Um homem que se jogou na vida em queda livre, sem nenhuma rede de proteção. É esse o retrato do mais popular diretor alemão do fim do século passado (e do início deste) que Eric Fiedler e Andreas Frege, mais conhecido como Campino, descortinam no documentário Wim Wenders, Desperado.
Inédito na América Latina, o longa-metragem encerra neste domingo (4), em sessão única, on-line, a 25ª edição do É Tudo Verdade – Festival Internacional de Documentários. Em duas horas, a dupla de diretores celebra a vida e a obra do cineasta, que chegou aos 75 anos no último dia 14 de agosto.
Esta celebração se dá por meio de uma viagem física e emocional que Wenders empreende pelas locações de alguns de seus filmes e também pelos depoimentos de seus companheiros de jornada.
É no deserto do Texas, ao redor da cidade fantasma de Terlingua, um dos cenários de Paris, Texas (1984), obra-prima de Wenders, que a narrativa começa e termina. Tal como o maltrapilho Travis interpretado por Harry Dean Stanton, Wenders caminha sozinho pela imensidão desértica com um garrafão de água. Emulando seu personagem, ele joga a garrafa fora (no documentário, uma legenda bem-humorada confirma que, depois de rodada a cena, a garrafa foi devidamente recolhida).
PINTURAS
Ao reencontrar seu mais célebre cenário, o criador de tantas histórias começa a refletir sobre como chegou até ali. Desperado é um presente para Wenders e para os cinéfilos, pois sua própria trajetória confunde-se com os filmes (quase 70 títulos, entre curtas e longas, ficção, documentário e clipes).
“Seus filmes são, na verdade, pinturas”, diz a atriz Andie MacDowell sobre a obra de Wenders. O diretor revisita a Paris de sua juventude, incluindo o apartamento onde vivia, para lembrar que sua primeira intenção era se dedicar à pintura.
O cinema veio em consequência de sua inaptidão para as tintas. Apaixonou-se pelos filmes na Cinemateca Francesa, local que frequentava religiosamente em todos os dias do inverno, para se aquecer, já que não tinha calefação em casa. Em dado momento, descobriu que a sala escura era o único lugar em que queria estar.
RECONSTITUIÇÃO
O documentário é uma costura muitíssimo bem-feita de imagens. Alguns de seus mais importantes filmes – Paris, Texas, Asas do desejo (1987), O medo do goleiro diante do pênalti (1972), O amigo americano (1977) – são reconstituídos tendo o próprio Wenders no lugar dos personagens (como o já citado Travis no deserto e o anjo Cassiel, de Otto Sander, em uma biblioteca). A essas sequências são intercaladas cenas dos filmes originais, mostrando o encontro entre criador e criatura.
O filme é também prolífico em encontros. Patti Smith, Ry Cooder e Willem Dafoe falam para a câmera de agora, mas também há registros de companheiros que se foram, como o de Bruno Ganz (1941-2019), o anjo Damiel.
Um dos melhores encontros se dá com o colega Werner Herzog, quando os dois celebram a amizade – “Somos amigos porque ficamos muitos anos sem nos ver”, dizem – e renegam o rótulo de “Novo Cinema Alemão” que sempre acompanhou seus filmes. Eram – na verdade, são – realizadores solitários.
Mas o fato de serem alemães foi definidor. Wenders, nascido no último ano da Segunda Guerra Mundial, sempre se incomodou com seus compatriotas por olharem para a frente, nunca para trás. Muito influenciado pela cultura americana, quis “fazer a América”. Após o sucesso de O amigo americano, recebeu um convite pra lá de tentador.
AMÉRICA
Francis Ford Coppola e sua produtora, Zoetrope, queriam que Wenders fizesse um filme americano. Hammett (1982), seria um policial noir sobre um dos mais célebres escritores do gênero, Dashiell Hammett. Wenders aceitou sem pestanejar. Tal narrativa, que ocupa a parte final do filme, é saborosa, pois vemos as duas versões da história do ponto de vista de dois nomes fundamentais do cinema.
De um lado, Coppola, que só descobriu que Wenders havia mudado completamente o roteiro quando as filmagens estavam terminando. Na época, segundo Coppola, Wenders, casado com a atriz americana Ronne Blakley, colocou-a como personagem principal da narrativa. Ainda de acordo com ele, ela própria estava reescrevendo parte do roteiro. “Não quero falar sobre isso, é um assunto delicado”, diz Wenders.
