Um pouco de acaso misturado ao faro de um bom pesquisador. Historiador que se dedicava a pesquisar a ditadura militar brasileira (1964-1985), no início de 2018, o carioca Lucas Pedretti finalizava sua dissertação de mestrado sobre a repressão aos bailes de música soul.
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Enquanto se preparava para obter o título pela PUC-RJ, entrou em contato com documentos sobre monitoramento de artistas negros, Tony Tornado e Gilberto Gil entre eles. Uma gaveta abriu outras e outras, até que Pedretti chegou ao processo sobre a prisão de Caetano Veloso.
É esse o ponto de partida de Narciso em férias, documentário de Renato Terra e Ricardo Calil em que Caetano, sozinho, durante 84 minutos, descortina para a câmera os 54 dias vividos na prisão, a partir de sua detenção, em 27 de dezembro de 1968.
Único filme brasileiro a participar do 77º Festival de Cinema de Veneza, o primeiro evento do gênero a ser realizado durante a pandemia do novo coronavírus, Narciso em férias terá oito exibições na cidade italiana, a partir deste domingo (6). Na segunda (7), o filme ficará acessível no Brasil, via plataforma Globoplay.
A prisão, ocorrida duas semanas após a edição do Ato Institucional nº5 (o chamado AI-5, que inaugurou o período mais brutal da ditadura), há havia sido relatada pelo cantor e compositor, de próprio punho, no capítulo Narciso em férias do livro Verdade tropical (1997). Mas os documentos dos antigos órgãos federais de informação descobertos por Pedretti no Arquivo Nacional representaram uma novidade, inclusive para o músico, passados 50 anos do episódio.
ELEIÇÃO
Poucos dias antes do primeiro turno da eleição presidencial de 2018, Terra e Calil filmaram uma longa entrevista com Caetano (o registro durou entre cinco e seis horas), na Cidade das Artes, no Rio de Janeiro.
“Percebemos, durante a entrevista, que o que ele estava falando tinha muita força. Na época, Caetano estava com 76 anos, revisitando as memórias de um jovem de 26. Aquilo nos interessou muito mais do que fazer uma reportagem sobre a prisão dele”, afirma Terra.
A palavra do documentarista e professor João Moreira Salles foi fundamental para que a dupla de diretores, que vem de longas pautados por documentos e registros de época – Uma noite em 67, de 2010, e Eu sou Carlos Imperial, de 2016 – decidisse não usar nenhuma imagem complementar à entrevista.
“O João Moreira Salles nos ensinou várias coisas: que o bom documentário não quer ser didático, que ele tem que provocar a expe- riência. Com o depoimento do Caetano no formato minimalista tudo passa a ter relevância: uma pausa, um silêncio, um choro, uma palavra mais exaltada”, diz Terra.
Narciso em férias é uma realização da Uns Produções, de Paula Lavigne, em coprodução com a Videofilmes, dos irmãos Walter e João Moreira Salles. Uma conjunção de fatores motivou a feitura do filme. Já incomodado com o crescimento da direita no país, que veio culminar na eleição de Jair Bolsonaro, Caetano recebeu das mãos de Pedretti, naquele início de 2018, os documentos.
ARQUIVOS
“Sugerimos uma matéria (jornalística), ou algo do tipo, mas o retorno só veio três meses depois, com a notícia de que haveria um documentário (proposta que partiu de Paula Lavigne, que convidou Terra para dirigir). Depois, a Paula entrou em contato e me convidou para ser o pesquisador. Foi quando começamos a levantar outros arquivos”, conta Pedretti.
O pesquisador se impressionou com a maneira usada pelo regime para ir atrás de Caetano. “O dossiê permite entender a lógica do regime autoritário. Em 1966, ele teria assinado um manifesto contra a censura a uma peça; em 1968, teria participado da Passeata dos 100 mil. Há também fake news. Falam que ele teria feito um disco chamado Che, que não existe. Talvez falassem da música Soy loco por ti América. Ou seja, na melhor das hipóteses, é um absurdo; na pior, é uma mentira criada. O fato é que pequenas coisas esparsas, quando há o recrudescimento do regime com o AI-5, se tornam suficientes para justificar a prisão.”
