Filme procura entender por que músicos ainda gravam discos

'Brasa', de Marcelo Perdido e Bruno Graziano, investiga as razões pelas quais se produzem álbuns, na era do consumo de canções avulsas. Documentário está no YouTube

Guilherme Augusto 28/08/2020 07:31
Bruno Graziano/Divulgação
Marcelo Perdido teve a ideia de produzir o documentário quando se sentiu em crise com a perspectiva de gravar os próprios discos. Cada um dos entrevistados interpreta uma música no filme (foto: Bruno Graziano/Divulgação)

Há três anos, quando estava prestes a terminar a gravação de seu quarto álbum, Brasa, lançado em 2018, Marcelo Perdido, cantor e compositor carioca radicado em São Paulo, enfrentou uma crise criativa. 

Ao lançar Lenhador, seu primeiro disco, em 2014, ele determinou que trabalharia em outros três registros, pelo menos. Com o final desse ciclo se aproximando, o músico questionou se deveria ou não parar por aí.

“Comecei a investigar em mim e nos artistas amigos meus o que nos leva a fazer discos. Por que a gente faz isso? Por que a gente investe tanto nesses trabalhos? O que nos motiva a criar?'', conta ele, em entrevista por telefone.

Em um determinado momento da pesquisa, Marcelo decidiu que as respostas para essas perguntas deveriam ser registradas. Então, ele, ao lado do cineasta Bruno Graziano, idealizou e dirigiu o filme Brasa, com o objetivo de investigar o ato de criar discos e o processo criativo de alguns nomes da música brasileira.

Entre eles está o paulista Marcelo Jeneci, que, na época do depoimento ainda não havia lançado seu terceiro disco, Guaia (2019), mas já tinha estourado a bolha da cena independente e habitava o mainstream. O filme também traz a fala da cantora e compositora Nana, que reside em Berlim, mas estava de passagem por São Paulo para gravar o disco CMG-NGM-PDE (2017).

Nossa ideia era retratar artistas em diferentes momentos da carreira e que produziram discos em contextos diversos. Ao mesmo tempo, esse recorte mostra que, em todas as situações, seja com financiamento ou de forma independente, a maioria deles mostra um cuidado com o álbum em si, preocupados em criar um universo particular no qual as músicas habitam”, diz Marcelo.
 
Maioria porque um dos entrevistados, o músico e produtor Rafael Castro, defende o formato single, principalmente para aqueles artistas em início de carreira. Para ele, funciona muito mais lançar uma música e trabalhar a divulgação dela do que liberar várias delas de uma vez.

“Parece que a era dos álbuns como o modelo principal teve a sua vida. Nos anos 2000, isso entra em declínio, o que acho natural. As pessoas gostam de trocar coisas e trocar uma música é mais fácil do que trocar um disco. Nunca mais ouvi alguém dizendo 'ouve aquele disco daquela banda'. Só quando é essa turma da era do disco. Acho que é por isso que eu não quero mais fazer discos”, afirma Rafael, durante seu depoimento no filme. Ironicamente, ele acabou gravando outro álbum.

Já o cantor e compositor Tatá Aeroplano, que já lançou 12 discos de estúdio, entre eles Delírios líricos, neste ano, conta que, ao longo da carreira, desenvolveu uma estratégia para autossustentar a produção de seus trabalhos. O dinheiro que ele ganha com shows e discotecagens vai direto para uma conta que ele batiza de “conta disco”.

“Hoje eu me organizo de uma tal maneira que vendo os discos pelo meu site. As pessoas entram no site, compram os discos e sou eu quem faz a distribuição das cópias físicas nas lojas. E também vendo nos shows que faço. Às vezes, demora um tempo para esgotar as unidades, mas a gente precisa trabalhar a ansiedade, porque o lance hoje é diferente”, pontua ele.

Contemplada por um edital de incentivo para produzir o disco Taurina (2018), Anelis Assumpção conta que, pela primeira vez desde que iniciou sua carreira na música, com o álbum Sou suspeita estou sujeita não sou santa (2011), pôde pagar todos os profissionais que trabalharam no projeto.

