiro. E convivi com muitos exilados que foram obrigados a buscar outros países em momentos críticos como os das ditaduras latino-americanas. O exilado não sai do seu país para fazer uma aventura, sai porque é obrigado, porque corre risco de vida, o que, normalmente, faz de muitas pessoas nostálgicos, com um apego muito grande à sua cultura, seu passado.

O Uruguai é um país com uma cultura extremamente rica e que teve muitos dos seus escritores, músicos, atores exilados durante a ditadura militar. Muitos deles voltaram ao Uruguai na suas velhices. Benedetti foi um deles. 

Uma das sequências mais marcantes do longa tem um poema de Mario Benedetti declamado pelo protagonista. O nome do protagonista, por sua vez, é o mesmo de um dos grandes escritores argentinos, Ernesto Sábato, que morreu aos 100 anos de idade. Como a literatura pode influenciar o audiovisual?
A literatura é a grande base para o audiovisual. É com ela que aprendemos a contar histórias, a criar personagens. Pelo menos é assim comigo. Minhas referências são muito mais literárias do que cinematográficas. Quando um jovem pergunta como faz para fazer filmes, eu respondo: leia bons livros.



“A falta de rituais empobrece o mundo.” Como a ausência do ritual do lançamento no cinema, por causa da pandemia, comprometeu o lançamento de seu longa-metragem?
Tivemos que fazer o luto de não ter as sessões nas salas de cinema, junto com diversos outros lutos que a pandemia nos impôs. Assistir a um filme numa tela grande, rodeada de pessoas que a gente não conhece, é uma forma de fruição que não tem como ser substituída. Porém, a exibição por streaming traz outros ganhos: o filme não precisa ganhar o público no primeiro fim de semana, pessoas do Brasil inteiro podem assistir ao filme, ganhamos uma divulgação espontânea do “whatsapp-a-whatsapp” que é muito poderosa... E, assim, o filme vai ganhando uma visibilidade crescente. 

“Letra de mulher é diferente da dos homens.” E filmes escritos e dirigidos por mulheres também são diferentes dos escritos e dirigidos por homens?
Eu sempre ouvi essa frase (risos). Sempre me disseram que eu tinha letra de mulher, de professora. Acho que sim. Uma mesma história vai ser diferente quando escrita por um homem, por uma mulher branca, negra ou índia. Nossas experiências pessoais marcam nossa forma de ver o mundo e, consequentemente, nosso trabalho, mesmo que não estejamos contando uma história testemunhal.
 
Seu filme é assumidamente humanista. O humanismo no Brasil está mais visível na ficção do que na realidade?
O humanismo no Brasil se mantém vivo, mas com pouca visibilidade. O que os jovens trazem numa roda de slam é um grito urgente e poético por um humanismo. O que vemos nos trabalhos de coletivos de mulheres, de negros, de indígenas, de ONGs é do mais puro humanismo. Infelizmente, a intolerância, o racismo e o ódio têm infestado a vida pública, os projetos de governo, dificultando ainda mais o dia a dia de quem já estava sendo colocado à margem.


Precisamos, urgentemente, recuperar a civilidade no Brasil. Precisamos recuperar a esperança de ter governos com projetos humanistas. Precisamos recuperar a esperança de ter governos que acreditem na ciência, na educação, na cultura. A eleição municipal que se aproxima é a hora de começar a resgatar esse humanismo. 



Você tem participado de júri de concursos. Consegue observar uma tendência surgida nos últimos anos? Quais as virtudes e os problemas dos roteiros que você consegue observar? Que conselhos daria a quem está começando?
Acho que temos hoje, no Brasil, ótimos criadores e contadores de história. Tenho lido roteiros com histórias muito potentes e originais. Mas, sinto falta, na maioria dos roteiros, de conhecimento de dramaturgia e do entendimento da importância da cena como unidade dramática. Muitas vezes se poderia pegar três cenas e transformá-las em uma muito mais potente.