A gota d’água para que a polícia invadisse o apartamento em que Caetano e Gil viviam, no Centro de São Paulo, e os levasse em uma caminhonete para o Rio foi uma notícia falsa. Apresentador do programa Guerra é guerra, exibido na época pela TV Record, Randal Juliano leu no ar uma notícia de jornal segundo a qual Caetano e Gil haviam feito uma paródia do Hino Nacional em “ritmo de Tropicália”, nas palavras dos militares, durante um show na boate Sucata, na Zona Sul do Rio.
Aquilo nunca ocorreu. “Os documentos mostram um olhar muito obtuso dos militares sobre quem eram Caetano e Gil, sobre a cultura brasileira. Em momentos em que Caetano lê trechos dos relatórios no filme dá para ver como tudo aquilo parecia um teatro do absurdo, um pesadelo kafkiano”, afirma Calil.
Além do capítulo Narciso em férias, que está sendo reeditado como um volume independente pela Companhia das Letras, acrescido de parte da documentação até então inédita, Caetano já havia falado sobre a prisão na série Canções do exílio, produzida pelo jornalista Geneton Moraes Neto (1956-2016).
A Jô Soares ele contou, em 1992, no extinto Jô Onze e Meia, a história do programa de Randal Juliano. “Mas a prisão nunca foi noticiada no Brasil por causa da censura. E depois que a censura acabou, aquilo virou assunto velho, então não se explorou mais”, afirma Terra, lembrando que o período no exílio em Londres (de 1969 a 1971) é muito mais retratado.
Juntamente com os documentos que desconhecia, Caetano também descobriu uma fotografia tirada no início de 1969, em que está com os cabelos curtos, raspados nas la- terais. Suas madeixas haviam sido desbastadas no período da prisão.
CABELO
“Eles me tiraram da cela e disseram: ‘Ande em frente e não olhe para trás!’. Eu pensei que eles iam atirar. Mas eles me levaram no barbeiro. Eu tinha um cabelo grande, todo cacheado, grandão, e eles cortaram meu cabelo. Eu fiquei feliz porque não ia morrer, e eu não podia nem demonstrar a minha felicidade, adorando aquele barbeiro cortando o meu cabelo”, diz ele, em certo momento da entrevista.
Caetano interpreta três canções no filme. Terra, criada a partir do impacto causado pela primeira vez em que viu as imagens do planeta feitas pelo astronautra William Anders, da missão Apollo 8 (as fotografias, da revista Manchete, foram levadas por sua mulher, Dedé Gadelha); Irene, a única que ele compôs na cadeia, e Hey Jude (Paul McCartney).
“No filme, você passa a vivenciar o jeito Caetano de contar as coisas. Ele fala da angústia da prisão de forma muito íntima. Fala, por exemplo, que não conseguia gozar, porque nem sequer conseguia ter uma ereção. E também não conseguia chorar. Acaba fazendo um paralelo entre a lágrima e o esperma. Eu, que acompanho bastante a vida dele, nunca o tinha ouvido falar desse jeito. João Moreira Salles chegou a comentar que o filme não o coloca nem como herói nem como vítima”, diz Terra.
EM FORMA DE LIVRO
Com lançamento previsto para o próximo dia 9 de outubro, o volume Narciso em férias, editado pela Companhia das Letras (168 páginas, R$ 59,90), reúne o capítulo homônimo de Verdade tropical (1997), em que Caetano Veloso relata os dias vividos no cárcere, além de uma compilação dos documentos do processo aberto pela ditadura militar contra o cantor e compositor. Para esta edição, Caetano escreveu um novo texto de apresentação.
NARCISO EM FÉRIAS
No Festival de Veneza (fora de competição)
Sessões no domingo (6), às 22h15; na segunda (7), às 14h (sessão de gala); e na terça (8), às 9h15, 13h45, 14h15, 14h30, 16h45 e 17h.
No streaming
Estreia nesta segunda (7), na Globoplay.