“Os meus primeiros discos foram bem mais guerrilha. O artista independente, na verdade, depende da boa vontade, do amor, do carinho e da dedicação das pessoas que trabalham com ele por prazer ou por acreditar. Não tem dinheiro, não tenho como pagar. É uma rede em que dependemos uns dos outros mesmo para poder existir como mercado”, afirma a cantora e compositora.

“Todos eles responderam às mesmas perguntas”, conta Marcelo Perdido. “Queríamos captar essa visão geral do tema a partir de olhares diferentes. Durante a gravação, a coisa enveredou muito para uma conversa, além de todos eles terem uma afinidade poética comigo, já que eu também sou músico.

O que também colaborou para quebrar o gelo foi Marcelo e Bruno pedirem, antes de iniciar a entrevista, que cada um cantasse, a capela, uma música de seu repertório. A cantora e compositora carioca Bárbara Eugênia canta um trecho de Eu vim saudar, música presente no álbum Tuda (2019). O maranhense Negro Leo – que neste ano lançou Desejo de lacrar (2020) –, canta A cobrar, não registrada em disco.  

“Eu canto para construir o mundo”, entoa Luiza Lian, trecho e título de música inédita composta pela cantora e compositora paulista. Na época do depoimento, ela se despedia de seu segundo álbum, Oyá tempo (2017), para começar a trabalhar no premiado Azul moderno (2018).

Suave, poético e, às vezes, surreal, Brasa é a estreia de Marcelo Perdido como diretor. Bruno Graziano, que dirigiu anteriormente filmes como A primeira vez no cinema brasileiro (2013) e Baderna (2018), é responsável pela estética do filme, que adota imagens em preto e branco com o objetivo de tornar-se atemporal.

Questionado sobre a similaridade de Brasa com As canções (2011), de Eduardo Coutinho (1933-2014), Marcelo assume a influência. “Gosto de todos os filmes dele e, sem dúvida, ele me influenciou como documentarista. Mas o filme também presta homenagem a Glauber Rocha (1939-1981) e ao [seriado infantil] Castelo rá-tim-bum (1994-1997). Todos eles são meio anárquicos e trazem uma abordagem de que eu e Bruno gostamos muito.”
 
A anarquia, de forma imagética, está nos detalhes da montagem. Como numa cena, ainda na primeira metade do filme, em que aparece, em destaque, a palavra “Fim”; ou na entrevista informal que Marcelo Perdido realiza com foliões no carnaval de São Paulo.
      
A cena, inclusive, impediu que o filme fosse lançado nas plataformas de streaming. Segundo o músico, as empresas exigiam um documento assinado pelas pessoas entrevistadas, autorizando o uso de sua imagem. Por isso e por causa da pandemia do novo coronavírus, o filme está disponível gratuitamente no YouTube.

Passada a crise e a produção do filme, Marcelo Perdido se encontrou – com o perdão do trocadilho – na necessidade de produzir um quinto disco de estúdio. Não tô aqui para te influenciar (2020) chegou às plataformas digitais na última semana de junho.

Enxuto, com oito faixas curtas – apenas duas delas, Santa Clara de Troia e Você não está aqui para me influenciar, têm mais de 3 minutos de duração –, o trabalho desdobra-se num indie rock com letras confessionais sobre lutos, perdas e memórias. Sonoramente, assemelha-se bastante ao rock triste mineiro.

“Eu me coloco na categoria de artistas para os quais lançar discos é uma coisa inevitável. No momento atual, de pandemia e crise política, as pessoas parecem mais preocupadas em sobreviver. Lançar música é ir na contramão, mas a arte tem esse papel de trazer um afeto que talvez as pessoas estejam precisando mais do que nunca. Então, todas as coisas que a gente enxerga como empecilhos, o coronavírus, a crise econômica e o governo que não investe na arte, na verdade são motivos para produzir cultura.” 
 

BRASA – O FILME
De Marcelo Perdido e Bruno Graziano. Com depoimentos de Luiza Lian, Anelis Assumpção, Marcelo Jeneci, Tatá Aeroplano, Negro Leo, Rafael Castro, Bárbara Eugênia, Nana e João Erbetta. Disponível no YouTube (youtube.com/marceloperdido). Mais informações: marceloperdido.com.br/brasa-filme.

MAIS SOBRE CINEMA