Muitos roteiros perdem um longo tempo apresentando os personagens para depois apresentar o conflito. Enquanto poderia apresentar os personagens já dentro do conflito. Outro problema recorrente é colocar nos diálogos o que deveria ser subtexto. É natural que isso aconteça na primeira versão do roteiro, e é por isso que se reescreve o roteiro muitas vezes. Como podemos dramatizar o que está no diálogo? É uma  pergunta que temos que nos fazer sempre. 



Como a proposta original da Casa de Cinema de Porto Alegre se adaptou às mudanças ocorridas na produção e distribuição de conteúdo audiovisual nas últimas décadas, em especial nos últimos anos? Já podemos falar em uma Casa de Cinema e Séries em Porto Alegre?
Desde o início, entendemos que televisão e cinema andavam juntos. Comecei a trabalhar com audiovisual na televisão. Só que, naquele momento, não existiam videocassetes caseiros, fazendo com que tudo que fosse exibido na televisão fosse efêmero, e o cinema era o permanente. Hoje, as possibilidades de veiculação e financiamento para séries são muito maiores.

A série possibilita aprofundar uma história, um personagem, permite experimentar mais. Por tudo isso, a Casa de Cinema é, sim, uma casa de cinema, séries, especiais para televisão, e todas as outras experiências que o audiovisual nos permitir e que acharmos que é coerente com o que queremos contar e sobre o que queremos falar.

“Os amigos da juventude são os mais verdadeiros.” O trabalho entre amigos que se conheceram na juventude e a franqueza das opiniões de quem se conhece há tanto tempo são um dos diferenciais das produções da Casa de Cinema de Porto Alegre?
Acho que a franqueza de alguém que lê o teu roteiro e diz ‘não tá bom’, como ouvi da Nora (Goulart), do Giba (Assis Brasil) e do Jorge (Furtado), é fundamental neste ofício de fazer filmes e séries. E acredito que nossa cumplicidade vem, sim, de tanto tempo de vida e de trabalho juntos. Temos muitas afinidades políticas, estéticas, filosóficas. Acho que é isso que nos mantém juntos.



O roteiro de Aos olhos de Ernesto passou por laboratórios de desenvolvimento e teve consultoria do escritor cubano Senel Paz. Como essa consultoria aprimorou o seu trabalho? O que acha que pode ser mais valioso na opinião de um consultor? O que foi mais importante no trabalho final de dois meses com Jorge Furtado?
Estruturei o primeiro roteiro com a parceria de Miguel da Costa Franco e Vicente Moreno. Muitas vezes, a gente sabe a história que quer contar, mas está tão envolvida com ela que não percebe os problemas. Senel me fez ver que eu tinha dois personagens dividindo a mesma função dramatúrgica. Tinha um outro personagem, além de Bia, que trazia Ernesto de volta à vida.

Ao concentrar tudo num único personagem, pude potencializar e melhorar o personagem da Bia. E Jorge conhece como poucos no Brasil a estrutura dramática. Sabe identificar o problema e ajudar a resolvê-lo. Com ele voltei à escaleta e reestruturamos a história, mudando coisas fundamentais para a história ser o que é.

“Esperar é minha especialidade.” Há um intervalo de 10 anos entre seus dois longas de ficção. Teremos de esperar mais 10 anos por um próximo longa?
Pode ser. Cresci no interior, no litoral do Rio Grande do Sul, onde se enxerga longe, onde o tempo tem outro ritmo, onde as vacas ruminam por muito tempo para melhor fazer a digestão (risos). Entre Antes que o mundo acabe e Aos olhos de Ernesto fiz muita coisa: dirigi um longa documentário em parceria com o Jorge (Quem é Primavera das Neves); escrevi e dirigi um telefilme (Doce de mãe), que surgiu como um projeto de longa; dirigi e escrevi várias séries de TV,entre elas Doce de mãe, Mulher de fases, Grandes cenas.

O financiamento de um longa é muito difícil, especialmente neste momento que estamos vivendo no Brasil. Então, vamos ver. Mas espero que não demore 10 anos, não.

Aos olhos de Ernesto
Direção: Ana Luiza Azevedo. 122 minutos. Com Jorge Bolani, Gabriela Poester, Jorge d’Elia e participação especial de Júlio Andrade. Disponível pelo Canal Brasil nas plataformas Net Now, Vivo Play e Oi Play.