Resumo da ópera: Coppola teve que intervir no filme. Hammett foi filmado novamente, levou dois anos para ser lançado (sem nem sequer uma cena de Ronne) e foi um fracasso retumbante. Nesse meio tempo, Wenders rodou O estado das coisas (1982), filme em que um cineasta fracassa em sua tentativa de fazer um filme por causa das interferências do produtor. Passados tantos anos, os dois fizeram as pazes, vale dizer.
Wenders é um encantador de mundos, mas a narrativa de suas obras nem sempre convenceu. Ele só conseguiu entender que nunca faria um filme americano com Paris, Texas, realizado nos EUA, mas com o olhar de um estrangeiro.
O processo de feitura do clássico, que foi realizado quase sem roteiro (as pessoas chegavam para filmar com o roteiro do dia concluído pelo cineasta na madrugada anterior), é um dos pontos altos do documentário.
O próprio Wenders admite que aquele é o seu filme, que não conseguiria fazer outro melhor, mas que não sabia se era bom o suficiente (a fala é seguida pela imagem da Palma de Ouro em Cannes que ele recebeu por Paris, Texas). Asas do desejo, por seu lado, foi o filme em que o diretor fez as pazes com a Alemanha.
O cineasta quieto, centrado, também se enfurece. E muito. Wenders admite que não cabe mais no mundo do cinema. Não é diretor de seguir roteiros à risca, de obedecer aos preceitos dos grandes estúdios. Para ele, o improviso é essencial ao processo de criação. "Nos últimos anos, ele começou a ficar muito zangado e a gritar", admite sua mulher, Donata Wenders.
É pela impossibilidade de continuar fazendo seus filmes do jeito que quer que ele intensificou a produção de documentários de duas décadas para cá, segundo Donata. O formato permite maior liberdade. “Fazer filmes é uma tarefa radical”, ele admite.
WIM WENDERS – DESPERADO
O filme será exibido neste domingo (4), às 20h, no encerramento do festival É tudo verdade. Serão disponibilizadas 1 mil visualizações. Acesse em www.etudoverdade.com.br.
PARA MARATONAR
Confira os principais títulos da carreira do diretor alemão
“O streaming vai acabar com o cinema”, diz Wim Wenders a certa altura em Desperado. Mas as plataformas parecem gostar de sua obra. Ao contrário de outros grandes diretores, cujas filmografias acabaram esquecidas na era do streaming, a presença do cineasta alemão é grande no meio digital. Na seleção abaixo estão vários dos filmes analisados no documentário que será lançado neste domingo. Para assistir antes ou depois de Desperado – de preferência, sem pausar.
» O medo do goleiro diante do pênalti (1972)
Primeira colaboração com Peter Handke, Nobel de Literatura. Goleiro comete crime após discussão com árbitro de futebol.
Onde: Arte 1
» Alice nas cidades (1974)
O jornalista e a garota que busca a avó num road movie.
Onde: Belas Artes à La Carte
» Movimento em falso (1975)
Seis dias na vida de um aspirante a escritor.
Onde: Belas Artes à La Carte
» O amigo americano (1977)
Baseado em obra de Patricia Highsmith, famoso pela quantidade de atores diretores.
Onde: Belas Artes à La Carte
» Paris, Texas (1984)
Obra-prima de Wenders. Travis emerge do deserto para se unir à mulher e ao filho.
Onde: Arte 1 e Belas Artes à La Carte
» Tokyo-Ga (1986)
Tributo a Yasujiro Ozu, uma viagem à Tóquio contemporânea e aos fliperamas.
Onde: Belas Artes à La Carte
» Asas do desejo (1987)
Dois anjos conseguem ouvir os desejos das pessoas.
Onde: Looke e Belas Artes à La Carte
» Buena Vista Social Club (1999)
Documentário sobre o grupo de música cubano que reúne veteranos pouco reconhecidos.
Onde: Arte 1 e Belas Artes à La Carte
» Medo e obsessão (2004)
Drama que investiga a ansiedade e a desilusão nos EUA.
Onde: Looke
» Estrela solitária (2005)
Astro decadente de western abandona o set e descobre que tem um filho que nunca conheceu.
Onde: Arte 1
» Pina (2011)
Primeira incursão em 3D do diretor, faz um tributo à coreógrafa alemã Pina Bausch (1940-2009).
Onde: Telecineplay
» O sal da terra (2014)
Codirigido com Juliano Ribeiro, filho de Sebastião Salgado, acompanha a trajetória do fotógrafo brasileiro.
Onde: Looke